Da Ruína Do Mercosul À Formação De Um Barril De Pólvora
por Leonardo Vinhas
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04/09/2006

Por toda a cidade, pessoas procuram saber se seus parentes estão entre as vítimas da guerra. Cartazes pedindo paz e bandeiras tremulam por toda a cidade, e nos televisores, a TV não cessa de dar notícias. Não, não estamos falando de uma área do Líbano ainda não atingida pela guerra, o lugar em questão é Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil.

A cidade que faz fronteira com Argentina e Paraguai abriga a segunda maior colônia árabe brasileira (São Paulo à frente) e também chineses, italianos, alemães, japoneses e outros tantos, bem como seus descendentes. O paraíso da multiculturalidade e o fim do mundo, ao mesmo tempo. O lugar onde é possível passar por três países em um único dia, onde a solidariedade e a ganância caminham na mesma rua.

É mero empirismo tentar explicar a razão porque Foz concentra tanta gente diferente. Já deram explicações místicas (a enorme concentração de águas e o Parque Nacional do Iguaçu atrairiam crentes e malucos de todos os tipos), geográficas (uma tríplice fronteira dividida por dois rios, Iguaçu e Paraná, cotados dentre os maiores do mundo) e econômicas (o comércio de fronteira, especialmente em Ciudad del Este, Paraguai). Provavelmente as três estão certas, além de vários fatores aleatórios, que atraem incautos para "passar um tempo", e que acabam ficando muito mais que o planejado. No meio desse cenário surrealista, a piada do Mercosul faz sentido e perde a graça, adquirindo contornos potencialmente trágicos.

Recentemente, o governo de Nestor Kirchner decidiu que todos que deixassem o território argentino deveriam pagar uma taxa de cinco pesos até às 22 horas e sete pesos após esse horário. Isso por via terrestre. Por via fluvial ou área, a taxa aumenta. Pode parecer algo irrisório para quem sequer pensa em ir à Argentina, quando muito cogita uma visita a Buenos Aires. Mas para quem reside na fronteira e a atravessa quase todos os dias para abastecer o carro com gasolina de melhor octanagem e 45% mais barata, para trabalhar ou mesmo para tomar uma Quilmes litro acompanhada de umas empanadas, o problema é bem diferente. E fica bem mais sério quando se lembra que o local é um pólo turístico e famílias e indivíduos de toda a classe de poder aquisitivo cruzam essa fronteira, sendo que uma "simples taxa" encarece o passeio e reduz muito as possibilidades da indústria turística local, uma das maiores fontes de emprego da região.

"Uma das" porque uma outra fatia considerável do mercado de trabalho está ocupada com o comércio, por assim dizer, ilegal de Ciudad del Este. A ironia cabe pelo seguinte: é notório que o Paraguai não cobra impostos de importação, assim, de originais europeus a falsificações chinesas. Não há o que você não encontre no comércio paraguaio que não seja muito mais barato que no Brasil. Não é de hoje que essa situação existe, e não é segredo para ninguém que a "proibição" só serviu para engordar o patrimônio de fiscais da Receita Federal e policiais federais que recebiam propina de contrabandistas ou extorquiam sacoleiros. Histórias desse calibre estão documentadas em várias páginas da imprensa local, outras tantas na memória coletiva. O que mudou?

Sete milhões de reais foram gastos na construção de uma nova aduana Brasil-Paraguai, valor orgulhosamente alardeado pela Receita (e não incluindo aí os gastos com a demolição do prédio antigo), para garantir, segundo o delegado local, "100% de fiscalização", para que ninguém entre com produtos ilegais (armas, cigarros, drogas, etc) ou acima da cota de 300 dólares de mercadoria.

