Um breve
ensaio sobre o Pelezinho
por
Leonardo Vinhas
leonardo.vinhas@bol.com.br
TEMPO BOM, NÃO VOLTA MAIS...
Nostalgia costuma
escorregar para a chatice, afinal, nada mais insuportável que pessoas
falando sobre os "velhos tempos" (a não ser quando você viveu
esses tempos, evidentemente) como se eles jamais fossem se repetir, depreciando
o presente e desanimando-se perante o futuro. Porém é difícil
não ser nostálgico ao falar da turma do Pelezinho.
Criado em 1976
a partir de conversas entre Maurício de Sousa e Pelé, o personagem
Pelezinho era um lance genial para ambas as partes: Pelé, em vias
de aposentadoria mas já reconhecido como o maior jogador de todos
os tempos (os argentinos inventariam Maradona anos depois, mas, francamente!),
manteria-se em evidência no mundo dos quadrinhos e no imaginário
emocional de seus leitores (além de levar bons trocados com a utilização
de sua imagem em HQs, brinquedos e outros produtos), e Maurício,
ainda em pleno vigor criativo, teria um personagem de grande carisma que
cativaria a diferentes públicos, mas principalmente aos fãs
de futebol (na época, a absoluta maioria da população
brasileira) e aos negros.
O
personagem aparecera primeiro em tiras de jornal e eventuais piadinhas
em revistas de outros personagens até ganhar sua revista em 1977,
mas desde o princípio sua personalidade alegre, ingenuamente cafajeste
e "futeboleira" já estava claramente definida, bem como as características
de sua turma, todos baseados em recordações da infância
de Pelé. Assim, tínhamos o inseparável Cana Braba
- gordo, boca-suja e encrenqueiro; Frangão (nome verdadeiro: Alfredo),
o magricela desajeitado cujo apelido fazia justiça à sua
atuação entre as traves; o atlético, contemporizador
e tranqüilo Teófilo; a sensual e cobiçada (apesar dos
quilinhos extras) Bonga; a turquinha Samira, cuja inaptidão culinária
não correspondia à tradição familiar (o que
não a impedia de tentar empurrar seus horrorosos quibes goela abaixo
de seus amigos); a romântica e meiga Neusinha, uma oriental que fora
o primeiro amor do Rei; e o cachorro Rex - esse um caso à parte.
Rex era realmente
um cachorro - algo raro entre os bichinhos humanizados de Maurício
de Sousa. Rex não era filosófico como Horácio, dialético
como o Bidu dos primeiros anos ou mesmo guardava parentesco com a personalidade
humana da Turma da Mata (Raposão, Rei Leonino, Jotalhão e
companheiros). Ele era simplesmente um cão, obediente ao dono e
que gostava de brincar com ele e sua turma. O curioso era que outros cachorros
dialogavam (com balões de fala e tudo) com Rex, enquanto este só
latia. O máximo de "absurdo" visto era usar uma pá, em vez
das patas, para cavar buracos onde seriam afixadas as traves de madeira.
Apesar da aparição ocasional de extraterrestres, criaturas
de lava ou até de Zeus, as histórias de Pelezinho apresentavam
muito mais fatos do cotidiano que as da Turma da Mônica.
A interação
entre todos os coadjuvantes era notável. Suas personalidades possuíam
características marcantes, contudo eles também podiam se
apresentar melhor ou pior humorados, mais ou menos confiantes. Como todos
nós somos no cotidiano. Embora Cana Braba, por exemplo, fosse egoísta
e prepotente na maioria das vezes, havia ocasiões em que sua auto-confiança
esvanecia, e até momentos de altruísmo poderiam aparecer,
sempre de acordo com as circustâncias. Até os "inimigos" Jão
Balão (um garoto que não se conformava em não ser
titular do time e julgava ser ofuscado pelo "astro) e Tonico "Fura-Bola"
(um dos muitos vizinhos esquentados que não gostava da algazarra
na rua nem das vidraças quebradas e tentava furar obsessivamente
as bolas dos garotos), entre outros de aparição sazonal,
não eram "maus" ou "cruéis". Apenas não partilhavam
dos mesmos sentimentos e entusiasmos da turma.
