O Azul
do Filho Morto - Marcelo Mirisola
(Editora
34)
por
Diego Fernandes
d13g0_freejazz@yahoo.com.br
Originalmente
concebido sob o título "Buraco", o primeiro romance de Marcelo Mirisola
é uma incrível fábula sobre a amizade de um garoto
com seu avô e seu cachorro.
Bem, na verdade
não -- está mais para uma viagem cáustica e semi-incestuosa
rumo ao nada, regada a muita auto-piedade e vontade de ser canonizado como
mártir beatnik latino, adicionando-se a isso um grosso caldo
de referências pop (com citações que vão de
Pink Floyd a Peppino di Capri, passando por Evandro Mesquita e John
Fante).
Mas não
se iluda com o rótulo de pop – seu texto pode receber várias
pechas, todavia essa não figura entre elas.
O gorducho
parece ter sofrido um bocado nessa vida, e vale-se de recursos inusitados
para contar suas agruras desde a tenra infância até a atualidade.
Em primeiro lugar, é um romance sem qualquer vestígio de
estrutura narrativa convencional.
O objetivo parece
bem distante de simplesmente contar uma história linear: o que ocorre
é uma contínua evocação de figuras fugidias,
obscuras, memórias enevoadas, torpes e tão sórdidas
quanto possível surgem do nada, entrelaçam-se, acasalam feito
enguias. Citações aparentemente sem importância reverberam
mais adiante, coroando um pensamento completamente diferente. Existe uma
espécie de fluxo espontâneo em sua escrita (daí as
recorrentes comparações com a literatura beat), que o conduz
através de uma ortografia pouco usual, onde se inserem capítulos
de tamanhos drasticamente diversos e uma sinalização esdrúxula.
Em dados momentos, porém, um certo verniz modernista desanda em
ranço puro.
Existem alguns
paradoxos desagradáveis na literatura de Mirisola: aquilo que o
autor justamente aponta como detestável é aquilo que abraça
e assume como seu de direito – e essa auto-repulsa acaba por soar premeditada
em certos momentos. Mirisola diz odiar poetas, mas no entanto sua construção
é impregnada de imagens efusivamente poéticas, por vezes
impactantes e de uma beleza devastadora ("Do mesmo jeito – óbvio,
como o desejo do suicídio – a gente também tem que saber
morrer e tem que saber se matar e enterrar a si mesmo e, sobretudo, matar
e enterrar a quem mais amou (mesmo que esse amor tenha sido reconhecidamente
um furioso equívoco): amor por demais; portanto vivido, enganado
e matado, nunca morto demais."). Este é um dos pontos fortes em
sua escrita – não que alguém acredite que o cara leva de
fato uma vida tão miserável, mas o conceito de autor-como-personagem
adotado interessa. Por vezes, o autor chuta em instintos baixíssimos
e erra o alvo, transparecendo meramente um nerd com vontade de soar assuatador
feito um serial killer. Esse, em contrapartida, é um dos pontos
fracos da literartura dita ‘confecional’ adotada por Mirisola: quão
longe pode-se ir antes de cair no ridículo? Quando diz coisas do
tipo “adorei ver o Senna se arrebentar na Tamburello”, Mirisola se
perde na jogada e, embora se veja como manifestação do inconsciente
nacional, assume que gosta de brincar de malditinho, misantropo culto ou
sei-lá-o-quê, e isso arranha seu prestígio (?)*.
A suposta obscenidade
de seus textos não assusta ninguém que já tenha passado
por Rubem Fonseca, William
Burroughs, ou mesmo Charles Bukowski (de quem Mirisola inegavelmente
surrupia certos maneirismos), embora por vezes consiga obter resultados
hilários.
A uma certa
altura (especificamente, perto do fim), o livro parece dar algum tipo de
trégua, os parágrafos crescem e as imagens que Mirisola obtém
nesse interlúdio são justamente as mais esquizofrênicas
e as mais memoráveis ("Oh, meu Deus. Se Deus existisse e tivesse
o mínimo de talento e bom gosto, declinaria – antes do homem – do
paraíso e, por conseguinte, beatos, filhos da puta e duplas sertanejas").
Mirisola soterra muitas de suas ótimas idéias em meio a uma
carapuça forçosamente detestável. Esse "disfarce"
desvia a atenção da contundência de suas palavras.
Se, por outro lado, for mais do que um mero subterfúgio, então
pouco me interessa ler as memórias de um racista escroto. Seria
simplista dizer que tal desconforto ocorre porque ‘nos vemos refletidos
nele’. Ok, ok. Duas coisas: nunca fiz nem nunca pretendo fazer parte da
tal "classe média" (isso ainda existe?) que o sujeito aponta como
câncer social, e nem todo mundo compartilha dos impulsos de queimar
traseiros de prostitutas com brasas de cigarro feito Mirisola.
Mirisola é
rotineiramente apontado por cadernos culturais emborrachados como o possível
redentor da combalida literatura brasileira. É bem possível
que seja – só não é provável. Resta saber se
Mirisola vai se tornar um nome de fato expressivo ou um autor citado em
guetos cult. Resta, em suma, saber se não se tornará aquilo
que meio que profetizou no título de seu segundo volume de contos:
um herói devolvido.
*Em uma entrevista
concedida à revista Playboy no ano passado, constava que "O Herói
Devolvido", seu segundo volume de contos, tendo recebido massiva atenção
da impressa não-tão-especializada assim, tinha sido comprado
por apenas 500 otários. Um deles fui eu.
Diego Fernandes,
21 anos, já foi devolvido uma porção de vezes – mas
nem por isso perde a pose. |