"Avenida Dropsie" - Sutil Companhia de Teatro
por
Marcelo Costa Fotos: Divulgação/Site Oficial
maccosta@hotmail.com
11/04/2005
A primeira impressão: o cenário é acachapante. A cenógrafa Daniela
Thomas conseguiu colocar um edifício de três andares - e mais
de dez metros de altura - dentro do palco do Teatro Popular
do Sesi, em plena Avenida Paulista, em São Paulo. É neste
"edifício" que oito atores vão se quintuplicar para apresentar
ao público as histórias divertidas, melancólicas e humanas de
Will Eisner, o criador do Spirit, inspiradas em diversos
trabalhos do autor, como Nova York: A Grande Cidade (1987),
City People Notebook (1989), Pessoas Invisíveis
(1992) e Avenida Dropsie - A Vizinha (1995). A Sutil
Companhia de Teatro retorna ao território pop (o mesmo do sucesso
A Vida é Cheia de Som e Fúria e do suave Nostalgia)
para, mais uma vez, brincar com a memória usando projeções,
excelente trilha sonora e belíssimas atuações.
Will Eisner, que morreu aos 87 anos em Janeiro, é um dos autores
de quadrinhos mais influentes de todos os tempos. "É como se
Orson Welles tivesse feito Cidadão Kane e redefinido
o que se poderia fazer no cinema, e depois continuasse fazendo
filmes até hoje", tentou explicar Neil Gaiman, criador de Sandman,
à morte do ídolo, completando que ainda assim a analogia
não dava conta da grandiosidade de Eisner. Pelos desenhos do
quadrinhista é possível reconhecer uma metrópole apaixonada,
porém, perdida. Amiga, mas também estranha. Que te acolhe, e
te abandona, e te acolhe novamente, para depois te abandonar,
sucessivamente. A Avenida Dropsie "desenhada" pela Sutil
Companhia de Teatro poderia ser qualquer grande Avenida deste
país. "É especialmente interessante apresentar o espetáculo
em um teatro da Avenida Paulista, a identificação é imediata",
conta Guilherme Weber em entrevista ao S&Y.
"Trabalhar com o Will Eisner é incrível, pois ele consegue ser
muito sofisticado, com o humor peculiar dos judeus criados nas
calçadas da América, e ser muito popular, com uma comunicação
direta, potente e emocional com o interlocutor", continua o
ator, que também é autor e divide com o diretor Felipe Hirsh
as idéias, os projetos e os sonhos da Sutil Companhia de Teatro,
que levou o herói Rob Fleming, de Nick Hornby, para um palco,
com a excelente A Vida é Cheia de Som e Fúria, e ainda
conseguiu colocar Arturo e Camilla (citações de Pergunte
ao Pó, de John Fante) na lindíssima peça Nostalgia.
Avenida Dropsie, porém, trata da solidão coletiva, ao
contrário das duas peças do parágrafo anterior, que eram muito
mais pessoais. Dropsie fala das pessoas das grandes cidades,
que não olham nos olhos de ninguém quando andam na rua, que
não são capazes de sentir nada quando passam por alguém rastejando
no chão, que parecem cada uma viver um mundo totalmente particular,
cuja redoma de vidro invisível o protege dos iguais. Também
fala de seus sonhos, de sua poesia, das amizades. Humor e melancolia
se alternam no espetáculo. É possível rir em um segundo, e chorar
no seguinte. A Sutil, assim com Eisner, brinca com a emoção
de seu público.
Guilherme Weber faz 27 personagens no espetáculo. "São habitantes
de uma grande cidade - judeus melancólicos, punks, etc. Há até
um cover de Joey Ramone", conta. E chove muito na cidade. "São
quinze minutos de chuva que consomem doze toneladas de água.
Essa água é recolhida em uma calha embaixo do palco, tratada
com cloro e bombada para cima novamente para a noite seguinte.
É um efeito lindo e que só foi possível devido ao apoio incondicional
do Sesi", comenta o ator.
