Entrevista - Mário Bortolotto
por Leonardo Vinhas
Blog
09/01/2007

Mário Bortolotto escreve de um jeito certeiro, com quase nenhum floreio e muitos jabs e diretos que têm sempre alvo certo. Essa escrita agressiva e algo mundana (e favor não confundir "mundão" com "sujo") já lhe renderam acusações de misoginia, misantropia e até mesmo falta de talento. A essas e outras, ele responde com um "quer me odiar? Pega a senha e entra na fila".

O fato é que tais acusações costumam vir da superficialidade de quem não tem disposição de atravessar a primeira dúzia de palavrões que volta e meia se insinuam em alguns de seus textos, oriundos de uma gama de influências que vão desde Charles Bukowski e John Fante até sua própria vida, essa provavelmente sua maior fonte de inspiração. E além dessa suposta "grosseria", está uma firme textura de desilusão, ternura e esperança, que aparece manifestada em contradições, mau humor e brincadeiras juvenis. Até porque ele é ciente que os homens de fato jamais crescem, são apenas garotos de cabelo branco com seus gibis e discos, mas que trazem a bagagem de uma vida vivida de acordo com suas próprias convicções. E as convicções de Bortolotto estão explicitamente expressas nas linhas que ele escreve.

Essas linhas já renderam livros perturbantes (Mamãe Não Voltou do Supermercado) e enternecedores (o poderoso Bagana na Chuva). Diversas peças que já foram montadas tanto pelo seu grupo, o Cemitério de Automóveis, quanto por outros grupos teatrais, das quais se destacam Homens, Santos e Desertores, Getsêmani, Hotel Lancaster e Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet - a qual estará em breve estreando em versão celulóide, dirigida por Reinaldo Pinheiro, com o título Nossa Vida Não Cabe Num Opala, já que a General Motors não gostou nada de ver seu nome estampado num filme que terá como protagonistas uma família de ladrões de carros. Esse não é o único projeto cinematográfico de Bortolotto, londrinense radicado em São Paulo já há uns bons anos. Meu Mundo em Perigo é um projeto do diretor José Eduardo Belmonte a partir de um roteiro de Mário, feito em vídeo digital e com orçamento reduzido. Há ainda planos para assumir a direção em projetos vindouros.

Mas não dá para negar que, mesmo com o envolvimento com o cinema e com a música (mantida em duas bandas de blues, Tempo Instável e Saco de Ratos), o lado que sobressai é o de escritor, que traz fraseados de blues e riffs de rock em poesia proseada. Às vezes contundente, às vezes agressiva, ora triste e em alguns outros momentos, ranheta. Mas sempre poética e sempre roqueira. Tanto que, ao terminar a leitura de seu mais recente livro, Atire no Dramaturgo (coletânea de textos do blog do mesmo nome lançado pela Editora Atrito Editorial), dá uma vontade incontrolável de pôr o vinil do Sticky Fingers na vitrola, mesmo que você não seja fã dos Stones. Ou de procurar um disco de blues safado. Ou de andar pela cidade à noite, procurando qualquer coisa que faça sentido e te recoloque no lugar depois de passar pelo corredor polonês dos jabs e diretos do escirtor. Ou de simplesmente sentar num bar com os amigos e deixar a conversa rolar.

E foi nesse clima, ainda que longe de um bar, que rolou a entrevista que segue. Mário Bortolotto não é amigo desse entrevistador, mas seus textos trazem cumplicidade para quem busca algo mais que esgotar seus dias na procura do status classe média "sugerido" por Globo, moda e afins. Mário Bortolotto fala para quem não sabe inglês, mas sabe o que é o blues.

Você já declarou que, em geral, não costuma gostar das adaptações feitas para os seus textos. Agora, "Nossa Vida Vale Um Chevrolet" está sendo adaptado para o cinema e já teve um problema legal com o título. Por outro lado, o elenco tem atores que já trabalharam com você, os quais você respeita e admira. Somando tudo isso, qual é a sua expectativa para o filme?
A minha expectativa é legal. Eu já vi o filme pronto. Os atores são realmente muito bons e o Reinaldo Pinheiro fez um trabalho legal de direção. É claro que não concordo com tudo. Não vou negar que acho o trabalho do roteirista Di Moretti muito ruim. Seria hipócrita se negasse isso. Ele não entendeu nada da história e quase transforma tudo numa melô mexicana.

