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'Herzog', de Saul Bellow
por
Jonas Lopes Gymnopedies
04/09/2006
"Eu
era como um pobre que mistura menos lágrimas a seu pão seco
se diz a si mesmo que dali a pouco um estranho vai lhe deixar
toda sua fortuna. Para tornar a realidade suportável, somos
todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro
de nós"
(Marcel Proust, À Sombra das Moças em Flor)
Moses Herzog está em crise. Seu segundo casamento acaba de fracassar.
Sua esposa Madeleine o trocou por seu melhor amigo, Valentine.
Sua filha está a centenas de quilômetros de distância. Seu filho
do primeiro casamento o vê como uma figura excêntrica, distante,
ridícula. Longe dos dias de acadêmico brilhante, ele agora dá
aulas para adultos em uma escola noturna. Seu aguardado pós-doutorado
sobre o Romantismo resultou em "oitocentas páginas de argumentação
caótica". Todas as pessoas ao redor - amigos, irmãos, colegas
de trabalho, a ex-sogra, o médico, o advogado - vinham tratando-o
como a um louco, "e por algum tempo ele mesmo duvidara que estivesse
são". Será? "Se estou louco, tudo bem", pensa. A única pessoa
que parece compreendê-lo é sua jovem namorada argentina Ramona.
Ele precisa de alguma forma dar a volta por cima. Herzog começa
a se sentir "confiante, alegre, lúcido e forte" e passa a escrever
cartas para "todas as pessoas do mundo". Afinal, "tinha sido
tomado pela necessidade de tudo explicar, contar, justificar,
pôr em perspectiva, esclarecer, corrigir". As cartas são a forma
que o protagonista do sexto romance de Saul Bellow, Herzog,
de 1964, encontra para exorcizar os demônios internos que o
vêm acometendo depois das tragédias pessoais. Ele nunca envia
as cartas - o simples fato de escrevê-las ou imaginá-las o alivia.
Entre os destinatários, as duas ex-esposas, o psiquiatra, o
monsenhor que converteu Madeleine ao catolicismo; e também gente
mais ilustre: Nietzsche. Adlai Stevenson. Heidegger. Deus. Ele
mesmo.
Herzog inteiro se passa em poucos dias (fisicamente,
ao menos; grande parte se passa na cabeça de Moses, que reconta
sua vida): Saul Bellow não precisa de mais do que isso para
traçar um dos mais profundos perfis psicológicos de uma personagem
que as últimas décadas viram. Herzog é um poço de contradições
que, em conflito, confundem-se e deságuam em sua personalidade.
É um intelectual brilhante, mas sua erudição não impede que
cometa atitudes inacreditavelmente juvenis. É lúcido e consciente
do quão patéticas são essas situações, e mesmo assim não consegue
conter os impulsos e torna a cometê-las. "Herzog era um pouco
débil mental, nada prático, embora intelectualmente ambicioso
e de certa forma também arrogante".
Saul Bellow era um romancista à moda antiga. No discurso que
fez ao receber o Prêmio Nobel, em 1976, atacou Alain Robbe-Grillet
e o pessoal do nouveau roman por decretarem o fim do romance
de personagens. Orgulhava-se por centrar seus livros nos indivíduos
e, através deles, tentar entender um pouco mais o seu tempo,
seu país e a condição humana. Não à toa, Bellow, falecido em
2005, era tido como o mais russo dos autores norte-americanos.
Por certo, como nos grandes romances de Dostoiévski, seus protagonistas
erram em busca de um sentido para a existência, alternando lucidez
e filosofia com tormentos da alma, amor pelo sofrimento e falta
de senso de ridículo. O próprio Herzog já foi comparado ao príncipe
Michkin, de O Idiota, e também aos protagonistas de Tchekhov.
Bellow, como leitor, rejeitava as novidades passageiras. Recorria
sempre a seus favoritos: franceses e russos do final do século
19, Conrad, Shakespeare, o Antigo Testamento.
Esse embate entre o arcaico e o moderno norteia Herzog.