Mais do que qualquer coisa, Avenida Dropsie é a realização
de um sonho, é um grupo levando em frente o "faça você mesmo",
mostrando que se você quer realmente muito alguma coisa, você
tem que batalhar por isso, que vai ser muito difícil, mas que
ninguém nunca vai lhe poder negar a oportunidade de lutar, de
sonhar, de tentar. Nada mais explicativo do que as palavras
de Felipe Hirsh, no site oficial da Sutil. "Eisner soprou chuva
na minha juventude quando peguei nas mãos a minha primeira edição
de Contrato com Deus. Li, líamos, Will Eisner e John
Fante demais. Não sei se porque o Leminski traduziu o Fante
mesmo sem saber quem ele era, ou se porque o Eduardo Bueno,
lá do Sul, editava as obras do Will Eisner no Brasil. Só sei
que líamos muito esses homens e isso ficou gravado na nossa
alma como Krazy & Ignatz do George Herriman ficou na
do Will, como uma carta de amor escrita com faca fica marcada
na Pont Neuf por um século".
Segundo o diretor, a trilha da peça "ecoa nos prédios vozes
de crooners das décadas de 30 e 40 que freqüentavam a parada
da Billboard, canções proibidas na Lei Seca, música iídiche
da primeira metade do século, os 78 rotações da Antologia
do Folk Americano por Harry Smith, punks e rappers brancos
judeus do Brooklyn, se é que isso é possível". E não
é preciso ser um fanático
pelos quadrinhos de Eisner para assistir à peça. Avenida
Dropsie também é para
aqueles que nem sabem quem foi o quadrinhista.
Guilherme Weber fala mais sobre a peça, abaixo. Porém, o melhor
é se conduzir a Avenida Paulista, 1.313, e conferir, na quarta
e na quinta, às 20h, Sketchbook, e na sexta e sábado,
às 20h, e domingo às 19h, Avenida Dropsie. Detalhe: a
peça é gratuita e as filas enormes são inevitáveis. Conselho:
chegue bem cedo, leve um livro e aguarde que vale a pena. Outra
dica bacana é que o Teatro Popular do Sesi fica em frente a
Estação Trianon/Masp do metrô, o que facilita muito para quem
vem de fora e conhece pouco da capital. A peça fica até Julho
em cartaz. Aproveite. É imperdível. Ou, como diria o próprio
Will Eisner, é um pequeno milagre. "Eu sei que é difícil defender
milagres. Ou você acredita neles, ou não. Eu sempre acreditei
neles".
Eu também, Eisner, eu também.
S&Y - Como foi adaptar Will Eisner? E como você vê essa
linguagem de quadrinhos em um palco?
Guilherme Weber - Trabalhar com o Will Eisner é incrível, pois
ele consegue ser muito sofisticado, com o humor peculiar dos
judeus criados nas calçadas da América, e ser muito popular,
com uma comunicação direta, potente e emocional com o interlocutor.
Nossa idéia ao adaptar a obra nunca foi a de trabalhar com a
linguagem de quadrinhos, e sim pegar o realismo proustiano dos
textos e situações do Will. Claro que pela estrutura fragmentada
da obra, alguns cortes rápidos e expressões estilizadas estão
presentes.
Quando surgiu a idéia da adaptação e quando vocês começaram
de fato a trabalhar na peça?
Teve relação com a morte dele?
A idéia já rondava os nossos projetos e o convite para ocupar
mais uma vez o palco do teatro popular do Sesi (em São Paulo)
deu corpo a esta idéia. Queríamos fazer algo mais pop para o
Sesi depois da aridez de Temporada de Gripe. Isso tudo
aconteceu antes da morte dele... fomos surpreendidos coma noticia
no meio dos ensaios.
Na verdade, é uma peça divida em duas, ou são duas peças
que se fundem em uma? O que é Avenida Dropsie e o que
é o Sketchbook?
São duas peças distintas que mantém a mesma espinha dorsal.
Dropsie é o espetáculo oficial e o Sketchbook
é um espetáculo de experimento, de tentativas e rascunhos. Temos
meia hora de cenas novas no Sketch. É um espaço para
testes, e é um privilegio poder fazer estas experimentações
na frente do público, mas também é uma tarefa suicida. No final
das duas temporadas faremos um novo período de ensaios, definindo
um terceiro espetáculo, híbrido dos dois.
Há semelhanças da Avenida Dropsie com as milhares
das avenidas do Brasil?
O público brasileiro consegue se ver na peça?
Todo o movimento das grandes metrópoles guardam semelhanças,
dai o tão propagado clichê de que a peça é atual e pode ser
apresentada em qualquer parte do mundo. É especialmente interessante
apresentar o espetáculo em um teatro da Avenida Paulista, a
identificação é imediata.
