Receita para se fazer heróis
por Alexandre Petillo

Sexta-feira, 04 de outubro, quase meia-noite, hora de voltar no tempo. Estou no começo dos anos 80. Caminho pelas ruas com o meu walk-man, afinal, quem não tem um está por fora. Há pouco surgiram pessoas cantando rock em meu idioma. Até então o cenário musical popular vinha sendo dominado pelos ultrapassados e decadentes ídolos da Tropicália. Como num passe de mágica, a estética punk dominou, inspirando garotos a levar suas guitarras de volta para as garagens, mesmo não sabendo tocar mais do que três acordes.

Não há muito o que pensar. O futuro é vortéx. Ou melhor, no future. Uma odisséia no espaço em 2001, quem sabe. A democracia corinthiana e o bi-campeonato paulista. A garota que senta ao meu lado na classe. “Será que o prazer de tocar a sua guitarra/e a gratidão de chutar uma bola/vão lhe render juros ou não”. Foram bons os tempos das descobertas da juventude, mas hoje eu gosto de pernas bem mais grossas, então, nos acordes finais de “Dias de Luta”,
volto ao presente. Nada de odisséia espacial. O que cantarei depois?

Mais um cd-demo de uma banda brasileira cantando em inglês chega na minha casa. A intenção é boa, os caras têm boas influências, ouviram discos importantes. Mas rock britânico made in Brazil não me agrada muito mais. A inspiração é rala e a arrogância é muita. Como se conhecer todos os discos underground os credenciassem a fazer boa música.  De volta. Cartazes no centro da cidade estampam que o Carbono 14 anuncia duas noites de uma nova banda paulistana: o Ira. 

Caso eu perca, o Teatro Lira Paulistana, mais tarde, abre espaço para a nova banda “new wave”: o Ira!. Bares,
parques, guitarras e loucas paixões. Envelheço na cidade. No palco do modernoso Directv Hall, quem diria, a banda favorita dos meus fones de ouvido completa 20 anos na ativa. Mesmo quarentões, o quarteto paulistano, em pouco mais de duas horas, dá uma aula do que de melhor o rock pode proporcionar. A alegria, a inspiração e o poder de fogo da banda ainda é maior do que todo o cenário independente brasileiro junto. Feliz ou infelizmente?  De quando eu me julgava eterno e podia dominar o mundo, “Casa de Papel” é resgatada. Em seguida, “Vitrine Viva” e seu funk pesado chegam a ensurdecer. Mas é impossível parar de dançar. Mesmo com todas as desgraças. 

No começo do fim do mundo, no metrô São Bento, o retrato de São Paulo, uma mistura de miséria e “Mad Max”, formam-se cidadãos comuns, cabeças quentes na poluição, mercenárias e inocentes, hip-hop e notícias populares. Desse cenário sombrio e ansioso, o som do Ira! vigora, com suas letras simples. Quando eu me sinto assim, volto a ter
quinze anos.

Me apanho sorrindo. “Pegue Essa Arma”, hipnotizante, extraída do “Psicoacústica”, talvez um dos dez melhores discos do rock nacional de todos os tempos. Barulheira infernal. Alguns dos novos fãs da banda aproveitam para ir ao bar comprar uma coca light. Os ataques de guitarra são mais potentes que o Radiohead de “Ok Computer”. Barulho, barulho, barulho. Ok, mas barulho qualquer um faz. Mas Edgard Scandurra sabe o que está fazendo. Edgard sabe o que está fazendo quando tira o plug do seu instrumento e sola em sua mão, preparando o clímax, que explode, sem controle. “Tudo muda é preciso mudar/não é fácil o perigo passar/sua cegueira mais e mais que me complica/se sua roupa vale mais que uma vida”. Eu sou um grito.

É assim que me querem!!!! Berra, Nasi. O cara que já fumou todos os baseados e bebeu todas, que quebrava copos na mão e no corpo em pleno show, fita uma loira escultural no meio da platéia e, diabolicamente se aproxima. “Hey honey, take a walk on the wild side”, sugere. Deve ter rolado. Da mesma safra, a genial "Rubro Zorro", há tempos que não ouvia.  “Gosto do cheiro de gasolina” diz uma das novas, "Naftalina". A romântica “Entre Seus Rins” mostra que eles ainda podem compor boas músicas, apesar das pífias do último disco. "Vida Passageira", cantada em coro. “Bebendo Vinho”, “Gritos Na Multidão”, “Você Ainda Pode Sonhar”, “Tolices”, “Tarde Vazia”, "Mudanças de Comportamento,"Flores Em Você", "Eu Não Sei" clássicos e recordações. A fascista "Pobre Paulista".

Edgard Scandurra, Ricardo Gaspa, André Jung e Nasi. Essa é a banda que há mais de 20 anos nós conhecemos como Ira!. E está há mais de 20 mil anos luz a frente do apenas bem intencionado rock independente brasileiro. Porque não se formam roqueiros nas faculdades de publicidade e sim no pó da estrada e nos percalços da vida. Credibilidade, coerência e idoneidade não se conquistam, baby; têm-se ou não.

PS: Duas horas depois do show, na mesma madrugada, Nasi já estava com o microfone em uma mão, um copo de bourbon em outra, no palco da casa noturna Urbano, desfilando clássicos do blues de do soul, além de ótimas composições próprias, a frente dos Irmãos do Blues. O cara cantou por mais duas horas. Quem duvidava da potência da voz do cara, queimou a língua. Uma noite memorável.