Rock and Roll (Obrigado, Porto Alegre) 
Blemish e Superphones 
Garagem Hermética
25/05/01
por Manuela Martini Colla

25 de maio de 1991. ‘O pai deve estar chegando’, pensou a menina, enquanto o relógio marcava seis da tarde. Todo dia, ele trazia algum  mimo do trabalho para a pequena. Meia hora depois, ele abriu a porta de casa. A menina já tinha desistido de esperar. Abraçou o pai demoradamente, sem deixar de perceber o grande pacote que ele carregava nas mãos.

- Filha, isso vai mudar a tua vida. Não agora, porque ainda não é hora. Mas vai mudar, com certeza.

A menina desembrulhou o papel celofane com calma. Que era um disco, ela já tinha percebido. Desde os seis anos de idade ela ganhava esporadicamente um que outro vinil de seu pai, a maioria acabava nem ouvindo. Nesse dia, era um moço na capa, numa foto grande. As aulas de inglês permitiram que lesse o título: Blonde on Blonde. Estava feito o estrago. Não há caminho de volta daqui.

25 de maio de 2001. Bob Dylan comemorava seus 60 anos. A menina, onze anos depois, ainda guardava na memória o final de tarde em que ganhou seu primeiro disco do velho Bob. No caminho de São Leopoldo à Porto Alegre, não havia walkman, mas 'Brown Eyed Girl', um dos quase-hits dele, não saía de sua cabeça. 

Quando chegou em frente ao lendário Bambu’s, clássico lugar de começos e fins de noite memoráveis, teve a certeza. Estava feito o estrago. Não há caminho de volta daqui. Algumas cevas no recinto, a menina rumou em direção ao Garagem. 
Era noite de show de Superphones e Blemish. Superphones, ela conheceu desde janeiro, quando a Carmela chegou balançando o EP Special Play e dizendo, empolgadíssima: ‘Tu PRECISA ouvir isso’. Ouviu e Gostou. Muito.

Blemish, de São José dos Campos (SP), ela só tinha escutado pela primeira vez à tarde, o EP Split #1 gravado pelo selo London Burning junto com a banda 28/8/2. O som deles lembrou bastante suas extintas camisas de flanela, e tratou de raptar o EP da rádio Unisinos  para seus headphones. 

Mas voltando ao Garagem: devia ter umas sete pessoas lá dentro, de forma que o pessoal da Superphones e da Blemish ainda estava chegando na Barros Cassal. Enquanto isso, Nine Inch Nails, Stooges, Radiohead tocavam na discotecagem, e meninas de All Star colorido e casacões de pelúcia disputavam espaço com punks carregando Nietsche debaixo do braço e o povo de sempre do Garagem. O lugar começava a encher, lentamente.
 

Devia ser uma e meia da manhã quando a Blemish começou o show. Corajosos, não estrearam na terra do ‘afudê’ com sua música de trabalho, Silver Box Song, e sim com uma nova. Mais tarde, o Daniel (guitarrista da Blemish) contou que a maioria das músicas novas não têm nome ainda. O vocalista e guitarrista Tito supôs algo como How am I driving (again)?. O nome não importa: as pessoas se aproximaram mais do palco para ver porque os caras tinham viajado vinte horas até Porto Alegre. E se ia valer a pena. A resposta veio em forma de música, um riff já conhecido, um baixo matador. Falling Star, uma das únicas que a menina sabia cantar, e eleita a sua favorita da banda.

Subitamente, a menina lembrou que tinha estrelas tatuadas no ombro. E que cansou de esperar por estrelas cadentes pedindo o que quer que fosse. A banda é que não precisava pedir mais nada: os sorrisos e palmas são bons em comunicação. Mesmo com os problemas de amplificação da segunda guitarra, que deixaram Daniel visivelmente preocupado, Ivan estava ali com aquele rosto de quem gosta muito do que faz, Tito escondia-se em seu 'chapeuzinho indie' e Luis Fernando, o baterista, parecia ter trocado as pilhas. A terceira música só veio confirmar isso: And I try so hard...
O auge veio com Silver Box Song, como esperado. Dessa, a menina lembrava por causa de Thom Yorke em 'Airbag': 'I am born again' é um bom verso em qualquer lugar. Como um Kurt Cobain em  'Heart Shaped-Box', um relacionamento é dissecado em metáforas. Sublime.

