"Eu Sou Charlotte Simmons" - Tom Wolfe
por Jonas Lopes
Yer Blues
17/06/2005


2005 está sendo um "ano Tom Wolfe" no Brasil. Em março saiu pela primorosa coleção de jornalismo literário da Companhia das Letras a coletânea de reportagens Radical Chique e o Novo Jornalismo, escritas no tempo em que ele ainda era repórter, nas décadas de 60 e 70. Em maio o próprio autor veio ao País dar uma palestra na Bienal do Rio e fazer um preview de sua terceira obra de ficção, que aporta nas livrarias brasileiras alguns meses depois de ser lançada lá fora. Assim como A Fogueira das Vaidades e Um Homem Por Inteiro, Eu Sou Charlotte Simmons (Editora Rocco, tradução de Pinheiro de Lemos) é um catatau: 684 páginas na edição nacional, contra 625 e 662 dos outros dois, respectivamente.

Pena que as semelhanças fiquem por aí. Ao contrário dos excelentes romances anteriores, Eu Sou Charlotte Simmons é decepcionante. Wolfe tinha um grande tema nas mãos – a vida universitária americana e seus desdobramentos – e não conseguiu desenvolvê-lo com sucesso. Perto de Este Lado do Paraíso (F. Scott Fitzgerald), um clássico do assunto, Charlotte Simmons é pálido. O livro é raso, esquecível. Não há densidade, a narrativa evapora na cabeça do leitor. Em momento algum o livro faz pensar. Muito pouco para quem não lançava um romance há cinco anos.

Boa parte do problema está no fato de ser um livro sobre pessoas entre dezoito e vinte e dois anos, escrito por alguém de setenta e quatro. Wolfe não conseguiu manter um distanciamento entre sua geração e seus pensamentos e o tema proposto. Julgou esse tema. Isso deixou as personagens exageradas, inverossímeis e, pior, estereotipadas. É como um senhor que olha para uma turma de delinqüentes, balança a cabeça em negativa, um tanto desapontado e altruísta, e sente apenas comiseração. Um problema, já que a missão número um de todo satirista social (como Wolfe se pretende) é manter-se neutro em relação ao objeto satirizado. Não pode admirá-lo nem desprezá-lo em excesso.

A Charlotte Simmons do título é uma caipira de um vilarejo de 900 habitantes situado no alto das montanhas da Carolina do Norte. Charlotte é linda, brilhante e inteligentíssima. Torna-se o orgulho da cidade após ser aceita na fictícia Dupont, na Pensilvânia, uma das mais conceituadas universidades do país. Um alívio para ela, que não agüenta mais a limitação intelectual de seus colegas. Só um detalhe: garota sulista e interiorana que é, Charlotte é virgem convicta, não fala palavrões, não bebe e espera adentrar uma vida acadêmica estimulante e cheia de colegas tão cultos quanto ela. Como diria Nelson Rodrigues, "a moça é virtude da cabeça aos pés".

Não é bem isso que encontra. Os estudantes de Dupont bebem toneladas todas as noites, falam um palavrão a cada duas ou três palavras, não se importam com a universidade, têm interesses fúteis e, para pesadelo de Charlotte, não só fazem muito sexo como também conversam sobre isso em público (um horror para ela). Os outros personagens complementam a história são todos estereótipos, assim como a culta virgem: o jogador de basquete com cérebro do tamanho de uma ervilha, a patricinha raquítica que fala ao celular o dia todo, outro rapaz genial e assexuado, o playboy bon vivant que deseja se tornar uma lenda em Dupont, os ativistas de esquerda que lutam por direitos raciais e sexuais (Wolfe é republicano, e adora zombar do liberalismo democrata).

A impressão que fica é que Wolfe sente pena de seus personagens. Extrai deles o seu lado mais ridículo. Quando tenta transformá-los é ainda pior; fica forçado. Charlotte perde a virgindade e vira outra pessoa no fim do livro. Só que Wolfe não oferece sustentação psicológica para a mudança, nem para a de nenhum outro personagem. É como se o ser humano não pudesse ser contraditório, apenas preto ou branco, inteligente e sem vida sexual ou hedonista e descerebrado – uma simplificação pobre. Não há ambivalência, meio-termos. A cena do defloramento de Charlotte, aliás, é um tratado de chauvinismo que rendeu ao escritor o Bad Sex Prize de 2004, prêmio dedicado à pior descrição sexual feita em uma obra literária.

Outros pequenos defeitos estão espalhados pelo romance. Em um capítulo Wolfe descreve a família de um advogado e ex-aluno de Dupont, que vai a uma festa tradicional na universidade para relembrar seus tempos de estudante. A família desaparece do resto do livro, não volta em momento algum. Uma aparição desnecessária. Outra falha grave: o desfecho do livro é apressado e pouco desenvolvido. Paradoxo: depois de quase 700 páginas, muitas delas com trechos editáveis, terminar com pressa é pedir para irritar o leitor.

Tom Wolfe tem duas grandes qualidades como escritor, e nenhuma está presente em Eu Sou Charlotte Simmons. Em uma delas, quase chegou lá: sua incrível capacidade de pesquisa e observação. O autor é seguidor assumido da escola de romances realistas-sociais do século 19, feitos por seus ídolos Dickens e Balzac (ao invés do romance psicológico de Joyce e Proust). Seus livros sempre refletiram isso, através de digressões panorâmicas por diversos aspectos da sociedade. Wolfe já dissecou Wall Street, o jornalismo, disputas raciais, política, sistemas penitenciário e judiciário, e todo tipo de corrupção e amoralidade.

Wolfe costuma dizer que, para escrever seus romances, utiliza o processo de reportagem. Ou seja, muita pesquisa e apuração. Para esse livro, passou meses em universidades americanas, analisou os alunos e toda a vida acadêmica. A pesquisa foi até boa, ainda que inferior a de seus outros livros. Tom conseguiu absorver alguns comportamentos, ícones da cultura popular, gírias e o modo de falar dos estudantes (o dialeto da Gíria da Foda é cômico). Só que depois de juntar um material incrível, Wolfe resolveu julgá-lo, e pôs a perder todo o trabalho.

As boas piadas representam a outra qualidade de Tom Wolfe ausente no livro. Os toques de seu velho humor surgem de vez em quando, soterrados por um amontoado de clichês desnecessários e previsíveis. Essas sacadas são poucas e raras, longe da abundância de gargalhadas proporcionadas a cada página por Os Eleitos (sua obra-prima, uma das melhores reportagens já escritas) e A Fogueira das Vaidades. E o repertório humorístico de Wolfe está esgotado, reclama com urgência uma reciclagem.

É a primeira vez que não vale a pena ler as centenas de páginas de um livro de Tom Wolfe. O calhamaço cansa até os admiradores mais fiéis do escritor – e esses fãs sabem como a leitura de seus outros livros voa e flui. Mais interessante correr atrás da coletânea Radical Chique e o Novo Jornalismo e lembrar do quanto ele costumava ser bom.

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Tom Wolfe
Editora Rocco