A magia de Fante
por
Leonardo Barbosa Rossato
Blog
13/01/2002
Há livros que precisam ser lidos. Só isso. Todo mundo que já
leu Bukowski, principalmente o livro Mulheres, deve-se
ter perguntado: "quem é esse John Fante que ele gosta tanto?".
Eu resolvi ir atrás e descobri Pergunte ao Pó de John
F-A-N-T-E, como escreveu the dirty old man.
Não sei escrever resenhas, confesso. Só sei dizer que fui invadido
por uma avalanche de emoções da egotrip poética de Arturo 'John
Fante' Bandini. Um livro realmente extraordinário, no qual Arturo
Bandini é um escritor iniciante que quer ser um escritor famoso,
'nunca se viu nada desde Joyce', ele se gaba no livro.
Realmente a prosa de Fante é bastante influenciada por Joyce
e foi lindamente traduzida por Paulo Leminski em meados dos
anos 80. Demoramos mais de 50 anos pra conhecer Fante. Eu só
tenho 18 anos, mas sinto-me esperando tanto tempo. Há muitas
histórias dentro da história mas a história que mais cativa
é o amor e o ódio que ele tem por uma garçonete mexicana, Camila.
Ela não gosta dele, ela o usa, ela caçoa dele, ela ama outro.
E ele continua amando-a.
Se você for homem e já passou pela mesma experiência não vai
condenar Arturo Bandini. Eu não condenei. Em outro episódio
é poética a alegria dele recebendo o cheque por seus contos
publicados numa revista. Dá vontade de virar escritor pra ver
se é assim mesmo. E mandar os originais pra Fante - que morreu
no começo dos anos 80, não lembro o ano exato - pra ver o que
ele acha.
Aliás, estou lendo muitos livros da Editora Brasiliense, que
foi muito importante nos anos 80, editando no Brasil os livros
de Burroughs, Kerouac, Ginsberg, Marcelo Rubens Paiva, Pasolini,
Bukowski, Chacal e vários escritores e poetas que estou esquecendo
agora, mas que fazem parte de uma lista interessantíssima que
deve ter feito a cabeça de muita gente que gosta de Literatura.
E pra quem gosta de Literatura, ninguém melhor que John Fante.
Marcelo Mirisola, que faz parte da leva de novos autores brasileiros,
disse que começou a escrever por causa de Fante. Ele escreveu
os livros de contos: Fátima Fez Os Pés Pra Mostrar na Chopperia
e O Herói Devolvido, livros de contos.
Eu li o segundo só e achei a prosa dele altamente influenciada
por Fante e, principalmente Bukowski a quem até dedica um conto.
Bukowski escreveu no prefácio de Pergunte ao Pó que estava
andando pela biblioteca (ele só ia à biblioteca quando não tinha
dinheiro pra beber) e no meio de tantos livros chatos e que
se acham importantes, ele pegou um e começou a ler e logo foi
invadido pela mágica da prosa poética de Fante. O chato é que
se Bukowski tivesse dinheiro naquele dia pra comprar vinho e
não tivesse ido a biblioteca, eu não teria lido Pergunte
ao Pó e talvez nem Bukowski teria sido Bukowski. Essas coisas
acontecem mesmo, não tem razão pra acontecer, eu acho. E ainda
bem que acontecem. Só sei que depois que li Pergunte ao Pó,
me deu vontade de ser escritor de verdade.
Não sei se serei escritor de verdade. Rainer Marie Rilke disse
que se você quer ser escritor de verdade, pergunte a si mesmo:
Você morreria se deixasse de escrever? Eu não sei se morreria,
mas também não sei se agüentaria. Estou ainda pesquisando em
mim a resposta. Esse é a primeira pseudo-resenha que escrevo
sobre um livro que gosto. Já amei ler muitos outros e nunca
me deu vontade de escrever sobre isso. Ou deu e tive preguiça
e nessa resenha aqui eu nem acabo falando muito do livro em
si, como a história e tal, mas acho que isso não importa. A
única coisa que importa é a mágica.
Los Angeles, me dá um pouco de você!
