"O Prazer e o Mal – Filosofia da Droga", de Giulia Sissa
por Leonardo Vinhas
Capa - Divulgação

Ficcao Autobiografica
31/01/2005

"Heroína e cocaína são de tal modo
feitas para nós... que nós não somos feitos para elas".
(Giulia Sissa)

A filosofia da droga apresenta uma das mais controversas dialéticas possíveis. A toxicomania é um desejo inconfessável e cercado de sombras sedutoras, encontrando paralelo apenas no desejo sexual em relação à sua intensidade e mistério. E tal como este último, é um desejo que vem se barateando no acesso e se vulgarizando na exposição midiática dos dias atuais.

Para quem se fascina com essa relação entre sedução e destruição que o apetite pela droga provoca, o livro O Prazer e o Mal – Filosofia da Droga é um trabalho obrigatório, uma obra indispensável que escrutina os mecanismos biológicos, psíquicos e sociais do uso de tóxicos para explicar os riscos de sua inserção como hábito banal e anódino no dia-a-dia do homem comum.

Esse trabalho de Sissa é frequentemente assinalado como um texto isento de julgamentos, contudo, essa italiana radicada na França adotada uma postura muito evidente de combate à toxicomania, e ela própria reconhece que essa é uma batalha que parece perdida em círculos filosóficos, culturais e até médicos.

O tom do discurso antidrogas atual, principalmente o dos governos, é moralista e conservador (e absolutamente ineficaz, como a autora faz questão de demonstrar), mas nem por isso é um discurso cujo fim não justificaria os meios. O que Sissa faz – e isso talvez seja o ponto que levou críticos a tratarem o livro como imparcial – é reconhecer que o prazer por trás da toxicomania passa por impulsos, desejos e apetites que acabam por não se conter em si próprios e acabam exigindo do viciado "uma dedicação em tempo integral", como diz o Mark Renton de Trainspotting.

De fato, as drogas despertam uma desejabilidade "que faria sonhar qualquer diretor de marketing", como escreve a autora, e exatamente por isso elas estão tão presentes na sociedade, seja na moda (o estilo heroin chic, que pegou durante várias estações, principalmente na França, na Inglaterra e nos EUA), na literatura (vide o megasucesso de Trainspotting, a deturpação dos ideais da beat generation, Hunter S. Thompson e seus filhotes), no cinema (Pulp Fiction e seus incontáveis derivados) ou na música (é preciso citar exemplos?).

Traçando relações entre a cultura pop recente e as teses e idéias da tradição filosófica grega, revolvendo um século de estudos de psicanálise, e recuperando depoimentos que vão de anônimos a escritores tão diversos como Thomas de Quincey e William Burroughs (amplamente citado), Sissa não nega a euforia, o desejo de garantir a repetição do prazer inigualável do momento da primeira vez que se usa um tóxico, e detecta nesse misto de busca e inveja de uma felicidade algo imprecisa, uma das principais razões para a disseminação da toxicomania.

O problema, que ela explicita com os mesmos mecanismos que usa para falar dos encantos, reside no fato de querer “igualar o inigualável”, repetir algo que nunca vai acontecer novamente, não reconhecer que, salvo certos organismos muito peculiares, a dependência é o único fim possível para aqueles que se gabam apenas do "uso recreativo".

Abandonando os moralismos e, ao mesmo tempo, remando contra a maré de tolerância chic que se impôs nas discussões "intelectuais", O Prazer e o Mal desvenda aquilo que nos parece dolorosamente óbvio, mas insistimos não perceber: que a entrega aos desejos insaciáveis nos torna escravos dos próprios, e a busca pela suposta satisfação desses desejos não nos liberta deles – ao contrario, vicia-nos ainda mais. Uma tese ousada e controversa – e defendida com uma linguagem excessivamente acadêmica, o que torna a leitura cansativa – mas extremamente pertinente e urgente.