Nada contra a fiscalização, que já deveria ter sido intensa desde o começo - no que tange aos produtos ilegais. Mas se o Mercosul é um acordo de livre comércio, "nos moldes da Comunidade Econômica Européia" (como já declarou o presidente Lula), por que há uma cota para a entrada de produtos legais? Na CEE, se você compra algo na Espanha, não é necessário acatar qualquer limite, caso você queira passar com a mercadoria para Portugal ou França ou qualquer outro país. Livre comércio, tal como apregoado pelos governos de Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, slogan reforçado agora com a entrada da Venezuela de Hugo Chávez no bloco. Mas que livre comércio, se ainda há violentos impostos para importação? Que livre comércio, se há uma cota de compras? Que livre comércio e livre passagem, se é necessário pagar uma taxa para cada vez que se for cruzar uma das fronteiras?

É um argumento válido que o Paraguai deveria rever sua posição tributária para não interferir com a saúde financeira do bloco. Seria fácil alegar concorrência desleal com a indústria dos demais países. Porém, enquanto não o faz, do que viverão os milhares de brasileiros e paraguaios que dependem desse comércio? Nada foi feito para "realocar essa mão-de-obra", como mencionou o governador paranaense Roberto Requião. Na verdade, tanto ele como as lideranças iguaçuenses falam em "oferecer condições de trabalho" aos que vivem do comércio fronteiriço. Porém, não se ouviu falar em sequer uma atitude concreta para garantir isso. Em 14 de agosto será inaugurada a nova aduana. Tumultos já são esperados para a data.

Também em relação ao livre trânsito na Argentina, os governos brasileiro e argentino deliberaram que moradores num raio de até 50 km da fronteira terão um passe livre. Entretanto, como esse passe será feito não foi falado e os operadores de turismo entram em polvorosa. Para ajudar, motoristas brasileiros são multados em 60 pesos (cerca de 50 reais) por não possuírem a Carta Verde, um seguro internacional de veículos que não é exigido em território brasileiro, paraguaio ou uruguaio, mas na terra de "nuestros hermanos" sim. O próximo passo, já declarou a Polícia Federal argenta, será apreender os veículos. As lideranças de Puerto Iguazu começam a entrar em desespero com o autoritarismo e os desmandos de seu governo federal, já que a cidade é mantida em maior parte pelo trânsito de compradores brasileiros.

Tensões se acumulam nos três vértices do triângulo e a história está longe de acabar. Quando foi a vez da PF brasileira brincar de xerife e apreender táxis e motos paraguaias (de forma um tanto aleatória, diga-se), formaram-se protestos que fecharam a Ponte da Amizade e renderam demonstrações de ódio dos trabalhadores paraguaios contra os brasileiros. Testemunhas que preferem permanecer anônimas contaram ter sido saudadas aos gritos de "vou te atirar da ponte, seu filho da puta, brasileiro viado, tá tomando meu emprego". As coisas se aclamaram desde então (isso foi em maio e junho), mas o bolo de encrencas volta a ser fermentado. E agora, do lado argentino também.

O mundo inteiro passa pela Tríplice Fronteira. Dá para se ver de tudo que o gênero humano oferece por aqui. Dá para ver também que a falácia dos governantes latino-americanos é tão vazia como as leis que promulgam. Que a frase principal de um dos maiores hits do rock argentino (Nunca Quise, dos Intoxicados), "somos índios latinos com guitarra elétrica e comunicados através da internet" deixa de ser um pedido de igualdade e vira um patético delírio de um adolescente um pouco mais instruído. E que o pavio do barril de pólvora está aceso.

Ah, sim, não foi mencionado neste texto que já há uma base militar norte-americana, com armamentos pesados, em Hernandarias (14km de Ciudad del Este), tampouco a pressão da CIA para instalar um "posto de observação" em Foz, veemente recusada pelo prefeito Paulo McDonald, com o apoio do Governo Federal (às vezes, eles trabalham). Claro que a CIA e o governo do Pai Bush não gostaram. Mas isso é outro assunto para outro dia. Muita água vai rolar ainda, e não é das Cataratas.