"Otelo, o Mouro de Veneza", com Folias D'Arte
por Karina Tengan
ka_bites@hotmail.com
17/07/2003

Um grupo de atores pouco conhecidos do grande público, um pequeno galpão em um local escondido no centro velho e decadente de São Paulo e um texto de Shakespeare pouco encenado em terras brasileiras. Bastaram esses elementos para que o grupo Folias D'Arte fizesse uma competente e impressionante montagem da peça "Otelo, o Mouro de Veneza", do dramaturgo inglês William Shakespeare. Fazer teatro, no Brasil, já não é tarefa das mais fáceis. Não bastasse a escassez de verbas para a área, as companhias ainda têm de lidar com um público já habituado às imagens fáceis da TV e do cinema de grande audiência. Difícil seduzir. Assim, os poucos espetáculos que sobrevivem normalmente se escoram em algum artifício. E acabam por atrair o público através de salas luxuosas em grandes e imponentes teatros, montagens que utilizam atores globais ou deprimentes versões tupiniquins de espetáculos da Broadway. Mas o que há de mais instigante no teatro contemporâneo não se encontra nesses poucos e privilegiados espaços. O novo, como sempre, está escondido e fora do grande circuito, mas basta um pequeno esforço para encontrá-lo. 

Do começo: o texto encenado pelo Grupo Folias D'Arte é baseado em uma tragédia shakespeariana que lida com os velhos, mas sempre atuais, temas: o amor, o ódio, a inveja, a cobiça e o preconceito racial. Conta a história de um guerreiro negro, um general enviado pelo governo de Veneza para enfrentar uma invasão turca à Ilha de Chipre, território estratégico nas rotas do comércio mundial. Otelo, o general, alcançou respeito e cargo defendendo seu país em guerras. Mais: com seu sofrimento e a narrativa de seus feitos heróicos, acabou conquistando o coração de Desdêmona, filha de um poderoso senador veneziano que não verá com bons olhos a união de sua filha com um general negro.

Nesta versão do Grupo Folias, o diretor Marco Antônio Rodrigues e o dramaturgo Reinaldo Maia optaram por suavizar a caracterização dos dois personagens principais, Otelo e Desdêmona. Na montagem do grupo, o Otelo vivenciado pelo ator Ailton Graça (intérprete do personagem Majestade no filme "Carandiru") apresenta-se bem mais alegre, terno e jovial, quase não bravata contra os seus superiores e mostra toda sua simplicidade em pequenas simbologias para declarar o seu amor a Desdêmona. Esta, por sua vez, mostra-se ainda mais doce na interpretação de Renata Zhaneta. E a opção pela delicadeza com os papéis do casal protagonista tende apenas a acentuar a ironia, a dissimulação e a inveja transbordantes do vilão Iago. Aqui o personagem, interpretado de forma primorosa pelo ator Francisco Bretas, apresenta-se muito mais cruel e com mais destaque do que na obra de Shakespeare. Prova incontestável de que os vilões costumam render personagens bem mais ricos e interessantes e, ao menos nesta versão, Iago cumpre à risca o seu papel e rouba (literalmente) a cena.

A atuação de Bretas, no entanto, de maneira alguma desmerece as demais e seria necessária uma outra resenha para ressaltar a qualidade dos outros atores. O que move todo o espetáculo é justamente a fina sintonia entre todos eles. Sintonia essa que é acrescida de valor quando interage com os elementos cênicos utilizados pelo grupo. A engenhosa produção, que consegue a proeza de destacar-se sem encobrir a ação do grupo, se casa perfeitamente com a história e a ação orquestrada dos atores.

O limitado espaço do Galpão do Folias torna pequena a distância entre espectador e cena, não há sequer um palco no sentido convencional do termo e os atores ficam a poucos palmos de distância, transformando um ambiente que poderia ser claustrofóbico em aconchegante. Tal limitação de espaço seria, em mãos pouco hábeis, um obstáculo pouco transponível, mas a montagem do Grupo Folias D'Arte soube utilizar a escassez em seu benefício e acabou por transformá-la em um elemento-chave para a plena apreciação do espetáculo. Cada canto do pequeno galpão foi aproveitado, os atores ocupam todos os espaços possíveis (até mesmo a estrutura de ferro que sustenta o teto do galpão), as arquibancadas se movem à medida em que o espetáculo requer uma maior ou menor proximidade da cena, os cenários são dotados de espelhos que aumentam ainda mais os diversos pontos de vista possíveis e os recursos sonoros surgem de todos os lados. Impossível ficar indiferente e inerte quando até mesmo as arquibancadas se movem e tremem sendo açoitadas pelos atores. E tudo isso planejado com um rigor estético que, não bastasse por si só, ainda complementa e potencializa a narrativa de amor, ódio e inveja encenada habilmente pelo grupo. 

Alguns séculos se passaram e a essência humana permanece inalterada, seja na Veneza de Shakespeare ou na Nova York pós 11 de setembro, o homem continua amando e odiando cegamente. Continua perdendo a razão quando esses sentimentos se tornam extremados e tragédias continuam ocorrendo em decorrência disso. A diferença é que, hoje em dia, a tragédia protagonizada pelos personagens Otelo e Desdêmona poderia até se repetir, mas os corpos jogados no chão, ao final do ato, não mais chocariam toda uma sociedade. Ou até chocariam, à princípio, mas em muito pouco tempo se misturariam a tantos outros atos trágicos, entre médicos que picotam suas amantes, filhos que planejam o assassinato dos pais e estudantes que metralham platéias de cinema. Pois é justamente aqui, onde tudo virou mero espetáculo e cada alma humana pode estar à venda ("for sale", se preferir), que Shakespeare se mostra mais atual do que nunca. Mais cruel até, se pensarmos que tantos anos se passaram, mas essencialmente, as vilezas humanas permanecem as mesmas e foram inclusive potencializadas no mundo de hoje. Aqui, onde Iago teria razões de sobra para esboçar o mais cínico sorriso de triunfo.


SERVIÇO
Temporada:  até 26 de outubro de 2003
Local:  Galpão do Folias (R. Ana Cintra, 213, Santa Cecília, próximo ao metrô Santa Cecília, tel: 3361.2223)
Lotação:  96 lugares
Horários: Quintas e sextas às 20:30h, Sábados às 21h, Domingos às 19h
Bilheteria:  de 4ª a domingo a partir das 16 horas – aceita cheques e reservas 
Preços: R$ 20,00 
Classificação etária: 12 anos
Estacionamento conveniado: R$ 4,00
Acesso para deficientes físicos
Realização: Folias d’Arte