Há muito de comédia, mas também há muito de melancolia e
até tragédia na peça.
Como foi dosar tudo isso no espetáculo?
Este equilíbrio existe na obra do Will, assim como de todo autor
judeu. Você pode encontrar este equilíbrio e esta quase dicotomia
em Sallinger, Updike e Bellow, que morreu ontem (05/04/2005). Nos preocupamos
em ser fiel ao espírito do Will e a dose de melancolia e humor
veio junto com a fidelidade.
Qual o seu trecho preferido da peça?
São muitos, mas poderia apontar a cena silenciosa do metrô,
aonde os pensamentos dos ocupantes são projetados na tela. Este
foco nos anônimos, nas pessoas invisíveis, como dizia o Will,
é sempre emocionante. Gosto também do final, intitulado "Pequenos
Milagres", aonde os dois pequenos e intimidados garotos judeus
conseguem escapar de uma surra usando uma perspicácia emocionante.
Will lutou muito contra o anti-semitismo e todo tipo de preconceito,
afirmando até que o preconceito era a base da decadência das
grandes cidades.
Como tem sido a reação do público?
A reação do publico esta sendo imediata, de grande identificação,
como imaginávamos que aconteceria. Estamos tendo uma grande
procura e já renovamos nossa temporada inicial para mais um
mês. Ficaremos até Julho em cartaz. A comunidade judaica também
tem comparecido em peso e com a total aprovação de Henry Sobel,
figura extraordinária e grande humanista.
Você consegue enxergar uma ligação entre Avenida Dropsie,
Nostalgia e A Vida é Cheia de Som e Fúria, talvez
as três peças com mais âmago de cultura pop da Companhia?
A ligação, como você mesmo falou, é a forte raiz pop dos três
espetáculos. Os três versam também - de alguma forma - sobre
a memória, principal foco de trabalho da Companhia. No Dropsie,
a memória aparece de maneira coletiva, diferente dos focos de
memória dos protagonistas de A Vida é Cheia de Som e Fúria
e Nostalgia.
Alias, vocês iriam montar novamente A Vida é Cheia de
Som e Fúria? Vai acontecer mesmo?
O sucesso do Dropsie adiou os planos de uma volta de
Som e Fúria. Na verdade não seria uma remontagem, pois
o espetáculo permanece no repertório da Cia desde sua estréia.
No final do ano passado o apresentamos em Portugal, Porto Alegre
e Curitiba novamente.
Vocês fizeram A Vida é Cheia de Som e Fúria em 2000,
e desde então, quando vejo pessoas conversando sobre música
pop, listas, Nick Hornby, acabam falando da peça, que foi vista
por mais de 100 mil pessoas. O sucesso de Fúria mudou
alguma coisa para você e para a Companhia?
Sim, foi este espetáculo que colocou a Companhia atuando no
eixo Rio-SP de maneira ininterrupta, alavancou patrocínios estáveis
que mantém a Companhia trabalhando, e para mim, pessoalmente,
me projetou para alguns trabalhos independentes da Cia e em
outras mídias, como o Cinema e a TV. Acho que Som e Fúria
é um espetáculo histórico pela sua longevidade e aceitação de
publico e critica, em se tratando de uma produção independente
e sem logística comercial.
Dropsie fica em cartaz até quando? Quais os próximos
passos da Sutil?
Dropsie fica em cartaz em São Paulo pelo menos até Julho,
com possibilidade de uma segunda renovação. O espetáculo fará
uma temporada internacional, com apresentações previstas para
Dublin, Belfast e Londres ainda este ano. Uma nova produção
com texto do Will Eno, o dramaturgo de Temporada de Gripe
também está na nossa pauta, além da criação do longa metragem
Insolação, com direção do Felipe Hirsh.
O que você anda ouvindo no momento?
Estou ouvindo muito Interpol e Bloc Party. Ainda não parei de ouvir o Morrissey (You Are The Quarry), Libertines e Franz Ferdinand, e mais gótico do que nunca, tirando o pó do The Cure (definitivamente minha banda favorita de todos os tempos) e Patti Smith e Beth Gibbons, relembrando o maravilhoso show no Brasil.
Na entrevista anterior, você nos contou que tinha adorado o Reveal do
REM. Ouviu o Around The Sun? Gostou?
Claro que ouvi. Confesso que gostei médio, declaração que me enche de tristeza.
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