Provos - Amsterdam e o Nascimento da Contracultura
(Editora Conrad)
por Carlota Cafiero


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Quando tudo vai bem, desconfie. Há sempre algo podre sob o véu da hipocrisia. Os Provos existiram para escancarar essa realidade. Nascidos na Amsterdã dos anos 60 – o "Centro Mágico" do mundo, talvez hoje o lugar mais tolerante do Ocidente – os Provos deram o pontapé inicial para o surgimento da contracultura, e foram imitados no resto do planeta, inclusive pelos beatniks e hippies da América. 

Como na Holanda não se fala inglês, o movimento raras vezes é lembrado quando o assunto são os anos 60. Salvo o livro do italiano Matteo Guarnaccia, Provos - Amsterdam e o Nascimento da Contracultura, há poucas publicações que analisam o fenômeno. Pertencente à ótima coleção Baderna, da Editora Conrad, o livro conta, em 175 páginas, a trajetória de uma revolução cultural empreendida por jovens anarquistas que conseguiram vários feitos através de uma forma bastante original e criativa de protesto – a provocação. 

Provos é abreviação de "provocadores". Entre 1965 e 1967, Amsterdã foi transformada no centro da desobediência civil. E foi pioneira nisso. Aquela célebre frase que os revoltos estudantes franceses fixaram na fachada da Sorbonne, em 1968 – "A imaginação está no poder" – foi reflexo do que aconteceu primeiro na Holanda. "Provo é uma imagem", já dizia o primeiro manifesto de 1965. No livro, Guarnaccia diz: "A frase revela a perfeita consciência de estarem agindo dentro da sociedade do espetáculo, na qual o capitalismo moderno designa – para cada um – o papel específica de espectador passivo". 

O excesso de conforto, de segurança e o amplo acesso aos bens de consumo na Holanda, tornaram maior o anticonformismo dos herdeiros da tradição anarquista. Aqueles jovens tinham de contestar algo, lutar contra algum inimigo, mas, qual? Então deixaram o cabelo crescer, inclusive influenciados por quatro cabeludos de Liverpool que se apresentaram em Amsterdã, mas ainda não bastava. De repente, manifestações espontâneas e isoladas de performáticos contestadores da indústria e da propaganda começaram a "pipocar" aqui e ali. 

Um deles foi Robert Jasper Grootveld, que fundou um templo antifumo, onde criava os seus happenings contra o vício disseminado e inconseqüente da nicotina. Sua igreja se chamava Dependência Consciente da Nicotina, onde uma turba de fiéis entoavam mantras como "cof, cof, cof, cof". Nada escapava à fúria de Grootveld contra a falsa propaganda das indústrias do cigarro. Outdoors e cartazes eram pichados por ele com um "k" negro, inicial da palavra kanker (câncer). Por essa e outras, Grootveld foi preso duas vezes. 

O epicentro da eclosão provos foi uma praça na Spui, ao redor da estátua de Lieverdje – obra do escultor Carel Kneuman, que representa um menino de rua –, aliás, doada para Amsterdã por uma indústria de tabaco. Grootveld pousa seus olhos nessa estátua e decide fazer ali, toda noite de sábado, seus rituais contra a pasmaceira geral: cerimônias que incluem dança, canto, teatro, jogos e discursos absurdos (frutos do movimento dadaísta), que terminam com uma imensa fogueira alimentada pelos curiosos e uma "congregação" de jovens. 

Os encontros eram organiza-dos sob o espanto geral da população e da polícia, que enxergava ali apenas uma porção de baderneiros, mas os bania com truculência. A polícia era recebida sempre recebida com risos e dispersão. "Na Europa, já temos de tudo: televisão, liqüidificadores e motocicletas. Já que na China eles ainda não têm liqüidificadores, seu único objetivo é de os terem o quanto antes. Quanto chegamos a possuir tudo, eis que inesperadamente chega uma espécie de vazio", diz um dos manifestos de Grootveld. E então que surgem outros "xamãs" anunciando mudanças – Van Duijin e Stolk, freqüentadores das cerimônias na Spui. "Eles percebem que as pessoas que delas participam têm um grau de consciência mui-to elevado, e que o evento tem um significado social explosivo", diz Guarnaccia.

Duijin e Stolk lançam uma revista mensal intitulada Provos – que primeiro começa como um panfleto colocado clandestinamente dentro de jornais conservadores –, onde defendem uma conduta antisocial (contra o bem-estar holandês), o nomadismo, a arte, a ecologia, o fim da monarquia, dentre outras bandeiras. Através da publicação, os Provos conclamam os jovens a se unirem contra toda a sorte de alvos: carros, polícia, igreja, etc. E se colocam a favor do uso da bicicleta, da emancipação sexual, sobretudo do homossexualismo, da maconha, do fim da propriedade privada e de qualquer forma de poder ou proibição. 

Vários projetos dos Provos vingaram e ainda hoje fazem par-te da rotina de Amsterdã, como as bicicletas "sem dono". Em protesto contra a "caixa peidorrenta de ferro" (como definiam o automóvel), os Provos lançaram o Plano da Bicicleta Branca. Naquela época, voluntariamente, os jovens que freqüentavam a Spui levavam suas bicicletas para serem pintadas de branco e depois espalhadas pelas ruas para o uso irrestrito de todos. Outra conquista foi a liberalização da maconha.

A imprensa conservadora, representada pelo jornal Telegraph, não perdoou as mudanças empreendidas pelos Provos, como se lê num artigo de 1991, reproduzido no livro de Guarnaccia: "A sociedade holandesa nunca se recuperou das loucuras hippies, do flower power e das viagens para fora da realidade provocadas pela droga. Enquanto todas as sociedades ocidentais foram trazidas de volta à Terra, a socieda-de holandesa ficou nas nuvens". 

Carlota Cafiero, repórter do Caderno C do Correio Popular e fã de marchinhas carnavalescas.