Somos
os neo-reprimidos?
por Eduardo
Fernandes
eduf@uol.com.br
“A
característica das almas e dos livros modernos não é
a mentira, mas a inocência encarnada no moralismo mentiroso”.
Friedrich
Nietzsche
A 24ª Mostra de Cinema em São
Paulo parecia ser temática. “Alta Fidelidade”, “Poucas e Boas”,
“Entre Eu e Eu Mesma”, “Uma Relação Pornográfica”,
“Amor Virtual”, entre outros. Filmes de diretores e enfoques tão
diferentes, mas todos esbarrando no mesmo tema: a opressora necessidade
de se ter um relacionamento amoroso.
Não qualquer relacionamento
amoroso. Mas um tipo específico: monogâmico, heterossexual,
com a união de sexo e amizade, paixão intensa e certa dose
de ciúmes. Isto é: o chamado amor romântico.
Quase sempre os enredos dos filmes
mostravam pessoas capazes de aceitar seus mais “estranhos” desejos sem
grandes sofrimentos morais. Mas que, como conseqüência, vivem
em mundos que os cineastas se esforçam para provar que são
pequenos e vazios. E por que são assim? Porque os personagens não
conseguem incluir nesses mundos um parceiro amoroso fixo e monogâmico.
Em todos os filmes citados, os protagonistas sofrem o filme todo para chegar
à prosaica conclusão de
que só o amor romântico
salva.
Para citar três exemplos:
1. Rob Gordon, de “Alta Fidelidade”,
tem seu happy end quando consegue romper com seu “egoísmo” e acertar-se
com a amada Laura.
2. A garota de “Entre Eu e Eu Mesma”
busca um parceiro durante o filme todo. Depois de um estranho acidente,
acaba experimentando a vida de casada. Parece não gostar muito.
Consegue voltar para sua antiga vida, mas agora mais autoconfiante. O que
lhe permite chegar ao seu final feliz: arranja um namorado bonito, inteligente
e monogâmico.
3. Já em “Uma Relação
Pornográfica”, vemos um casal que se apaixona e quer ficar junto.
Mas nem o homem e nem a mulher têm coragem de admiti-lo. Temem a
decepção com todas as forças de suas almas. Afastam-se.
E terminam infelizes. Aquela infelicidade “adulta” e “analisada”, que seria
marca dos nossos tempos.
4. O jazzista de “Poucas e Boas”
passa o filme todo se divertindo, pensando na sua música e evitando
ficar amarrado em apenas uma mulher. Acaba amargo, solitário e desaparece
misteriosamente. É condenado pelo seu “egoísmo”. Não
quis se amarrar à garotinha legal, sonsinha e amorosinha? Pois está
condenado ao inferno afetivo.
Isto é: a necessidade do amor
romântico é tão obsessiva e opressora que tortura os
personagens levando-os, muitas vezes, a não conseguirem vive-lo
quando têm chance.
Ou então os leva a desprezar
todos os aspectos bem sucedidos da sua vida, para condenar-se ao rótulo
de “perdedor”. Só porque não conseguem, naquele momento,
ter o seu parceiro(a) fixo. Mais: se a pessoa não está amando,
é porque ela é “egoísta”.
Nova mitologia, nova utopia
Lembra-se de Abelardo e Heloísa?
De Tristão e Isolda? De Romeu e Julieta? São alguns dos mitos
mais poderosos que obsedaram as nossas mentes durante os dois últimos
séculos. Auxiliaram a criar em nós o desejo daquele tipo
de relação intensa, única e entorpecente de paixão,
do “amor romântico”.
Tivemos séculos para provar
que este amor pode ser bom sim, mas que é geralmente menos glamuroso
do que parece e também demasiadamente humano.
Assim, tivemos a chamada revolução
sexual, o verão do amor etc. A contra-cultura questionava o romantismo
e demonstrava suas vinculações políticas e ideológicas.
Condenava o moralismo por meio da arte, da filosofia e até mesmo
da ciência. A necessidade do amor romântico já não
deveria ser tão opressora. Haveria outras maneiras de amar. Sem
possessividade, sem exclusividade, sem a dor da dependência afetiva.
Com certa razão, ninguém mais leva a sério essas idéias.
A AIDS, o
mercado, a queda do IBOPE das ideologias,
jogaram um balde de água fria em nossos desejos de liberação
afetiva. Mas, a pretexto de ficarmos mais realistas, acabamos exagerando
e ficamos pouco críticos.
