Forçação
de barra involuntária
por
Flávia Ballve B.
Parece que eu estou inventando mais
uma vez cenas perfeitinhas para me sentir mais próxima do meu ideal,
aquele ideal onde as meninas são magrinhas (e podem usar calça
pijama com camiseta de alça justinha, mas só, porque é
preciso conservar as carnes), mais charmosetes que belezuras, petulantes,
tem um peito redondo, de repente um nariz arrebitado, e se vestem desse
jeito casual, tão casual; construo todo esse cenário onde
sou assim, onde é impossível o mundo não se apaixonar
por essa menina-charmosa-interessante, meio escritora, tão básica,
enfim...
Aí ontem estou eu muito bem
descansada, depois de sair do trabalho, carregando umas tralhas, indo jantar
na casa de uma amiga que ainda não tinha chegado; resolvi então
me distrair, dar uma volta ali pelo bairro. Prosaico, casual, se não
fosse toda a forçação de barra completamente involuntária
que começou a me envolver : o bairro era o Quartier Latin em Paris,
com aqueles cafés e lojinhas charmosas cujas vitrines depois viram
cartõezinhos emoldurados na parede (sempre em três) em casas
supostamente moderninhas, muito bestinhas e que não perceberam ainda
o já passou disso, como pseudo-neo-punks bobões que ainda
acham que dá pra colocar sainha escocesa com camiseta estampada
da bandeira UK… Eu estava em plena Paris, no coração da cidade
(ou pelo menos onde os turistas gostam de achar que está o coração,
"bairro dos estudantes" vazio de nativos), carregando uma baguette (ooohhh!!!
os parisienses que passam carregando baguette na rua!), vestida de calça
xadrezinha de modelo corsário - mas não o corsário
cafona de hoje em dia, bermuda justa ou calçola larga de sandália
- camiseta branca, casaco de couro, mocassim baixinho de couro caramelo…
Ao invés das longas melenas cacheadas que ilustram a tchanzézima
sensualidade dos trópicos, estava com meu corte "francesinha", curtinho,
quase bagunçado, quase caindo nos olhos, um pega-rapaz ultra feminino
e charmoso, combinando comigo já que estou mais magra e ooooohhhh
as parisienses charmosas! carregando uma baguette!!!! no Quartier Latin!!!!!
Quando me dei conta que estava naquele
momento exatamente como sempre imaginei estar um dia, todo o conjunto charmosa-e-magrinha-de-cabelo-curto-porém-feminina-em-Paris-saindo-do-trabalho
etc etc, me senti numa espécie de Truman Show bem fajuto - e pior,
justo no momento em que ele toma consciência do truque barato. A
medida que eu ia percebendo esta minha transformação na tal
imagem de mim com a qual eu sempre tinha sonhado, olhei em volta afobada
como que para explicar ao mundo "não, ainda sou eu aqui, não
me transformei em um desenho animado", e, quase esperando achar as câmeras
que diriam Corta para todo esse charme em profusão que eu nem sabia
de onde vinha, percebi que eu estava na verdade às margens do Sena,
de frente para a Notre Dame, ao pôr do sol, e arrrghhhh, todos os
elementos dessa image de rêve chegando ao mesmo tempo, eu me senti
artificial, como se estivesse mentindo para mim mesma, uma vingança
da minha própria existência contra todas as vezes em que quis
forçar uma barra para alcançar uma situação
perfeita (ou isso é coisa só de mulher, que pensa "ah, eu
quero que minha primeira noite seja em frente à lareira, dois copos
de vinho tinto, colar de pérolas no tapete felpudo", numa propaganda
mal feita e brega? Não, porque afinal de contas o bom da vida é
quando a gente tem algum detalhe engraçado pra contar; um pof é
igual à todo esse romance, oras…)
Controlando um pouco minha respiração
ofegante, atrapalhada com a súbita consciência de estar participando
involuntariamente de um clichê monumental (Deus e seus diretores
publicitários devem estar quase vomitando lá em cima com
esse clip mal feito do estagiário), fui recobrando a calma e pensando…
de repente isso dá um texto… tenho que anotar todos os elementos…
essa porra desse sol se pondo e refletindo nas estátuas de ouro
às margens do Sena está me atrapalhando… deixa eu achar algum
lugar para sentar e botar isso tudo no papel... Fui me aproximando de um
café, para sentar numa mesinha da varanda enquanto o sol se despediria
e o garçon me traria um café com croissant e AAAARRRRGGGHHHH,
estou piorando tudo, continuo dentro desse seriado de 5a categoria, os
clichês só pioram, merci moço, merci, mas você
não entende, eu não POSSO me sentar nesse café charmoso
dessa rua charmosa às margens do Sena etc etc porque senão
eu vou estar concordando com minha presença nessa cena de novela
da Globo!!! novela das 7, cadê a Sandy que já já aparece
aqui para me roubar a cena???
Saí correndo; só parei
na esquina, pra coçar o saco e comer um churros. Que saudade da
época em que não acreditavam que não, seu taxista,
eu não fui sábado no pagode lá na Freguesia não! |