Extraído de Pergunte ao Pó
Editora Brasiliense
"Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel
em Bunker Hill, bem lá no centro de Los Angeles. Era uma noite
importante na minha vida porque eu tinha que tomar uma decisão
sobre o hotel. Ou eu pagava ou caía fora: era isso que a nota
dizia. A nota que a proprietária tinha enfiado por baixo da
minha porta. Um grande problema, que merecia muita atenção.
Resolvi o problema apagando a luz e indo pra cama.
De manhã, acordei, decidi que devia fazer mais exercício físico
e comecei na hora. Fiz varias flexões. Depois, escovei os dentes,
senti gosto de sangue, vi o vermelho na escova, lembrei das
recomendações, e decidi sair pra tomar café.
Fui ao restaurante aonde eu sempre ia, sentei no banco em frente
ao balcão e pedi café. O gosto até parecia café, mas não valia
o preço. Sentado lá, fumei uns cigarros, li a lista de gols
da Liga Americana, escrupulosamente evitei ler a lista dos jogos
da Liga Nacional, e notei com satisfação que Joe DiMaggio continuava
sendo o orgulho da italianada, porque estava liderando o time
no rebate.
Um grande rebatedor, aquele DiMaggio. Saí do restaurante, parei
diante de um pegador imaginário, e atirei uma bola de volta
por cima da cerca. Daí desci a rua em direção a Angel's Flight
(Vôo de Anjo), me perguntando o que é que eu ia fazer aquele
dia. Mas não tinha nada a fazer, e assim decidi dar uma banda
pela cidade.
Desci a Rua Olive, passando pela frente de um prediozinho amarelo
de apartamentos que ainda estava úmido como um registro da neblina
da noite passada, pensei nos meus amigos Ethie e Carl, que eram
de Detroit e tinham vivido lá, e lembrei a noite que Carl bateu
em Ethie porque ela ia ter um bebê, e ele não queria um bebê.
Mas eles tiveram a criança e tudo ficou por isso mesmo. Lembrei
daquele apartamento por dentro, como cheirava a rato e pó, e
as velhas que ficavam sentadas na entrada em tardes quentes,
e a velha com pernas bonitas. Daí tinha o ascensorista, um homem
acabado, vindo de Milwaukee, que parecia não estar nem aí, que
fazia uma cara de desprezo cada vez que você indicava o andar
que queria, como se você fosse um idiota por ter escolhido aquele
andar em especial, o ascensorista que sempre tinha uma bandeja
de sanduíches no elevador, e uma revista sensacionalista.
Então, desci a colina na Rua Olive, passando pelas horríveis
casas abandonadas recendendo a histórias de assassinato, e daí
até o Auditório Filarmônico, e lembrei como tinha ido lá com
Helen ouvir o Grupo Coral dos Cossacos do Don, como eu me enchi
o saco e a gente brigou por causa disso, lembrei também como
Helen estava vestida aquele dia - um vestido branco, e como
eu ouvi mil sinos tocando quando encostei nele. Ah, aquela Helen
- mas não aqui.
Assim, eu estava lá na Quinta e Olive, onde os carros na larga
rua mastigavam os ouvidos da gente com tanto barulho, e o cheiro
da gasolina deixavam triste a vista das palmeiras, e a calçada
preta ainda úmida da neblina da noite anterior.
Assim, agora eu estava na frente do Hotel Biltmore, andando
ao longo da fila de táxis amarelos, com todos os motoristas
dormindo, menos o motorista perto da porta de entrada, e eu
fiquei pensando sobre esses caras e suas agendas de endereços
quentes, e lembrei a vez que Ross e eu pegamos um endereço com
um deles, ele fez uma cara maliciosa e então nos levou ate a
Rua Temple, logo onde!, e quem foi que nos encontramos lá a
não ser dois bagulhos, e Ross encarou o lance com uma delas,
mas eu fiquei sentado no salão e liguei a radiola, assustado
e triste.
