'Profissão: Escritor'
por
Jonas Lopes
Gymnopedies
13/06/2008
Escritores registrados e com carteira assinada podem parecer um absurdo, produtos de uma atribulada trama de ficção científica, mas não estão muito longe de surgir às pencas Brasil afora. Está tramitando na Câmara um projeto de lei do deputado federal Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) que prevê a regulamentação da profissão do escritor. O projeto, registrado com o número 4641/98, foi aprovado na Comissão de Educação e Cultura da Câmara e, cerca de um mês atrás, rejeitado na Comissão de Trabalho, sob a alegação de que não existe uma profissão reconhecível de escritor. Agora deve ser encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Li o texto de Pannunzio, que é bem curto (é possível fazer o download aqui), e pedi, por e-mail, a três escritores brasileiros importantes que o comentassem: Milton Hatoum (Órfãos do Eldorado, Companhia das Letras), Sérgio Rodrigues (As sementes de Flowerville, Objetiva) e Antonio Fernando Borges (Memorial de Buenos Aires, Companhia das Letras).
Sérgio Rodrigues diz que não sabe o que os “escritores de verdade” têm a ganhar com isso. “O que pseudo-escritores ganhariam, por outro lado, é bastante claro: ganhariam um crachá, um carimbo, um passaporte para privilégios, cargos, posições”, afirma. A lei de Pannunzio, além dos escritores de literatura propriamente dita, abarca aqueles que publicam regularmente artigos de natureza literária ou científica, além de tradutores de obras literárias ou científicas. E, mais polêmico, diz o projeto que é escritor quem "seja autor de trabalho literário ou científico, mesmo inédito, que haja merecido prêmio ou menção honrosa em concurso promovido de forma pública". Milton Hatoum não concorda com a abrangência da lei. “Há escritores e escritores. Nem todos os autores de livros são escritores. Livros de auto-ajuda nada têm a ver com literatura”. Irônico, Antonio Fernando Borges exemplifica: “Um estivador de cais e um halterofilista também vivem carregando seus ‘pesos’ e ninguém tentou rotulá-los e enfiá-los num mesmo saco”.
Não é de hoje que se discute a literatura como profissão propriamente dita, que se converteria em fonte de renda e uma aposentadoria futura. O mito da inspiração, da genialidade que brota intuitivamente, já entrou em decadência há bastante tempo. “Tenho certeza de que, para escrever num nível estético elevado, a menos que você seja o Rimbaud, é preciso mourejar mesmo, trabalhar feito um louco”, declara Rodrigues. Pois os três autores não se deixam levar pelo romantismo: defendem e ressaltam, sim, o trabalho necessário para criar um texto literário de qualidade; apenas discordam que ele precise ser registrado, tanto que todos têm ou tiveram trabalhos paralelos à escrita – Antonio tem dado cursos, Sérgio é jornalista e Milton foi professor universitário até não muito tempo atrás –, e todos buscam maneiras alternativas de viver da literatura (através de palestras, participando de debates etc). “Não me sinto um profissional da literatura”, diz Hatoum, “mesmo porque uma pessoa pode publicar apenas um livro e ser, de fato, um grande escritor. Só me dediquei inteiramente à literatura aos 48 anos de idade”. Para Sérgio, “alguns dos maiores entre nós são – e fazem questão de continuar sendo – amadores radicais”.
O projeto de lei prevê diversos deveres e direitos dos escritores, a maior parte deles básicos e óbvios, como o direito de proibir a republicação de textos ou “impedir a distribuição ou comercialização da sua obra” devido a “incidentes que lhe (...) prejudiquem o renome ou direito moral”. Há, entretanto, um artigo inusitado, que prevê a isenção de qualquer tributação a prêmios literários (e eles pagam cada vez melhor, vide o Portugal Telecom e o recente Prêmio São Paulo). O autor de As sementes de Flowerville e do blog Todoprosa vê nisso uma vantagem, “mas uma vantagem descabida, um privilégio injustificável”. Borges diz que o “controle social anda de mãos dadas, no Estado moderno, com a arrecadação progressiva e sufocante de impostos”.
Ainda quanto à essência governamental que possa existir no projeto,
Rodrigues enxerga nele a “sanha reguladora e cartorial que é
um traço marcante da cultura brasileira”, enquanto Borges reclama
que “sob a capa do benefício social, o Estado vai cerceando
as liberdades individuais”. Hatoum encerra a discussão: “não
gosto de nenhum tipo de tutela”.
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