"Filhos do Carnaval"
por Drex Alvarez
Blog
08/03/2006

Para muita gente isso vai soar como uma proposta indecorosa. Afinal, fevereiro acabou de passar e, com ele, finalmente se foram todas as comemorações carnavalescas da terra brasilis, juntamente com suas respectivas coberturas mediáticas enfadonhas. E então, quando mal começa o alívio, a nova produção brasileira da HBO, Filhos do Carnaval, nos convida a acompanhar uma mini-série televisiva ambientada nos bastidores do carnaval carioca, com direito a ensaio de escola de samba e intriga entre chefões do jogo do bicho. Coisa de amigo-da-onça, só pode ser.

No entanto, se ainda houver guardado no fundo do saco de confete só um tantinho de paciência à toda aquela mis-en-scene de submundo carioca, pode confiar na qualidade do convite: Filhos do Carnaval começou prometendo que vem coisa boa por aí. A série de seis episódios, com direção-geral de Cao Hamburguer (Castelo Rá-Tim-Bum), dá continuidade à estratégia da HBO de investir em produções locais. No seu front latino, já são frutos desta iniciativa a brasileira Mandrake e a argentina Epitáfio, ambas transmitidas pelo canal de TV por assinatura no ano passado.

Aproveitando o espaço recentemente conquistado por algumas cinematografias estrangeiras e investindo num padrão de qualidade global, a estratégia da emissora norte-americana é explorar essas produções não somente nos seus mercados de origem. Mandrake, por exemplo, já tem veiculação programada para os canais da emissora nos Estados Unidos, e não somente naqueles apenas destinados ao público latino.

Neste sentido, Filhos do Carnaval parece ser uma aposta ganha. Aproveita os símbolos de brasilidade tão em voga nas rodas do primeiro mundo, explora um envento exótico mundialmente conhecido, e narra, com competência, a clássica saga da sucessão de poder numa família mafiosa. Pelo 'business plan', meus amigos, este produto não tem como dar errado. Mas é injusto tratar a série apenas como uma iniciativa de mercado. Esta é a perspectiva da HBO. O que nos interessa, como espectadores, é o resultado a partir daí. E, pelo que se pode ver pela estréia da série no último domingo, entre suas muitas qualidades e alguns defeitos, o resultado é digno de aplauso.

O primeiro episódio já mostra suas cartas. Ou melhor, seus algarismos - 1055, gato no jogo-do-bicho, é o número que aparece no sonho do chefão Anésio Gebara, e, temerosamente, é também o mesmo que identifica o túmulo de sua família. O agouro pega Anésio em cheio. Dono de 800 pontos de jogo e patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, o bicheiro, interpretado por Jece Valadão, está às vésperas de uma não-desejada comemoração de seus 75 anos. A iniciativa da festa foi de seu primogênito, Anezinho (Felipe Camargo), o filho mais querido e seu provável sucessor.

Como em toda boa família mafiosa, a prole do chefão evidentemente não pára por aí. O franzino Claudinho (Ernesto Diaz) é seu outro rebento legítimo. Vive afastado, com sua mulher e filho pequeno, administrando a lavagem de dinheiro. Os outros irmãos são bastardos: Brown (Rodrigo dos Santos), mestre-de-bateria na escola de samba, é temperamental e cheio de rancor por sua condição de não-assumido; seu contraponto é o calado Nilo, interpretado pelo rapper Thogum, um verdadeiro tanque de dois metros de altura que assume fielmente a posição de guarda-costas e motorista do pai.