Eu estava passando pelo porteiro do Biltmore, e o detestei na
hora, com seus alamares amarelos mais um metro e noventa de
altura e toda aquela empáfia, então um automóvel preto estacionou,
e um homem saiu. Parecia rico. Aí então uma mulher saiu, ela
era linda, o casaco de raposa prateada, ela era uma canção atravessando
a porta giratória, e eu pensei porra cara só um pouquinho disso,
só um dia e uma noite disso, ela era um sonho enquanto eu passava,
seu perfume parado no ar úmido da manhã.
Então muito tempo se passou enquanto eu fiquei estático na frente
de uma loja de cachimbos, olhando, e o mundo inteiro desvaneceu-se,
exceto aquela vitrine, e eu continuava ali, fumei todos aqueles
cachimbos, e me vi como um grande autor com aquele elegante
cravo italiano na lapela, e uma bengala, saindo de um grande
carro preto, e ela estava lá também, orgulhosa de mim pra caralho,
a dama com o casaco de raposa prateada. Nós pedimos o melhor
quarto e daí tomamos uns coquetéis e dançamos um pouco, tomamos
mais um coquetel, eu declamei algumas frases em sânscrito, e
o mundo era tão maravilhoso, porque de dois em dois minutos
uma coisa linda olhava pra mim, o grande escritor, e não adiantava,
eu tinha que dar um autógrafo no seu cardápio, e a garota da
raposa prateada ficava puta de ciúmes.
Los Angeles, me dá um pouco de você! Vem a mim, Los Angeles,
do jeito que eu vou até você, meus pés nas suas ruas, você,
cidade linda que eu amo tanto, você, flor triste na areia, você,
cidade linda.
Um dia e outro dia e o dia antes, e a biblioteca com os grandes
caras nas estantes, velho Dreiser, velho Mencken, toda aquela
turma, e eu fui lá pra ver eles. Olá Dreiser, olá Mencken, olá,
olá: tem um lugar pra mim também, e começa com B, na estante
B, Arturo Bandini, abram alas para Arturo Bandini, o lugar vago
para seu livro, e eu sentei na mesa e fiquei olhando para o
lugar onde meu livro estaria, bem alí, do ladinho de Arnold
Bennett; sei lá de Arnold Bennett, mas eu estaria lá para segurar
as pontas dos Bs, velho Arturo Bandini, um da turma, até que
aparecesse uma garota, algum cheiro de perfume passando pela
seção de ficção, algum clique de altos calcanhares para quebrar
a monotonia da minha fama. Dia de gala, sonho de gala!
Mas a dona da pensão, a dona da pensão, com seus cabelos brancos,
continuava escrevendo aqueles bilhetinhos: ela era de Bridgeport,
Connecticut, o marido tinha morrido e ela estava sozinha no
mundo e não confiava em ninguém, ela não tinha condições, me
disse isso e me disse que eu tinha que pagar. A coisa estava
crescendo que nem a dívida nacional, eu tinha que pagar ou cair
fora, centavo por centavo - cinco semanas vencidas, vinte dólares,
e se eu não fizesse isso ela ia ficar. Com meus pertences; só
que eu não tinha pertences, apenas uma maleta que era puro papelão
sem nem uma tira em volta, porque a tira estava na minha barriga
segurando minhas calças, o que também não era grande coisa,
porque não restava muito das minhas calças.
- Acabo de receber uma carta do meu empresário - disse a ela.
Meu empresário em Nova lorque. Ele diz que eu vendi mais uma;
ele não diz onde mas diz que vendeu uma. Sendo assim, não se
preocupe, Senhora Hargraves, não esquente muito, o dinheiro
vai estar aqui em um dia ou dois.
Mas ela não ia acreditar num mentiroso que nem eu. Não era bem
uma mentira; era um desejo, não uma mentira, e talvez não fosse
nem um desejo, talvez fosse um fato, e o único jeito de descobrir
era olhando para o carteiro, olhando bem de perto, checando
bem sua sacola quando ele a punha na entrada do prédio, perguntando
para ele, a queima-roupa, se tinha alguma coisa para Bandini.
