Vozes do Deserto - Georges Bourdoukan
por Leonardo Vinhas
lvinhas1@yahoo.com.br
21/09/2004

"No deserto (...) o pouco que vemos é devido ao pouco que somos".
(Georges Bourdoukan)

Quando o Scream & Yell encerrou suas atividades em 2003, me aventurei no malfadado Lado 1 (se você não sabe, não precisa saber) e, logo depois, desisti de escrever. O nível rasteiro das pessoas que comigo conviviam nesse estranho mundinho da "cultura pop" me provocou um desânimo tão grande que o máximo que eu sentia pelo assunto era indiferença.

Na época, trabalhava como professor de Comunicação e Expressão na cidade de Campos do Jordão, o que proporcionava um contato único com meus alunos (a maioria deles, carente de recursos financeiros e de atenção), e constantemente adentrava lugares de beleza singular em longas caminhadas nos fins de semana.

Tudo isso me deu a sensação de ter regredido ao útero – não o de minha mãe, mas o de Deus – e estar novamente sendo amamentado por um leite de vida que não corre em nenhum lugar a não ser num seio de um Deus que também é mãe. Naquele momento, somando a vivência de um amor mais profundo e sereno com uma pessoa inesquecível, se tornava desnecessária e até vazia a idéia de sentar e escrever algo, já que era preferível continuar escrevendo em minha própria vida.

Mas outros acontecimentos e uma óbvia imaturidade (meu erro maior foi crer ter encontrado tudo o que precisava na vida, quando na verdade era tudo o que eu precisava para "aquele momento" de minha vida) mudaram o curso das coisas, e tudo isso começou a me escapar das mãos. Aquele trabalho não mais me pertencia, o amor não foi devidamente cultivado, a natureza parecia uma desconhecida e Deus um enigma cínico e desconhecido.

Não consegui lidar com isso, fui perdendo todo vestígio de rumo ou senso, resultando em surtos de loucura, depressão e idéias de suicídio. Quando tentei levar esse último a cabo, percebi que algo estava muito errado e que precisaria começar tudo de novo. Saber o que eu queria perguntar para ver onde eu deveria chegar.

Embarquei numa jornada de autoconhecimento que envolveu fatos demasiadamente diversos para serem listados aqui, porém, um livro me acompanhou no período mais recente desse caminho e isto que trago neste momento: Vozes do Deserto, do libanês naturalizado brasileiro Georges Bourdoukan.

Bourdoukan é escritor em tempo integral, colunista da revista Caros Amigos e autor de A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro, O Peregrino e O Apocalipse. O livro Vozes do Deserto é um misto de ficção livre, crônicas e relatos de uma viagem pelo deserto de sua terra natal, "o deserto das parábolas e dos provérbios, o deserto dos beduínos, berço do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Três religiões com três nomes diferentes para o mesmo Deus. Por isso nunca vão chegar a um acordo". Partindo de Petra e chegando até Argel, o autor, muçulmano cético e avesso ao fatalismo, narra sua passagem por um lugar onde "só se encontra o que se busca", onde as respostas, quando surgem, geram mais perguntas e onde a liberdade não é um conceito, mas ou um fato, ora uma benesse gloriosa a ser celebrada, ora uma privação dolorosa.

É difícil para muitos imaginar um lugar onde todos estejam literalmente à própria sorte, onde a solidariedade salva uma vida (e consequentemente, "a humanidade") e a ganância destrói várias. Porém, não seria absurdo pensar que nesse aspecto, o deserto apenas torna evidente o que nossa falsa modernidade tenta em vão esconder. Em nossas traquitanas eletrônicas; em nossos equipamentos cômodos, dispendiosos e ineficazes; em nossos conceitos abstratos e bem pouco palpáveis de "certo', "justo" e "libertador", em nosso materialismo rutilante; estão disfarces para o exercício de aprendizado de vida que é nossa existência. Disfarces que aumentam a angústia de quem sabe que não veio ao mundo para passar o tempo, mas para fazer algo mais forte, consiste e transformador. Em dignificar a sua existência, e mesmo a de outrem. Mas o que é essa dignidade? Como ter fé de que é possível tê-la? Aliás, como é possível ter fé?

São perguntas que a jornada de Bourdoukan desperta em cada leitor. O próprio autor não duvida da existência de Deus, mas com freqüência mostra que lhe custa crer que Ele se importe com os homens. Lembrando os mais abjetos fatos históricos (muitos deles cometidos em nome de Deus, Allah ou Javé), contemplando a miséria e a podridão reinante (não só nos poderosos, mas também nos que rastejam junto à maioria dos menos afortunados), o viajante trata Deus com um misto de cinismo e raiva, mas consegue reconhecer nele algo indizível, inenarrável, que, se não o orienta em sua jornada, pelos menos lhe fornece meios para mudar seus rumos.

Os questionamentos de Bourdoukan por vezes beiram o negativismo, mas não faltam momentos em que sua paixão pela vida supera a raiva de quem conheceu a miséria na carne e mesmo hoje, financeiramente distante dela, não se relega ao papel de observador social de pobreza televisiva e "cidadededeusiana'. Em vez do socialismo porco de botequim que permeia os resquícios de nossa classe média, Bourdoukan é muito concreto e enfático ao lembrar que aquele que está coberto de pústulas não apenas "poderia ser ele", mas é ele, pois no deserto "o eu é o outro".

Não sei as respostas que vou obter em minha jornada. Estou apenas começando e sequer sei quando tempo vai durar. Espero que dure o tempo que eu estiver nesse plano de existência, e que eu nunca mais queira abreviar voluntariamente esse tempo. Continuo tentando escrever em minha própria vida, mas agora é bom rascunhar no papel.

Vozes do Deserto não se tornou meu livro de cabeceira nem um almanaque de provérbios socio-religiosos. Foi um companheiro de viagem que me ensinou a olhar mais para a vida, menos para o céu e não raro para o passado.

George Bourdoukan
Vozes do Deserto
Editora Casa Amarela, 2002


Leonardo Vinhas tem 25 anos e pouca sabedoria. Dedica esse texto a Deus, que está sempre ao seu lado ainda que ele às vezes não o reconheça.