Os ecos de O Poderoso Chefão são inescapáveis. E a tranferência dessa temática gangsta para o Rio de Janeiro também torna automática mais uma associação evidente - Cidade de Deus. Neste caso, entretanto, as afinidades são mais concretas. Filhos do Carnaval foi produzido em parceria com a O2 Filmes, a mesma produtora do sucesso de Fernando Meirelles. Isso depõe, já de início, a favor de todas as características visuais e técnicas da série. Direção de arte, fotografia, som, montagem (nas mãos de Daniel Rezende, o mesmo indicado ao Oscar por Cidade de Deus), tudo isso é irretocável. Para aproveitar toda essa qualidade em plenitude, no entanto, é necessário deixar de lado uma certa sensação de deja-vu. Está ali, novamente, a já célebre galinha magricela caminhando pelas ruas do submundo carioca, de novo captada com excelência para a película cinematográfica. Impossível também não lembrar de Buscapé ao ouvir a narração em off de Nilo. É a voz deste personagem, a partir de sua introspecção e distanciamento, que vai nos levar pelas desventuras de Anésio Gebara.

Mas vamos deixar Cidade de Deus para trás. Filho do Carnaval mantém aquela mesma competência visual, mas consegue também se destacar por seus méritos. O resultado visual, com a iluminação dançando entre os ambientes escuros e a superexposição rachada das praias cariocas, o filtro esverdeado compondo com a dominância das cores da escola de samba, conseguiu desenvolver uma identidade própria, importante para dar unidade a uma série de vários capítulos. O ritmo da narrativa, pelo menos neste primeiro episódio, também diferiu enormemente de qualquer aventura de Zé Pequeno. Foi lento, solene, perfeito para criar a tensão requerida pelos acontecimentos. Gerou o contraste necessário entre o clima de carnaval e a temátiva fúnebre e dramática do capítulo.

Quanto às atuações, é evidente que Jece Valadão é o grande trunfo de Filhos do Carnaval. Não obstante sua história pessoal de transições entre a cafagestagem e a religião, Jece Valadão tem a persona do gangster no cinema brasileiro (vide o clássico Boca de Ouro de 1963). Uma escolha que, de tão óbvia, mostrou-se extremamente feliz.

Felipe Camargo, nas devidas proporções, é um caso similar ao de Jece. Tem a estampa da sarjeta no rosto e é um ator competente. Chega a ser um desperdício não poder ser explorado mais extensamente. Ernesto Diaz construiu um personagem interessante e que certamente vai ter suas contradições melhor exploradas no decorrer da série. Tem uma veia cômica que deve ser uma das atrações daqui para frente. Os dois atores mais desconhecidos também parecem ser boas apostas. Rodrigo dos Santos, como Brown, ainda precisa encontrar melhor seu personagem, mas parece ter potencial para isso. O rapper Thogum, por sua vez, é uma grata surpresa. Econômico nas falas, conseguiu oferecer a força e o carisma que seu personagem pedia, equilibrando sua presença gigantesca com um olhar doce e reflexivo.

É impossível fechar os olhos, no entanto, e não perceber que Filhos do Carnaval sofre algo que parece já se tornar tradição na maioria das obras dramáticas brasileiras. Mesmo com um produção visual extremamente profissional e com bons atores à disposição, parece haver algo no texto que impede a obra de alçar vôos maiores. Apesar da boa amarração da trama, há algo nos diálogos, na construção e interação dos personagens, que não flui naturalmente. Ao mesmo tempo que não se atinge um realismo necessário para as cenas, essa frouxidão também impede que o tema e os conflitos atinjam um impacto mais profundo e adulto. É um mal crônico da pátria. Talvez tenhamos que, futuramente, importar alguns roteiristas argentinos. Poderia ser uma solução.

Apesar disso, vale a pena extender a batucada até o meio do ano e acompanhar a saga mafiosa de Filhos do Carnaval. Além dos méritos de abrir uma alternativa ao padrão de teledramaturgia da Globo e trazer para TV as conquistas da retomada do cinema brasileiro, é possível curtir suas qualidades com bastante prazer. E Jece Valadão, carola ou não, é o cara.


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Cidade de Deus, por Marcelo Costa

Site Oficial da série 'Filhos do Carnaval'
Grade de horários da série na HBO