O roteiro estava pronto, eu tinha feito a primeira versão. Acontece que o cara - que é um "especialista" (uma merda isso né? Me lembra o filme do Stallone com a Sharon Stone) - pegou o roteiro pra fazer a versão final e aí ele tinha que ir lá e deixar a marca dele, sabe como é? E a marca dele é bem ruim. Quero deixar bem claro que não conheço pessoalmente o Di Moretti. Já trombei com ele em alguns lugares, mas jamais trocamos mais que um cumprimento. Isto é, não tenho nada pessoal contra ele. Estou falando do trabalho dele mesmo que eu acho bem ruim. Tenho o direito de pensar assim. Ele mexeu em alguns diálogos prejudicando o ritmo deles, alterou substancialmente alguns personagens e cortou falas fundamentais. E tudo o que ele acrescentou é mal escrito e piegas. Então vou dizer pra você que não gosto do filme? Não posso dizer isso. O Reinaldo Pinheiro - que é o diretor e meu amigo - me chamou pra fazer a trilha. Então o Amalfi (que é meu parceiro musical) e eu começamos a trabalhar nela, a dar uma roupagem musical pro filme que voltasse a ter a cara da minha história e não deixasse de ser o filme do Reinaldo.

Havia uma idéia inicial deles usarem uma música do Sidney Magal em uma cena. Deixei claro que se tivesse que usar Sidney Magal, não ia fazer a trilha. Não concordo com esse negócio de que o brega dos 70 é cult agora, como tentam vender o Odair José, Reginaldo Rossi e Peninha. Isso é coisa do Caetano, não tenho nada a ver com isso. Acho que esse tipo de música sempre foi ruim, era ruim e continua sendo e não quero nada disso em filme que tiver minha assinatura. O Reinaldo concordou e a gente trabalhou na trilha com a mó dedicação. E o filme começou a ficar bacana, pra mim.

Aí o Reinaldo me chamou pra gente dar uns palpites na edição. Então fomos lá, eu, o Leonardo Medeiros e o Willen - que é o montador e juntamente com o Reinaldo. Assistimos e passamos a sugerir cortes que estavam engordando o filme e onde o roteiro do Di aparecia mais com a melosidade toda com aquela porrada de lugar comum nefasto. O que o Reinaldo concordava, ele mexia. Só no que ele concordava, afinal a direção é dele. Pra nossa sorte, ele concordava com a maioria do que a gente tava apontando. Acabou que o filme ficou enxuto e bem bacana. Minhas expectativas agora passaram a ser muito melhores. Aí o Reinaldo teve a manha de chamar o Kitagawa pra fazer a abertura com animação e desenhos. E você sabe, o Kitagawa é um puta cartunista. Eu adaptei as histórias dele pra teatro no espetáculo Chapa Quente. E a gente viu recentemente a primeira versão da abertura e tá ficando legal pra caralho. Acaba que eu tenho agora ótimas expectativas com o filme. E depois de tudo, ainda periga do Di Moretti ganhar prêmio de "Melhor Roteiro" em algum festival. Se ele ganhou com Cabra Cega em Brasília, que era um roteiro ruim pra caramba, porque não iria ganhar com Nossa Vida Não Cabe Num Opala, principalmente depois do trabalho de cão que a gente teve limpando a sala e lavando as vidraças?

Você está compondo a música do filme. Também selecionará as canções que estarão na tela? Se sim, quem você selecionou?
Pois é. A gente já fez a trilha. Tá pronta. Tem músicas nossas (minhas e do Amalfi) e de amigos. Ainda não posso citar nomes, porque os direitos ainda estão sendo negociados. Mas posso adiantar que acho que você vai gostar de algumas de nossas escolhas.

Aproveitando o assunto: como cinéfilo e "fã" de música (na falta de palavra melhor), qual filme tem, na sua opinião, uma trilha sonora perfeita, tanto em instrumentais quanto canções?" Porra, há vários filmes. Gosto de tudo o que o John Lurie meteu a mão. Nos filmes do Jarmush, por exemplo. Down By Law é uma grande trilha. E falando de Jarmush, sou fã da trilha de Neil Yong pra Dead Man. Stewart Copeland é outro que acerta a mão de vez em quando. Lembra de Rumble Fish? É uma puta trilha onde o cara tocava até máquina de escrever. A trilha de Vanishing Point é clássica. Teve um tempo que eu andava com essa trilha no bolso da calça, gravada numa fita cassete, quando ela não tinha nem saído ainda no Brasil. Eu gravei direto da TV, num gravador velho e ficava ouvindo o tempo inteiro. É uma trilha que te inspira. Te inspira a fugir, a sair fora, a ver qual é. Nunca vou esquecer do efeito assustador que John Willians conseguiu em Tubarão. E o que dizer de Ry Cooder em Paris Texas? O Mike Figgis é um diretor que também é músico e faz trilhas muito bem. Não vou nem falar das trilhas de jazz, porque aí já é covardia. Trilhas de filmes como Bird ou Round Midnight já nasceram clássicas. Ou a ótima trilha do filme The Last Time I Committed Suicide, que é um filme sobre o Neal Cassady. Porra, brother, uma trilha que reúne Art Blakey, Miles Davis, Ella Fitzgerald, Charles Mingus, Thelonius Monk e Charlie Parker não precisa de qualquer comentário elogioso. Tudo fica redundante depois que a gente ouve caras como esses nos momentos certos. E por fim, como conjunto de música pop, queria lembrar do singelo Beautiful Girls do falecido diretor Ted Demme (irmão do Jonathan). Vai de Chris Isaak a Kiss com uma desenvoltura e acertos que dão o clima exato do filme. Tem até um momento do filme que é muito bom e emblemático do que tô falando: A Uma Thurman está num bar com o Michael Rapaport e quem é a banda que tá tocando no Boteco? É o Afghan Whigs, caralho. Você entende porque eu não podia usar Sidney Magal?

