"Zico – 50 Anos de Futebol"
por Fabio Bianchini
fabiobianchini@matrix.com.br
28/05/2003

Na noite de 2 de dezembro de 1989, encontrei-me com meu primo, torcedor do Fluminense. No Fla x Flu daquela tarde de sábado, o Flamengo havia imposto 5 x 0, com direito a um golaço de falta de Zico. A primeira parada da nossa conversa foi, claro, minha corneteação. Ele não respondia. Ao fim, apenas respondeu: “não sei que tanta graça tu achas. Quem perdeu o Zico foram vocês, não nós”.

Aquela partida fora a despedida do Galinho, o rei da maior nação do Brasil, dos gramados como jogador profissional. E eu ria. É verdade. Que graça eu achava? Do que eu ria? Imaginei que talvez a ficha não houvesse caído, que em algum lugar de minha cabeça eu ainda achasse que ele fosse estar escalado no meio da semana. Então, durante o resto da noite e em muitas outras, até o dia 6 do fevereiro seguinte e em várias ocasiões depois disso, lembrei-me do que eu vira Zico fazer em campo.

Lembrava, claro, daquele último gol. Mas lembrava também daquele contra a Iugoslávia em 1986, quando Zico fez misérias dentro da grande área deles e o Brasil venceu por 4 a 2. Daquele outro, pelas eliminatórias, contra o Paraguai, quando ele puxou a bola da calcanhar, colocou na frente e fuzilou. Daquele de cabeça contra o Atlético Mineiro, pelas semifinais do campeonato brasileiro de 1987, quando ele foi até o fim para levar mais aquele troféu para o Flamengo e coroar uma década abençoada, que nunca nenhum outro time teve igual no Brasil. Ou aquele contra o Cobreloa, que garantiu o título da Libertadores, que mais tarde levaria ao campeonato mundial, em uma partida em que não marcou, mas participou dos três gols, com pelo menos dois passes, o primeiro e o terceiro, ambos para Nunes, de gênio. Que tal a meia bicicleta contra a Nova Zelândia na Copa de 1982?

Também lembrei dos maus momentos. O pênalti contra a França. O estranho fenômeno Rossi em 1982. E, o pior de todos, a agressão do zagueiro do Bangu no fim de agosto de 1985, cujas conseqüências nunca deixaram Zico em paz. Cirurgia após fisioterapia após recuperação, ele nunca mais foi o mesmo.

Essas passagens e muitas (muitas mesmo) outras mais estão em "Zico – 50 Anos de Futebol" (Record), de Roberto Assaf e Roger Garcia. A obra é mais um entrevistão do que uma biografia no sentido aprofundado e esmiuçado. Quase todos os depoimentos são de Zico e é o lado dele das histórias que prepondera sempre. O trabalho de pesquisa aparece mais em trechos que o Galinho cita algum jogo e eles tratam de encontrar a sua data e local de realização.

Mas o fato de não ser um livro como, por exemplo, "Estrela Solitária" não rouba o prazer da leitura. É comovente ver o menino Arthur Antunes Coimbra crescendo, aprendendo a falar o nome de seu ídolo Dida antes mesmo dos de seus pais, para crescer e tornar-se uma figura ainda mais importante que ele para seu clube de coração. Assaf e Garcia recuperam o dia em que Seu Antunes, pai de Zico, viu o Flamengo jogar pela primeira vez e tornou-se rubro-negro, apesar da derrota.

Eles abordam também, sempre de forma rápida, mas clara, vários fatos confusos, como o corte de Zico da Seleção Olímpica de 1972 por causa de ligações políticas de seus parentes, o pacto no bar Barril 1800, em 1977, que marcou o início da era de ouro do Flamengo, as copas de 1978, 1982 e 1986, os bastidores da ida para a Udinese e a temporada italiana, quando Zico, mesmo em um time pequeno, foi o vice-artilheiro, um gol atrás de Platini, da poderosa Juventus, que jogou três partidas a mais. E mesmo lá, nunca foi derrotado por Maradona, que precisou fazer um gol de mão para o Napoli empatar com a Udinese. Também são lembrados a decisão de abandonar o futebol, o cargo de secretário no governo Collor, a ida para o Japão, e, como auxiliar-técnico de Zagallo em 1998, o corte de Romário e as convulsões de Ronaldo. Vários desses casos são acompanhados de revelações inéditas.

De alguma forma, rever tudo isso sob esses novos ângulos é mais uma forma de não deixar Zico ir embora. Claro que a cada passe desastrado no meio campo do Flamengo ou da Seleção, ou quando vimos Arilson entrando em campo com a 10 amarelinha, pensamos no quanto seria melhor se ele ainda pudesse estar no gramado e fazer tudo o que fazia, mas ainda se o fizesse, seria uma contribuição de um grande jogador. E Zico não é só isso. 

Quando vimos Rodrigo Mendes ir à casa do Mestre no dia seguinte ao de seu gol de falta que rendeu a vitória sobre o Vasco e garantiu o campeonato carioca de 1999, o primeiro da série de três seguidos sobre nosso pretenso maior rival ou quando Petkovic concluiu, também com gol de falta, a mesma trilogia, em 2001, sabemos que não é assim. A cada vez que vemos um Sávio ou um Athirson mostrar que pode ser um gênio, é de Zico que lembramos. Sempre que acertamos um passe genial ou improvável na pelada, mesmo que ninguém mais note, sobe aos nossos lábios aquele sorriso a lembramos da inspiração. Se o passe é de longa distância e deixa o companheiro na cara do gol, aí é impossível deixar de comentar: “esse foi de Zico, hein?”

A lealdade de Zico, sua firmeza na busca dos propósitos, a disposição em sacrificar-se em nome do futebol, o exemplo de profissionalismo e retidão de comportamento dentro e fora do campo são notáveis e serão sempre lembrados. Mas são apenas os recursos de que ele lançou mão para poder mostrar o mais importante: a mágica do que fazia com os pés. E isso está encravado no coração de todos os jogadores que honram o Manto Sagrado ou mesmo os que não tiveram essa oportunidade, mas fazem questão de declarar que foi o Galinho o seu modelo. E é por isso que, queira ele ou não, nunca perderemos Zico. E é por isso que eu ria.