O romance é um grito de desespero humanista - um pedido de socorro,
um aviso do que está por vir, um libelo desencantado em defesa
do indivíduo. Com o instinto dos gênios, Bellow anteviu os efeitos
que a contracultura e as mudanças sociais dos anos sessenta
trariam: "Estavam demolindo e levantando edifícios. A avenida
estava repleta de caminhões que faziam concreto, trescalando
cheiro de areia molhada e cimento. Embaixo, os bate-estacas
batiam e golpeavam (...) na rua, os ônibus exalavam fumaça venenosa
de combustível barato e os carros se amontoavam. Era sufocante,
triturante, a horrível confusão das máquinas e da multidão desesperadamente
resoluta".
Em meio ao concreto, pessoas. As formigas humanas das recém-formadas
massas são enquadradas num cotidiano mecânico, cada vez mais
apressado e menos reflexivo - o início de um processo cujos
efeitos sentimos hoje mais do que nunca. Bellow levaria os contrastes
urbanos ainda mais a fundo em O Planeta do Sr. Sammler,
na famosa cena em que um negro persegue Arthur Sammler pelos
becos de Nova York, encurrala-o e mostra-lhe seu membro. Por
trás de tudo, afinal, estão as relações, e elas estão se deteriorando.
Há um trecho de Proust que sintetiza o comportamento de Moses
Herzog:
"No solitário, a reclusão, mesmo sendo absoluta e durando
até o fim da vida, tem muitas vezes por principio um amor desordenado
da multidão que o avassala tanto, acima de qualquer outro sentimento,
que, não podendo obter, ao sair, a admiração do porteiro, dos
transeuntes, do cocheiro ali parado, prefere nunca ser visto
por eles e, por isso, renuncia a toda a atividade que o obrigasse
a sair de casa".
Dá para não fazer referência a Proust (outro autor estimado
por Bellow), quando a segunda esposa de Herzog se chama Madeleine?
Como o biscoitinho de Marcel, a visão da ex-mulher traz ao nosso
herói muitas recordações; diferentemente do francês, as recordações
não são lá muito positivas. Por ela, Herzog abandonou um bom
cargo numa universidade e se mudou para uma casa de campo caindo
aos pedaços, nos cafundós da Nova Inglaterra. Lá eles conhecem
Valentine Gerbach, que logo se torna o melhor amigo de Moses
e depois amante de Madeleine. Ela, aliás, é um show à parte:
inteligentíssima e manipuladora, abandona o marido quando sua
situação intelectual já não depende mais dele. Em um mundo onde
o humanismo está em decadência, compaixão é um valor falido.
Bellow, venenoso, usa seu interlocutor para alfinetar as feministas
que costumam tachá-lo de misógino: "Nunca entenderei as mulheres.
O que elas querem? Comem salada e bebem sangue humano".
Mesmo com toda a vontade de fazer as coisas direito, Herzog
não acerta. Seus impulsos sempre o levam a flertar perigosamente
com o patético. Ele viaja de trem para visitar uma velha amiga
na praia e relaxar do caos de Nova York. Chega na casa dela,
sobe para se trocar e percebe que não deveria estar ali. Escreve
um bilhete, sai escondido e volta para NY de avião, poucas horas
depois de ter saído de lá. Em outra cena, ele vê sua filha depois
de uma longa ausência e a leva para passear. No seu bolso está
uma arma de seu finado pai, que antes de pegar a criança ele
havia tirado da gaveta de sua ex-madrasta moribunda. Herzog,
claro, bate o carro, a polícia descobre a arma carregada e sem
registro e ele é detido. Madeleine tem mais uma chance de provar
seu desequilíbrio mental: outro gol para ela.
Em suas frenéticas cartas mentais, Herzog tenta entender o caos
que o cerca. Sim, ele "diz" a Nietzsche, a patuléia vive seus
dias finais, aquela "ralé comum, prática, ladra, fedorenta,
estúpida, sem luzes"; só que as pessoas cultas serão levadas
junto com elas: "a humanidade", avisa ao pensador alemão, "vive,
principalmente, de acordo com idéias pervertidas. Pervertidas,
suas idéias não são melhores que aquela do Cristianismo, que
você condena". A Heidegger, pergunta: "gostaria de saber a que
o senhor se refere quando usa a expressão 'a queda no cotidiano'.
