Um Longo Rastro de Sangue No Meio
Literário
por
Douglas Cometti
uglybob@ig.com.br
10/06/2003
Mesmo com um começo modesto,
em revistas feitas do mais vagabundo papel, o romance policial cresceu
e se firmou como um dos mais populares gêneros literários
do século XX e, ao que tudo indica, vai atravessar o próximo
século da mesma forma que passou pelo primeiro, enfrentando de bandidos
sádicos e inescrupulosos a críticos e intelectuais que insistem
e em tratá-lo como subproduto cultural.
Surgido no começo do século
XX, o romance policial ou, como muitos preferem, romance noir, sempre
ocupou um lugar menor no meio literário. Considerado pela elite
intelectual, desde seu surgimento, como lixo cultural, literatura barata,
desprovida de elementos que levassem à reflexão do indivíduo,
criada apenas para o consumo rápido e distração de
pessoas "incultas", esse tipo de ficção, ainda hoje, perambula
pelos guetos da história, lugar esse, aliás, que sempre lhe
foi muito familiar.
Muitas vezes confundido com romance
de espionagem, terror ou mistério e chamado genericamente de 'Pulp
Fiction', o noir se difere dos demais gêneros graças a uma
série de regras de estilo que, ao mesmo tempo, lhe impõe
restrições e o tornam inconfundível. O escritor Marcos
Reis, certa vez, definiu bem os limites do noir ao observar que basta se
colocar o interesse de um país na trama para esta se tornar uma
história de espionagem; se algo sobrenatural permeia a narrativa
então temos uma história de mistério. Quanto ao termo
Pulp Fiction, este se refere mais ao tipo de papel usado para impressão
de livros baratos, do que a um estilo propriamente dito, e ai entram até
as açucaradas histórias de Sabrina e Julia. O tema tratado
pelo noir é, invariavelmente, o mundo do crime, com seus guetos
sujos, habitados por seres execráveis, detetives violentos e policiais
decadentes, tipos femininos ambíguos, enfim, um apanhado de personagens
imorais envolvidos em tramas complexas, num ambiente realista e sombrio.
Há quem defenda Conan Doyle
como primeiro escritor policial da história. O criador de Sherlock
Holmes, ao menos, definiu algumas diretrizes para o gênero, mas uma
rápida comparação entre o pomposo detetive britânico
e figuras como Sam Spade, de Dashiell Hammett e Philip Marlowe, de Raymond
Chandler, nos mostra a distância entre esses personagens e os mundos,
ou submundos, nos quais os mesmos atuavam. Sherlock Holmes era um aristocrata,
extremamente inteligente e culto, que desvendava seus casos de forma sutil,
mesmo em uma Londres sombria e misteriosa.
Já o tipo de detetive que consolidou
o noir possui características que estão mais para defeitos
que qualidades, e são esses defeitos que os tornam atraentes ao
público. Numa edição nacional de "O Falcão
Maltês", publicada pela Editora Abril Cultural, em 1984, foi incluído
o seguinte subtítulo: Sam Spade: um detetive durão e amoral.
Isso nos da uma pista do tipo de personagem que vamos encontrar ao longo
da história.
O gênero, tal como é
conhecido hoje, teve, sua mais provável origem, com o escritor Dashiell
Hammett. São dele os primeiros contos publicados a partir de 1922,
pela revista "Black Mask", revista esta, que se tornou o principal veículo
de divulgação do romance policial e abrigou, não só
Hammett, mas uma considerável parcela de escritores que não
encontravam lugar nas editoras da época. Os contos do detetive anônimo,
que trabalhava para Continental Agency, baseada em San Francisco, foram
os primeiros a se tornar conhecidos do público e dar origem à
expressão “Hard-boiled”, utilizada por críticos para definir
os tipos rudes criados pelo escritor.