Agora a arte volta-se contra os ideais
da geração anterior e a acusa de ser egoísta e iludida.
E corre desesperadamente para ideais como estabilidade, fidelidade e, é
claro, amor romântico. Só que desta vez com mais intensidade,
idealização e desespero. É a nossa nova utopia.
Principalmente porque amor não
é mais entendido como “assunto de mulher”. O homem finalmente admite
para si e para a sociedade que pode ser carente e solitário.
O charme dos perdedores
Inclusive esta postura ganha certo
charme: um loser acaba atraindo por ser engraçadinho, por provocar
identificações. Todos, enfim, somos um pouco losers. Leia
este comovente trecho de “Alta Fidelidade” (desta vez, extraído
do livro de Nick Hornby). Diz Rob:
“Quando é que esse negócio
todo vai parar, caralho? Eu vou ficar pulando de galho em galho para o
resto da vida até que não haja mais galho para pular? Vou
sair correndo toda vez que tiver coceira nos pés? Porque isso eu
tenho todo trimestre, vem junto com as contas da casa. (...) Venho pensando
com a virilha desde que fiz catorze anos, e para falar com franqueza, cheguei
à conclusão de que minha virilha tem merda na cabeça”.
E o que faz Rob? Sai correndo para
pedir sua amada Laura em casamento. Ela, como mulher moderna e emancipada,
recusa. Mas continua morando junto com Rob, mantendo o mesmo relacionamento
que teriam se estivessem casados. Apenas não usam o Estado e nem
a Igreja para legitimar sua união.
Ou seja: privatizaram o casamento.
As questões mais profundas do amor romântico como o ciúme,
a possessividade, a dependência social e psicológica do parceiro
e da “estabilidade” que este representa, ficaram intactas.
O pop e o amor
O mais interessante em “Alta Fidelidade”
é que se fala de rock e de música pop o tempo todo. Rob chega
a sugerir que o motivo da sua falta de sucesso nos relacionamentos seja
o fato de que ele passou a vida inteira ouvindo canções sobre
amores arrebatadores. E criando ilusões de passar por experiências
semelhantes.
Lembre-se de Elvis, chacoalhando os
valores de sua época. Do Punk rock. E do caso mais famoso: Woodstock.
O rock e a música pop foram a trilha sonora do festival considerado
como marco da liberação sexual na década de 60.
Embora sempre tenha sido romântico,
hoje, mais do que nunca, o pop é trilha dos corações
na desesperada busca de um relacionamento fixo. E muito próximo
ao dos nossos pais. E provavelmente somos muito mais iludidos quanto ao
amor romântico do que eles.
Novo século, velhas questões
Assim, sobram-nos algumas perguntas:
1. Os questionamentos da contra-cultura
serviram apenas para mudar a forma do relacionamento amoroso, sem tocar
no seu conteúdo?
2. Amamos menos neuroticamente do
que nossos pais? Ou, pelo contrário, cada vez mais o amor é
um tema produtor de neuroses?
3. Criamos uma nova mitologia para
reafirmar o amor romântico? Isto é: o mito do “egoísta”,
daquele que “tem medo de amar”, daquele “que não se entrega”?
4. Criamos um novo conformismo? “O
amor é sempre assim”, “sempre haverá dependência, possessividade,
não podemos muda-lo etc”.
5. Criamos uma nova fobia, a da “solidão”?
Isso porque atualmente a solidão é entendida unicamente como
a falta de um
relacionamento romântico. Você
pode ter amigos e até parceiros sexuais, mas se não tiver
um “companheiro(a)” é definitivamente um solitário, quase
um inapto à vida social.
6. Qual é o nosso conceito
de maturidade emocional? É quando estamos prontos para viver um
relacionamento monogâmico? Esse é o nosso novo ideal de vida,
aquilo que mais desejamos e que é o centro da nossa existência?
Nossa “nova utopia”?
7. Por que atualmente a arte insiste
obsessivamente neste tema? Haveria quase que um consenso de enfoques ao
tratar dele?
Vamos precisar de um bom tempo para
resolver estas questões. Se é que poderemos fazê-lo.
Sugestão de leitura: Sem Fraude
Nem Favor, de Jurandir Freire da Costa
Eduardo
Fernandes (que não é o Dada), 25, webdesigner, formado em
Ciências Sociais pela PUC-SP, morador de São Paulo e colaborador
da Cardosonline e da TxT Magazine.
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