Quando ocorreu esta queda? Onde estávamos, quando isso aconteceu?".
Com "tenta entender o caos" eu quero dizer "tenta entender a
si mesmo". Herzog nunca consegue descobrir se está louco, como
afirmam Madeleine e Valentine, ou se é o mundo que está errado.
Ao assistir o julgamento de uma mãe que assassinara o próprio
filho, só consegue exclamar: "Não posso entender!". Seus sentimentos
quanto à humanidade são, como tudo em Moses, paradoxais. Embora
às vezes a rejeite ("Será que amo a humanidade? O suficiente
para salvá-la se tivesse poder para mandá-la ao inferno?"),
no caso do menino assassinado pela mãe, sofre com sinceridade:
"não conhecia nada a não ser seus próprios sentimentos humanos,
nos quais não achava nada útil. E se chorasse? Ou orasse? (...)
e pelo que podia rezar na moderna, pós... pós-cristã América?
Justiça? Justiça e mercê? E afastar com preces a monstruosidade
da vida, o sonho mau que ela é?". Em seu sentimento de impotência,
Moses Herzog é um niilista do niilismo. Não é que Deus esteja
morto; Ele só é a morte. E não há humanismo que resista a uma
certeza dessas.
Apesar de toda a reflexão, Herzog é, em essência, um
romance cômico, daquela comicidade típica dos judeus. Não faz
apenas rir; faz gargalhar, nos momentos mais inspirados. É um
dos livros que mais se aproximaram daquilo que Brás Cubas queria
dizer com algo escrito "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia".
O próprio Herzog, no fim do livro, consegue rir de si mesmo
e se conformar. "Posso ter a pretensão de muita escolha? Olho
para mim mesmo e vejo pernas, coxas, pés, uma cabeça. Esta estranha
organização, sei que morrerá (...) O que você quer, Herzog?
Só isto - e não ser uma coisa solitária. Estou muito satisfeito
em ser, ser somente como desejo, e permanecer na posse disto
tanto tempo quanto puder".
Ele agora está pronto para finalmente se entregar à adorável
Ramona - seu amor pelo sofrimento será colocado em banho-maria.
E já pode abandonar as cartas. "Naquele momento, não tinha mensagens
para ninguém. Nada. Nem uma palavra".
PS: Uma nota para lamentar o tratamento editorial recebido por
Saul Bellow no Brasil. Sua obra, atualmente em domínio da Rocco,
vem sendo bastante negligenciada. Os únicos títulos em catálogo
são os livros pós-Nobel que, embora sejam muito bons (sobretudo
Ravelstein, o último), não representam sua melhor fase.
As obras-primas - Herzog, O Legado de Humboldt, O Planeta
do Sr. Sammler, Henderson, o Rei da Chuva - só podem ser
encontradas em sebos, em edições da era mesozóica. Em um país
sério, Bellow teria uma estante só para si, como acontece com
autores best-sellers por aqui. Mas como estamos no Brasil...
Trechos
"De início fazia notas desconexas. Eram fragmentos, sílabas
sem sentido, exclamações, provérbios, citações distorcidas ou,
segundo o iídiche de sua mãe, trepverter - respostas que vêm
à mente quando já estamos descendo as escadas.
Escrevia, por exemplo: Morte - morrer - viver novamente - morrer
de novo - viver.
Ninguém, morte nenhuma.
A alma penitente de joelhos? Pode até ser útil. Esfrega o chão.
Em seguida: Responda a um tolo de acordo com sua tolice e ele
será sábio. Não responda a um tolo de acordo com sua tolice
e você será tolo como ele. Escolha.
Fazia também anotações como esta: Segundo Walter Winchell,
J.S. Bach calçou luvas negras para compor uma missa de réquiem.