Mais do que simples peculiaridade,
a violência nos romances policiais estava ligada ao clima da época
de seu surgimento, um pós-guerra, onde o crime organizado crescia
a olhos vistos nas grandes cidades americanas. Também foi a violência,
uma das responsáveis pela marginalização do gênero
aos olhos da elite cultural daquele momento, e pelo seu sucesso entre as
classes baixas. O início do noir vem na esteira da alfabetização
em massa nos EUA e da popularização da imprensa. Isso, de
certa forma, contribuiu para uma outra característica, grande parte
das histórias policiais eram contos, originalmente publicados em
revistas baratas, como a já citada Black Mask e posteriormente editados
em livros.
Um
dos feitos de Dashiel Hammet, que foi seguido à risca por seus predecessores,
foi ter a percepção de criar personagens que gerasse identificação
com o tipo médio americano. Logo o que temos em suas histórias,
são detetives particulares a beira do fracasso, duros e corroídos
pelo tempo e pelas desventuras da profissão, quase alcoólatras
e, geralmente, violentos, mas sempre conservando um certo charme e uma
capacidade incrível de tomar para si o controle da situação,
por mais adversa que fosse. Personagens assim eram sucesso garantido em
uma sociedade machista, que tinha a figura masculina como mola propulsora
para o progresso. Personagens com uma obstinação romântica
pela justiça, incorruptíveis (nem sempre), sem uma formação
erudita, mas pragmáticos, com experiência adquirida nas ruas.
Seguindo o raciocínio machista,
o papel ocupado pelas mulheres nesse tipo de ficção
possui conotações diferentes, muitas vezes opostas, ao do
tipo masculino. O estereotipo da fragilidade feminina é explorado
ao máximo pelo gênero com nuances que vão da total
inocência ao puro maquiavelismo, dando origem à figura da
mulher fatal. Elas são o fio condutor de muitas histórias.
Dois bons exemplos são "O Falcão Maltes" e "O Destino Bate
à Sua Porta", clássicos irrefutáveis da literatura
noir, onde as mulheres são as responsáveis pelas reviravoltas
na trama e aparecem como o calcanhar de Aquiles dos protagonistas.
Os escritores de romance policial
também sempre se preocuparam com a forma como descreviam lugares
e situações. Nada pode escapar ao leitor e, ao mesmo tempo,
não é permitido devaneios ou pensamentos intermináveis.
Tão importante quanto a trama, o ritmo da mesma define uma boa obra
policial. Para completar, a criatividade e peculiaridade de cada escritor
confere a originalidade de seus personagens, como maneira de falar, cacoetes,
vícios e fraquezas. O uso da linguagem coloquial, com boa dose de
gírias, é outra marca do noir.
Essa estrutura, na qual nasceu e se
desenvolveu o romance policial, chamou a atenção dos estúdios
de cinema americanos, que se deparavam com roteiros praticamente prontos.
Em pouco tempo um novo nicho foi conquistado, das páginas de revistas
vagabundas para o cinema, consolidando o gênero, mesmo que ainda
visto de soslaio por muita gente. Ai brilharam figuras como o galã
Humphrey Bogart e o esquisito Peter Lorre, este último feito sob
medida para o romance policial devido sua origens no cinema expressionista
alemão e ao seu tipo físico peculiar.
Desde de sua consolidação
no começo do século XX, até os dias de hoje, a ficção
policial passou por várias alterações em seu contexto,
adequando-se a cada época e provando sua consistência e longevidade.
A literatura noir ganhou admiradores e representantes de peso fora do eixo
Estados Unidos – Inglaterra, sua fama de subgênero foi, até
certo ponto, redimida e, ainda hoje, o policial desempenha um importante
papel na tarefa de arrebanhar novos adeptos ao hábito da leitura.
De Dashiell Hammett a James Ellroy muita coisa mudou, o mundo do crime
mudou, os detetives mudaram, mas não sumiram. Seus principais cronistas
também não.
*Imagem de abertura - Homenagem a
Dashiel Hammet - Oléo sobre tela, 92 x 73 cm, 1982. (Miquél
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