"Minha Vida, Uma Farsa", de Peter Carey
por Danilo Corci
Speculum
30//10/2005

A ficção é um embuste sem limites. Em sua ânsia criativa, um texto pode espelhar algo hipotético e consumir a vida tanto de seu criador, como de quem recebe as palavras como uma forma verdadeira. Como em Mary Shelley, às vezes o monstro pode ganhar vida própria.

Este é o mote de Peter Carey, autor vencedor de dois Bookers Prize, em seu oitavo livro, recém-lançado no Brasil: Minha Vida, Uma Farsa (editora Record, 320 págs., R$ 34,90). O arremedilho permeia a concepção da narrativa, que ainda filosofa sobre ética e, também, um pouco de metalinguagem.

O livro narra a vida de Christopher Chubb, um impostor literário australiano, que revoltado com um amigo que se tornara um editor de sucesso, forja um poeta revolucionário, Bob McCorkle. O editor cai no golpe, publica o poeta e o transforma em sucesso. A fraude é descoberta, o publicador cai em desgraça, situação que o leva ao suicídio. Mas, há mais mistérios.

Chubb descobre que McCorkle ganhou vida. Sua criação vai atrás do criador. Seu Frankenstein particular tem mais ódio do que poderia supor-se. Numa crescente agonia, ele é perseguido e persegue a criatura na Malásia, onde a maior parte do romance é ambientado. Toda a narração é conduzida por uma editora inglesa, que descobre Chubb e os poemas de McCorkle. Assim, o ciclo imaginário, de certa maneira, inicia-se novamente.

Livremente inspirado em uma história real e similar ocorrida na Austrália, Carey brinca de médico e mostro ao expor o poder da invenção literária. Sua linguagem brinca com experimentos lingüísticos - em especial com sotaques e sempre expõe a aberração aos pedaços, o que torna tudo muito dúbio. Ficção? Realidade? Um é fruto do outro, parece dizer, ou melhor, nossa realidade é uma ficção em movimento com muita tendência à tragédia. E a sinceridade da arte viria para apontar esta inversão.

Cabe até fortes reflexões sobre ética, em especial na parte final da obra, que aliás prima por ser de uma força arrebatadora e de uma dubiedade exemplar. Minha vida, Uma Farsa pontua detalhes mínimos. Cria ilusões, desfaz realidade e mistura tudo, num grito multifacetado da recuperação da humanidade através da ficção e de uma violência que extrapola a questão física. Uma obra clássica dos anos 00.

Links:
Editora Record


Texto cedido pelo site Speculum