Nem Herzog sabia o que pensar de seus rabiscos. Abandonava-se
à excitação que os inspirava e às vezes suspeitava que fossem
um sintoma da desintegração. Mas não se assustava. Deitado no
sofá do apartamento kitchenette que alugara na Rua 17 imaginava
ser uma indústria de História Pessoal e analisava a si mesmo,
do nascimento à morte. Escreveu num pedaço de papel:
Não posso justificar.
Examinando sua vida, conclui que havia feito tudo errado - Tudo.
Sua vida estava arruinada, mas desde que não houvera muito para
começar, não havia muito para lamentar. No sofá fedorento, enquanto
meditava sobre os séculos dezenove, dezesseis e dezoito, extraiu
do último um ditado que gostava:
Tristeza, Senhor, é uma espécie de frivolidade".
(...)
"Mas como descrever tal lição? A descrição poderia começar com
sua selvagem desordem interna, ou mesmo com o fato de estar
tremendo. E por quê? Porque deixava o mundo inteiro pressioná-lo.
Por exemplo? Bem, por exemplo, o que significa ser um homem?
Numa cidade. Num século. Em transição. Em uma massa. Transformado
pela ciência. Sob o poder organizado. Sujeito a mecanismos de
controle tremendos. Num estado decorrente da mecanização. Após
o último fracasso das esperanças radicais. Numa sociedade que
não era comunidade nenhuma e depreciava a pessoa. Em virtude
do multiplicado poder dos números, que tornavam a pessoa desdenhável.
Que consumia bilhões em despesas militares contra inimigos externos,
mas não gastava para ter ordem dentro de casa. O que abriu caminho
para a selvageria e a barbárie em suas próprias cidades grandes.
Ao mesmo tempo, a pressão de milhões de pessoas que descobriram
o que esforços e pensamentos unidos em comum acordo podem conquistar.
Enquanto megatoneladas de água formam organismos no fundo dos
oceanos. Enquanto as marés dão polimento às pedras. Enquanto
os ventos escavam os rochedos. A beleza da supermaquinaria descortina
uma vida nova para a humanidade inumerável. Você lhes negaria
o direito de existir? Pediria a eles que trabalhassem e passassem
fome, enquanto você desfruta Valores antiquados? Você - você
mesmo é filho dessa massa e irmão de todo o resto. Ou então
é um ingrato, um diletante, um idiota. Pronto, Herzog, pensou
Herzog, já que você está pedindo um exemplo, aí está como são
as coisas".
(...)
"Mas qual é a filosofia dessa geração? Não que Deus está morto;
esse ponto foi ultrapassado há muito tempo. Talvez pudesse ser
estabelecido: a morte é Deus. Essa geração pensa (e este é seu
pensamento dos pensamentos) que nada fiel, vulnerável e frágil
pode ser durável ou ter poder duradouro. A morte espera por
estas coisas assim como um chão de cimento espera por uma lâmpada
que cai. A frágil concha de vidro perde seu minúsculo vácuo
com um estrondo, e é tudo. É assim que ensinamos metafísica
uns para os outros. Você pensa que a História é a História dos
corações amorosos? Seu tolo! Olhe para estes milhões de mortos.
Pode sentir pena deles, sofrer por eles? Não pode nada! Há mortos
demais. Nós os queimamos até cinzas, e os enterramos com escavadoras
de terraplanagem. A História é a história da crueldade, e não
do amor, como pensam os homens ternos. Fizemos experiências
com todas as capacidades humanas para ver qual é forte e admirável,
o provamos que nenhuma é. Existe somente senso prático. Se o
velho Deus existe, deve ser um assassino. Mas o único deus verdadeiro
é a morte. Eis a realidade, sem ilusões covardes. Herzog ouvia
aquilo como se estivesse sendo dito lentamente dentro de sua
cabeça. Sua mão estava molhada e ele soltou o braço de June.
Talvez o desmaio tivesse sido provocado não pelo acidente, mas
pela premonição de tais pensamentos. A náusea era somente apreensão,
excitação, a intensidade insuportável de tais idéias".
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