Pelezinho, todavia,
era a estrela maior, como convinha. Representava a própria alegria
de se jogar futebol apenas pelo prazer de ter uma bola nos pés para
"rachar" com os amigos. Não falava sequer em se profissionalizar,
a não ser por duas histórias em que ele aparecia em seletivas
de juniores que não o admitiam - fosse pela torcida inconveniente
de seus amigos ou pela politicagem do clube. Quanto à cafajestice,
Pelezinho tinha sua fiel Neusinha - a quem não era retribuía
completamente à fidelidade, mas também não negava
amor sincero. Só não se prestava constantemente à
monogamia, como bom boleiro que se preze (ou despreze).
Não
era esse o único traço "politicamente incorreto das histórias".
É antológica a história em que Pelezinho desce porrada
em Jão Balão apenas porque ele, agradecido pela cura de um
torcicolo, abraçava Pelezinho três vezes seguidas. O protagonista
se justificava dizendo: "Cara estranho! Eu, hein?!" Hoje, uma história
dessa sequer seria publicada em uma revista mainstream, mas os tempos eram
outros e não havia patrulhinhas de ONGs obcecadas que não
distinguem uma brincadeira de uma ofensa. Tudo bem, talvez seja ofensivo
mesmo. Mas era a infância de todos nós, com os quebra-paus
entre timinhos adversários (que não implicavam em ódio
algum, faziam parte da vida e logo se esqueciam), as fugas de casa por
uma tarde, apenas para jogar bola ou brincar na rua (apesar da mãe
gritar para você ficar em casa e se recuperar da gripe ou coisa que
o valha), os namorinhos atrás de árvore, enfim, a doce vida
despreocupada, ainda possível naquela época (e vale ressaltar
que as histórias se passavam em Três Corações,
por isso a rara interação entre essa turma e aquela da baixinha
invocada). Hoje isso tudo já é raro nos quadrinhos, que dizer
da vida real. Nem mais os caracteres que indicavam palavrões (aquelas
@#%! de *!$#@ que apareciam nos balões) costumam aparecer - como
se as crianças não fossem bocas-sujas.
Enfim, Pelezinho
e sua turma constituíam um compêndio de sua época.
Uma época em que toda criança era "de rua", em que o futebol
era uma arte fluida e não um espetáculo circense enfadonho,
egocentrado e violento, em que os pais participavam da vida dos filhos.
Tempos que não voltam mais nem na fantasia: a revista foi cancela
em 1982 e seus personagens só voltariam a aparecer em esporádicas
edições especiais, até desaparecerem por completo
nos anos 90. Ainda houve uma tentativa de recuperá-los em publicações
para a América do Sul (exceto Brasil), em que a garotada, já
mais crescidinha (cerca de 12 anos) viajava o mundo como embaixadores da
UNICEF. É claro que não deu certo e o projeto foi abandonado.
Glamourizar a simplicidade daquelas histórias seria como o Paulinho
da Viola gravar com o Só Pra Contrariar, ninguém sairia no
lucro.
A Maurício
de Sousa Produções não planeja recuperar o personagem,
pelo menos por ora. Faz sentido. Trazer a nostalgia do que não volta
é ranhetice, como aquela descrita no começo do texto. Mas
ninguém pode ser culpado se correr por sebos em busca de exemplares
da revista "Pelezinho" (como eu ainda faço). Se a época pertence
ao passado, o humor, a alegria e a felicidade daquela época durarão
para sempre dentro de nós.
Leonardo Vinhas
nunca foi muito fã de futebol, mas sempre foi fã do Pelezinho
e tem a coleção quase completa de suas revistas. |