Alguém mais deve ter sentido falta de November Days, de Makes me insane e, principalmente de Love me until you hate me enough e sua bateria matadora. ‘November days’ é arrastada, melancólica e, por isso mesmo, bela. ‘Makes me insane’, como bem definiu Alexandre Petillo, é uma espécie de quase-hit da banda paulista, com punch e emoção. ‘Love me until you hate me’ tem temática semelhante à ‘Love will tear us apart’, do Joy Division: convence os homens da impossibilidade do amor e observa-os enquanto o encontram como única possibilidade. Mas o comentário logo chegou: a citação ao ‘otário’ Álvaro Pereira Júnior tardou, mas foi eficiente em I wanna be cult. Calma e fúria, a dicotomia presente nas músicas da Blemish, num desabafo dedicado ao jornalista que tem como mania detonar as bandas do underground paulistano.  O final foi apoteótico: longo, à la Stone Roses, sincero e irônico ao mesmo tempo: memorável foi a frase de Daniel que virou título: Obrigado, Porto Alegre. É brega, mas foi de coração. 

Os meninos da Superphones, que haviam assistido ao show na  frente do palco, mal puderam esperar os minutos que faltavam para começar o show. Três meses sem tocar em Porto Alegre. Três meses não é muito tempo, mas diversas coisas podem mudar nesse espaço de tempo. E, de fato, mudaram. Where have you been? abriu aquele que seria o melhor show da Superphones que as pessoas ali presentes já tinham visto. A letra lembra bastante Travis em ‘Writing to reach you’ e a melodia, quase infantil, envolve e inebria. A identificação é imediata: ‘I’ve tried hard/ but you even tried at all’.

Já no começo as mudanças mostravam-se explícitas: além do som do Garagem, que estava ótimo, o baixo de Marcelo Kalil era percebido em todas as suas notas; a bateria de Pedro Belleza (aliás, um grande músico) parecia estar em um universo particular, onde a essência de uma banda pode até estar numa banda como o Blur, mas que discos como Odelay, do Beck, fazem toda a diferença. Sérgio Kalil e Fabian Umpierre, os dois guitarristas, sorriam. Pareciam dizer: ‘ei, essa é minha banda e eu sou feliz’. E o vocalista Foguinho, com seus olhos sempre pintados de lápis preto, cantou como nunca. 

O setlist foi, como o da Blemish, cheio de canções novas: Wailing walls, Falling down, Drown the rain e Just watching (nome provisório) mostram bem que os meninos estão longe de perder a mão para compor belas canções – aquelas, cujos riffs ficam na mente por horas e horas. O próximo EP da Superphones tem previsão de ser lançado ainda esse ano, como contou o Marcelo. Dust, incluída há algum tempo no repertório da banda, está quase pronta e, se tudo correr como esperado, a banda nos presenteia com mais do mesmo – e que mesmo!- ainda em setembro. 

Como já foi dito, a evolução da presença de palco da Superphones é, sem dúvida, um doa fatores que fazem a noite de 25 de maio histórica. Foguinho tocou guitarra em três músicas, movimentou-se bastante sobre o palco, mexeu com a onipresente figura dos palcos gaúchos, o robozinho que Scooby trouxe dos EUA e, desde já, eleito a imagem da amizade presente no rock daqui. Prova disso é que Wonkavision e winston também adotaram o mascote. 

Mas voltando às músicas. 9th Floor é tão linda que até Sountrack de André Takeda já ganhou. A letra, perversamente bela, todo mundo acompanhou, mesmo que mentalmente. Walking, também do ‘Special Play’, veio branda, resignada: ‘They’re just searching for a hole to lie and sleep tonight’. Versos como esse são a melhor resposta para aqueles que insistem em criticar bandas brasileiras que cantam em inglês.

Bastava escutar as opiniões unânimes no final do show. Carmela Toninelo, Juliano Goyo, Pepe Peruena... ouvia-se em uníssono: ‘Esse foi o melhor show da Superphones que eu vi”. Foguinho pergunta o que a menina havia achado do show. O sono tranqüilo estava mais que garantido para os meninos não só da Superphones, mas também da Blemish. Obrigado, caras. Obrigado, Porto Alegre. Porque é disso que somos feitos. O estrago está feito, não há volta daqui. Ainda bem.