A música é uma atividade diletante para você hoje, tocando com suas bandas meio descompromissadamente, mas você já cogitou dar mais tempo e prioridade para a guitarra?
Claro que já. Na verdade, tudo o que eu quis na minha vida, além de escrever, era tocar numa banda de blues ou de rock. Comecei a fazer teatro pensando que dava pra fazer algo parecido em teatro e é o que eu tenho tentado até hoje. Pela primeira vez na vida estou tendo aulas de guitarra. O pouco que sabia, aprendi sozinho. Ainda não me sobra tempo pra praticar em casa o que aprendo nas aulas. Então fica tudo muito moroso, muito lento. Pra eu tocar como gostaria, tinha que dedicar um ano inteiro só a musica. Mas é impossível. Tenho muitos outros compromissos. Então tento levar tudo junto, da melhor maneira possível. Mas até o final do ano deve sair o CD da nossa banda, a Tempo Instável.

Voltando aos filmes: foi finalizado recentemente um filme do José Eduardo Belmonte a partir de um roteiro seu, cujo título provisório era "Meu Mundo Em Perigo". Gostaria que você falasse um pouco sobre esse projeto, se ele vai ganhar circuito nacional e sobre as "táticas de guerrilha" que, segundo o diretor, foram empregadas.
Pois é. Encontrei o Belmonte noite dessas na Mercearia São Pedro. Ele disse que o filme está em fase de montagem. A previsão de estréia é pra tipo março ou abril. Foi um filme feito com baixíssimo orçamento. O Belmonte me procurou e disse que tinha uma idéia de argumento e que queria que eu escrevesse o roteiro. Eu escrevi e ele começou a filmar do jeito dele, com muita improvisação entre os diálogos. Então possivelmente vai ter muita coisa que vai estar lá que não foi exatamente eu que escrevi. Faz parte do método dele. Ele ia filmando e tinha uma idéia, então a Marcela - que é assistente dele - me ligava no meio da madrugada, geralmente eu tava bebendo em algum boteco. O celular tocava e era a Marcela: "Marião, o Zé pensou numa cena aí. Ele quer que você escreva". E eu: "Tá bom. Pra quando?" Ela respondia: "O Zé quer filmar hoje de manhã". Então eu saía do bar, já meio alto, corria pra minha casa e escrevia a cena. O dia tava amanhecendo quando eu mandava a cena pra ele que pegava, imprimia e passava pros atores. Ele então filmava. Era assim. Tô botando a mó fé. Gosto muito do filme A Concepção, que é dele, por isso que aceitei escrever o roteiro.

Seu trabalho como dramaturgo e escritor vem ganhando muita projeção nos últimos anos. Mesmo não tendo essa intenção, você acha que um dia seu trabalho pode se tornar massivo?
Acho que não. Pelo menos, não massivo no pior sentido da palavra, como uma novela de TV ou uma música popular. É teatro, porra. O dramaturgo mais importante no Brasil é o Nelson Rodrigues e eu não diria que ele é massivo. Você diria?

