"Mãos de Cavalo", de Daniel Galera
por
Drex Alvarez
Blog
Foto: Walter Craveiro / Flip / Divulgação
05/05/2006
Não estou bem certo agora, mas creio que foi algum filósofo ou alguma
figura mitológica da Antigüidade que ditava um conselho básico para
o ser humano e sua eterna busca pela verdade: "Conhece-te a ti mesmo".
Saber claramente o que se quer da vida, ou melhor, alcançar conhecer
a si mesmo com lucidez, continua sendo hoje uma tarefa para toda
a existência. Um processo no qual, infelizmente, são poucos os que
conseguem chegar perto de um resultado satisfatório - aquilo que
chamamos de felicidade e paz de espírito.
Porém, deixemos as especulações metafísicas para Daniel Galera,
porque ele é extremamente concreto ao enfrentar essas questões em
seu terceiro e mais novo livro, Mãos de Cavalo, seu primeiro
lançamento por uma grande editora, a Companhia das Letras. Galera
intercala duas histórias. A primeira destaca a trajetória de um
garoto que - dos dez aos quinze anos de idade, metido em suas aventuras
de bairro, entre corridas de bicicleta e campinhos de futebol -
vive justamente as primeiras descobertas em relação à sua própria
identidade. Na segunda, o foco aponta um jovem cirurgião plástico
que, ao chegar aos trinta anos depois de uma rápida, árdua e bem
sucedida trajetória de estudos e experiências profissionais, começa
então a colocar sua escolhas em cheque, bem no momento em que sai
para uma longa viagem com um amigo.
É claro, e logo se consegue fisgar a isca, que as duas trajetórias
pertencem na verdade a uma mesma pessoa. No livro, no entanto, elas
são tratadas como quase independentes e Daniel Galera, com habilidade,
costura os capítulos e mistura as referências de uma maneira que
traz ao leitor um grande prazer em acompanhar, ele próprio, o processo
de auto-descoberta vivido pelo personagem. Tanto o garoto como o
cirurgião vão entender que, tragicamente, só se conhece a própria
identidade a partir de eventos-limite, extasiantes ou cruéis, momentos
que vão ser carregados pela vida a fora. Entre ritos de passagem
e acertos de contas, forma-se um indivíduo.
Durante as duas trajetórias, o escritor não perde a oportunidade
de explorar temas bastante interessantes. O fascínio pela violência
estética em contraponto à covardia frente a agressividade real,
o recalque das emoções, o desejo e a impressão de vermos nossas
vidas registradas pelas lentes de uma câmara de cinema. O protagonista
de Mãos de Cavalo não é uma pessoa simples. Talvez ninguém
seja mesmo. E pouco a pouco o vemos exposto pelo autor. Através
das descrições ultra-detalhistas de cada situação, vemos dissecadas
suas impressões frente a cada situação, seja ela o descer vertiginoso
de uma ladeira montado numa CaloiCross aro 20', seja testemunhar
o ventre de sua esposa ser rasgado durante o parto enquanto a anestesia
não fazia efeito.
Um dos pontos mais atraentes de Mãos de Cavalo, e não há
como esta opinião deixar de soar particular, é a empatia "geracional"
oferecida pela história. Identificando-se como contemporâneos do
protagonista (e também praticamente do autor, já que Daniel Galera
tem 27 anos de idade), qualquer homem de trinta anos que ler o livro
vai inevitavelmente ser atacado pela nostalgia. Vai se lembrar de
alguma pequena aventura da infância, uma invasão de algum terreno
baldio ou uma intriga belicosa com a turma da rua de baixo. Ou mesmo
apenas sentir saudades de eventos cotidianos, como ir jogar vídeo-game
na casa dos amigos ou jogar futebol na rua. Imediatamente lhe virá
a cabeça a trilha sonora que mais lhe aprazia na época e, sem perceber,
estará mergulhado no meio de suas próprias recordações. No entanto,
há no livro também um outro enfoque que caracteriza a segunda história:
a crise dos 30 anos de um cirurgião plástico, cheio de culpas e
reavaliações, e então, de um capítulo para o outro, o mesmo leitor
vai ser expulso da nostalgia e será jogado numa dolorosa e frenética
busca por paz e redenção. Talvez a grande conquista de Mãos de
Cavalo seja conseguir gerar essa empatia e, ao mesmo tempo,
tratar de assuntos tão pouco simples.
A dúvida que fica é a seguinte: o livro funciona apenas em razão
desta identificação geracional? O personagem funciona apenas por
que viveu situações características de nossa própria época de vida?
Se a resposta for positiva, cria-se a hipótese de Mãos de Cavalo
ser um livro recomendado apenas para homens com mais-ou-menos trinta
anos de idade. Mas a aposta é que não. O nível de maturidade exibido
por Galera e a forma incisiva e objetiva com que ele expõe seu personagem
fazem acreditar que o autor conseguiu ultrapassar uma mera afinidade
de geração com sua narrativa. O personagem não funciona apenas porque
nos é contemporâneo. Nos identificamos, na verdade, com a complexidade
do sujeito. Afinal, Galera não oferece saídas fáceis, nem arrisca
interpretações psicanalíticas simplistas. Ao ponto que, no final,
admita-se, fica a tentação de querer mais respostas, fica um sentimento
de carência de razões e significados mais objetivos. Mas querer
isso talvez seja justamente negar a profundidade alcançada pelo
personagem.