Mas eu não tinha mais que perguntar depois de seis meses naquele
hotel. Ele via que eu vinha vindo e já balançava a cabeça dizendo
sim ou não antes que eu perguntasse: não, três milhões de vezes;
sim, uma vez.
Um dia, uma bela carta chegou. Ah, eu recebo uma porção de cartas,
mas esta era a única carta linda, e ela veio de manhã, e dizia
(ele estava falando sobre O Cachorrinho Riu) que ele tinha lido
O Cachorrinho Riu e tinha gostado; ele disse, Senhor Baldini,
eu nunca tinha visto um gênio, até conhecer o senhor. O nome
dele era Leonardo, um grande crítico italiano, só que não era
conhecido como crítico, era apenas um cara de West Virginia,
mas era ótimo e era um crítico, e morreu. Estava morto quando
minha carta aérea chegou em West Virginia e sua irmã me mandou
a carta de volta. Ela também escreveu uma carta muito bonita,
era uma crítica ótima também, me dizendo que Leonardo morreu
de tuberculose mas feliz até o fim, e uma das ultimas coisas
que ele fez foi sentar na cama e me escrever sobre O Cachorrinho
Riu: um sonho feito de vida, mas muito importante; Leonardo,
agora morto, um santo no céu, igual a qualquer um dos doze apóstolos.
Todo mundo no hotel leu O Cachorrinho Riu, todo mundo: uma história
para fazer você ler até morrer, e nem era sobre um cachorro:
uma história jóia, grito de poesia. E o grande editor nada menos
que J. C. Hackmuth, com seu nome assinado como se fosse em chinês,
disse numa carta: uma grande história e estou orgulhoso em edita-la.
A senhora Hargraves a leu e, desde então, eu era uma pessoa
diferente aos seus olhos. Continuo naquele hotel, sem ter que
bater pernas no frio, graças a O Cachorrinho Riu. A senhora
Grainger, no 345, adepta de Ciências Cristãs (quadris sensacionais,
mas um tanto velha), de Battle Creek, Michigan, sentada na entrada
esperando a morte, e O Cachorrinho Riu a trouxe de volta à terra,
e aquele olhar em seus olhos me fez saber que estava legal e
eu estava legal, mas eu estava esperando que ela perguntasse
sobre minhas finanças, como e que eu estava me virando, e então
eu pensei por que não pedir emprestado pra ela uns cinco paus,
mas eu não fiz isso e saí estalando meus dedos de tanta raiva.
O hotel era chamado Alta Loma. Erguia-se numa colina, lá na
crista de Bunker Hill, construído contra o declive da colina,
de modo que o andar térreo ficava no nível da rua mas, o décimo,
dez andares abaixo. Se você for ao quarto 862 tem de pegar o
elevador e descer oito andares e se quiser descer até o porão
você não desce, mas sobe ate o sótão, um andar acima do térreo.
Ah, uma garota mexicana! Costumava pensar nela o tempo todo,
minha garota mexicana. Eu não tinha uma, mas as ruas estavam
cheias delas, Plaza e Chinatown estavam em chamas por causa
delas, e a meu modo elas eram minhas, essa aí e aquela lá, e
algum dia quando outro cheque viesse tudo isso ia acontecer
de fato. Por ora, era de graça e elas eram princesas astecas
e princesas maias, as garotas morenas no Grande Mercado Central,
na Igreja de Nossa Senhora, e eu até fui a missa só pra vê-las.
Era uma atitude sacrílega mas era melhor do que não ir a missa,
assim, quando escrevi pra minha mãe no Colorado, eu falei a
verdade. Querida Mãe: fui à missa domingo passado. Lá no Grande
Mercado Central eu esbarrava nas princesas fingindo ser sem
querer. Isso me dava a chance de falar com elas, e eu sorria
e dizia me desculpe. Aquelas garotas lindas, tão felizes quando
você dava uma de cavalheiro e essas coisas todas, era só encostar
nelas e carregar a lembrança para dentro do meu quarto, onde
a poeira crescia em cima da minha máquina de escrever e Pedro,
o rato sentava no seu buraco, seus olhos pretos me observando
através daquele tempo de sonho e devaneio".
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