Aproveitando esse ensejo: a partir de seus textos, alguns leitores - que não são poucos - criaram um "personagem" Mário Bortolotto, uma espécie de figura outsider, mal-humorada e beberrona que corresponde ao imaginário deles. Em seu último livro, você inclusive comenta isso em vários textos. Por que você acha que - mesmo insistindo que a coisa não é por aí - tantos garotos tenham adotado essa imagem sua para eles?
É compreensível. Tento esclarecer sempre que posso, mas não fico puto com ninguém. Acho compreensível. Faz a fama, deita na cama, né maluco? Eu já fui um garoto beberrão, outsider e mal-humorado. Fui muito violento e encrenqueiro. Agora sou um velho quarentão. Continuo outsider, acho, porque não faço a menor questão de entrar em nenhum esquema, embora figuras do mainstream tenham se mostrado interessadas em meu trabalho. Continuo beberrão (embora não beba a mesma quantidade que bebia quando jovem. Seria humanamente impossível) e boêmio. Dificilmente consigo dormir antes das cinco da manhã. E continuo um pouco mal humorado, embora já não seja tão encrenqueiro e violento como era antes. Tenho ficado mais paciente e tranqüilo. Aprendi a contar até 35. Todos os amigos que me conhecem atestam isso. Procuro ser um cara educado e gentil. Gosto de tratar bem todo mundo. Gosto de ser atencioso. Tem alguns filhos da puta que ainda me tiram do sério, mas já não é tão fácil. Eu costumava ser uma bomba-relógio. Gosto de ser mais paciente e consigo isso na maioria do tempo. Não é todo o tempo, mas consigo. Sou um cara comum, humano, com muitos defeitos e algumas qualidades. Algumas pessoas, mesmo gostando de mim, acabam me vendo de maneira chapada, o que é um erro. Não se deve ver ninguém de maneira chapada. Aprendi isso escrevendo personagens. Deixa os personagens chapados pra televisão, né?

Você percebe influência de seu trabalho em artistas - dramaturgos ou escritores - mais recentes?
Percebo sim. Mas não gostaria de citar nomes. Eles podem se sentir ofendidos. E seria pretensão babaca de minha parte ficar dizendo que tal artista foi influenciado por meu trabalho. Deixa isso pra lá.

Sobre o "Atire no Dramaturgo", o livro: foi você mesmo quem selecionou os textos que comporiam o livro. É sabido que você procurou escolher os mais pessoais, mas ainda assim, imagino que você teve outros filtros, porque afinal, havia muito material para peneirar. Além disso, todos os textos do blog são altamente pessoais.
Eu não queria um livro com críticas de teatro, literatura, cinema e música. Acabaria sendo uma espécie de Gutemberg Blues 2 e eu não queria isso. Então já cortei todos os textos dessa leva, embora goste de muitos deles. Fiquei só com os pessoais onde eu falava mais de mim e dos meus amigos. Uma espécie de Diário Boêmio dos meus últimos três anos em São Paulo. Talvez por isso o livro - geograficamente - tenha como cenário mais importante a Praça Roosevelt, que é onde bebo todas as noites nos últimos três anos. Então depois dos textos selecionados, resolvi dividi-los por climas. Comecei com os textos em que eu procurava explicar minhas atitudes e minhas opções profissionais e de vida. Alguns desses textos são muito raivosos, mas achei fundamental a publicação deles. Depois passei para os textos mais engraçados e mais leves, com as merdas que meus amigos e eu aprontamos na noite, pra no final do livro eu deixar a barra pesar. O final traz textos mais tristes e poéticos, onde eu exercito a navalha. E como o Reinaldo de Moraes disse que está lendo do final pro começo - quase como um mangá - posso entender porque ele chamou meu livro afetuosamente de "Elogio da Misantropia".

É difícil alguém passar por São Paulo e não encontrar uma peça do Cemitério de Automóveis em cartaz. Entretanto, o grupo raramente excursiona. Além da grana, há algo mais que entrave turnês do grupo? Vocês recebem muitos convites para se apresentar em outras cidades?
Ninguém nos convida. Eu recebo e-mails de pessoas que dizem que gostariam muito de ver peças nossas. Mas nenhuma Secretaria de Cultura e nenhum produtor nos convida. Nós não somos enturmados politicamente e eu não faço a menor questão disso. Então creio que isso é que entrave qualquer excursão do nosso grupo. Estamos indo pra Curitiba em novembro, mas é por iniciativa nossa. Estamos bancando totalmente a nossa viagem. Já tentaram até levar a gente para algumas cidades, mas sempre esbarram na questão financeira. Nunca encontram ninguém disposto a investir no nosso grupo. O que eu posso fazer? Nem o Festival de Londrina seleciona nossas peças para o Festival. Dia desses alguém me falou: "Tá rolando um lance aí de Grupos Brasileiros se apresentando em Londres. Por que vocês não tentam?" Eu respondi: "A gente não consegue nem ir pra Londrina, como é que você acha que eu posso pensar em Londres?"

Burocratas morrem e não fizeram metade do que queriam. O Cemitério mantém várias peças em cartaz. Você escreve, dirige e atua. Ainda toca em suas bandas. É uma pergunta meio boba, mas na real: como você consegue manter todo esse esquema funcionando só na autogestão? Não é tarefa das mais fáceis...
Sei lá. O nome é trabalho, Leonardo. A gente trabalha pra caralho. E eu particularmente gosto muito do que faço, embora sonhe com férias todos os dias.

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