"Mandrake - a Bíblia e a Bengala", de Rubem Fonseca
por Jonas Lopes
Yer Blues
15/09/2005


O filósofo escocês David Hume sentenciou, certeiro, que "a repetição nada muda no objeto repetido, mas sim no espírito que a contempla". Essa deve ser a máxima de cabeceira de Rubem Fonseca, a julgar por sua obra circular. Como o curitibano Dalton Trevisan, Fonseca não abre mão dos temas recorrentes em suas tramas. Mulheres, violência, a fixação por anões, os personagens eruditos, o sem-número de referências a clássicos literários, poetas franceses obscuros e filósofos (ou você acha que a citação na abertura desse texto é gratuita?).

Se o mote é repetir, que volte Mandrake. O mais famoso personagem do escritor, protagonista de A Grande Arte e diversos contos, estrela Mandrake - a Bíblia e a Bengala (Companhia das Letras, 196 páginas). São duas novelas que se completam, ou seja, é possível classificar o livro como romance. Mandrake apareceu pela última vez na novela E do meio do mundo prostituto, só amores guardei ao meu charuto, de 1997, uma decepcionante e rasa reunião com Gustavo Flávio (de Bufo & Spallanzani) em que só se salva o título (uma citação, de Álvares de Azevedo...). Mais uma vez Fonseca e Mandrake não convencem. Mandrake tem gosto de prato requentado. Pior, parece algo feito por um dos imitadores baratos de Rubem Fonseca.

A despeito de sua incursão pela modernidade (internet, email, celular), Mandrake, que vai ganhar série da HBO e será interpretado por Marcos Palmeira, continua o mesmo apaixonado por charutos, vinhos e mulheres (meia dúzia passa por sua cama nas quase duzentas páginas de Mandrake). O advogado criminalista, ainda acompanhado por seu sócio Wexler (agora grafado como Weksler) e o delegado da Homicídios Raul, precisa, na primeira história do livro, resolver o caso do roubo de uma Bíblia rara, impressa por Gutenberg.

Na segunda história, o próprio Mandrake é acusado de assassinar o marido de uma amante com sua bengala. Os enredos de ambas são pobres. A primeira história não exige lá muito raciocínio para ser desvendada, e a segunda utiliza-se de uma homenagem ao clássico de Truman Capote, A Sangue Frio, para chegar ao desfecho. São raros os momentos de brilho. O maior deles é a descrição de uma necropsia, uma típica situação fonsequiana que ele ainda trata como ninguém. O resto é um amontoado de lugares-comuns e trechos desnecessários como "toda mulher gosta de gatos, até mesmo aquelas que não gostam livros". Ou "para falar a verdade, a maioria das pessoas que eu conhecia eram tristes, mesmo aquelas que estavam bem de vida". Ou ainda "claro que eu também queria ir para a cama com Angélica, eu gosto de sexo tanto quanto ela, mas tenho a sorte de ser homem e ninguém me chama de maníaco por ter tido tantas mulheres na minha vida, qualificam-me de 'viril', de maneira congratulatória. Eu sou admirado, uma mulher com o meu comportamento é execrada".

Todo leitor de Rubem Fonseca que se preza sabe que seus contos são muito superiores aos romances. Suas narrativas longas são pouco arrojadas. Em seus contos Fonseca exercita forma e conteúdo, abusa da fragmentação e dos truques de linguagem. E existe ainda a questão da concisão: os romances quase sempre se estendem mais que do precisam. Há exceções, maravilhas como A Grande Arte, O Caso Morel, Bufo & Spallanzani. O primeiro pelo profundo panorama do submundo nacional, o segundo pela curta duração e pela linguagem mais livre como a dos contos, o terceiro pela trama com soluções criativas (algo essencial em livros policiais).

Nenhuma dessas virtudes está presente em Mandrake. Talvez só a curta duração. E não vale o argumento de que, aos oitenta anos, Fonseca tenha ficado gagá ou perdido a mão; sua carreira só caiu numa dicotomia. Seus dois últimos livros longos, Mandrake e Diário de um Fescenino, são fracos sim. Mas as duas últimas compilações de contos, Pequenas Criaturas e principalmente Secreções, Excreções e Desatinos, são muito boas. Claro, como qualquer Rubem Fonseca, Mandrake diverte. Mas pára por aí. Resta saber se isso é um elogio ou não, já que o escritor sempre foi mestre em unir diversão e reflexão, entretenimento e intensidade. A mixórdia é indispensável. Rubem não é autor para se esquecer duas horas depois da leitura. Sua obra merece mais que isso.

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