O nome de Daniel Galera surgiu, inicialmente, ligado à turma de
estudantes gaúchos que publicava o já falecido e-zine Cardoso
OnLine. O COL, como era carinhosamente apelidado, foi
um dos primeiros fanzines distribuídos por e-mail e, na época, era
certamente aquele com maior alcance e repercussão. Mais tarde, Galera
fundou, junto com o também escritor Daniel Pelizzari, a editora
Livros do Mal, pela qual publicou seus dois primeiros livros: a
coletânea de contos Dentes Guardados, também traduzida e
lançada na Itália, e o romance Até o Dia em que o Cão Morreu,
que está sendo adaptado para o cinema por Beto Brant. Os dois primeiros
livros de Galera são também ótimos e merecem serem lidos. Geram
a mesma empatia mas, diferentemente de Mãos de Cavalo, seriam
classificados mais adequadamente na categoria "livros que eu gostaria
de ter escrito aos 22 anos de idade". Com seu último livro, a impressão
é que Galera somou maturidade à sua costumaz capacidade criativa.
Seja apenas mais um retrato de sua geração ou não, o que importa
é que sua literatura continua agradando, dando prazer e fazendo
pensar.
"Mãos
de Cavalo", de Daniel Galera
por
Moreno Osório
Blog
05/05/2006
Daniel Galera já dispensa apresentações no meio independente. Com
dois livros lançados (Dentes Guardados e Até o Dia em
Que o Cão Morreu) pela própria editora, a Livros do Mal, esse
escritor de 26 anos despontou no cenário da literatura nacional
como um dos nomes mais promissores da sua geração. A afirmação definitiva
chega com Mãos de Cavalo, sua obra de estréia em uma grande
editora, a Companhia das Letras.
Em seu novo livro, Galera mergulha no processo existencial que vai
da construção à afirmação de uma identidade. Na trama, duas narrativas
paralelas acompanham o protagonista em duas distintas fases da vida.
A primeira remonta meados da década de 90, quando ainda adolescente,
o personagem morava em um bairro da zona sul de Porto Alegre. Depois,
já sendo um reconhecido cirurgião plástico, ele dirige pelas ruas
da capital gaúcha antes de pegar a estrada rumo a uma escalada na
Bolívia.
Primeiramente independentes, as duas tramas vão, aos poucos, ganhando
elementos que as aproximam, até que o passado e o presente praticamente
se transformam em um só acontecimento, mostrando como foi e como
poderia/deveria ter sido determinado fato aos olhos do protagonista.
Durante essa trajetória, Galera constrói uma gradativa imersão do
personagem do presente em fatos do seu passado que o ajudaram a
afirmar sua própria identidade. Em um momento em que dúvidas em
relação à vida levam o protagonista a buscar e assumir novas referências
de mundo, há uma volta no tempo até um momento traumático, mas que
o ajudou a encontrar a si próprio. E essa rememoração é decisiva
também para os rumos do seu próprio futuro. Nesse momento as duas
histórias se fundem em uma imagem única e definitiva.
Em Mãos de Cavalo, Daniel Galera nos leva a um passeio por
Porto Alegre. Esse regionalismo sempre foi marca dos textos do escritor
desde os tempos do e-zine Cardoso Online, o popular COL.
Essa opção por demarcar o território de sua história é boa pois
garante ao leitor uma proximidade ainda maior com o que acontece
na trama, principalm quando se conhece a cidade. No entanto, neste
livro as ruas da capital gaúcha transcendem o papel de cenário,
chegando, de certa forma, a fazer parte da narrativa. Esse aspecto
chama a atenção porque Galera chega no limite ao trazer à trama
a familiaridade dos bairros e ruas da cidade. O ultradetalhismo
em descrever cada beco, dar nome a cada avenida, converter cada
rótula, quase levam o leitor a um patamar externo à história, afastando-o
da trama sem uma justificativa narrativa clara. A passagem em que
há uma crítica (através do narrador em terceira pessoa) às palmeiras
plantadas na Terceira Perimetra é um exemplo.
Mesmo assim, não há como negar que Daniel Galera cresceu como escritor.
O afastamento das experiências próprias de vida em direção à ficção
parece mais nítida em Mãos de Cavalo do que em relação às
suas duas obras anteriores, principalmente Até o Dia Em Que o
Cão Morreu, apesar de o próprio escritor afirmar que o nível
de envolvimento pessoal é semelhante em todos os três livros. Talvez
seja apenas uma questão de percepção individual. O fato é que Mãos
de Cavalo nos traz uma leve narrativa para uma história ágil
(às vezes divertida) que aborda uma questão existencial, o que,
longe de ser um paradoxo, apenas afirma este novo talento da literatura
nacional.
Links
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da Companhia das Letras
Site da editora
Livros do Mal
Cardoso
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