Gauleses
Irredutíveis
(Editora
Sagra Luzzat)
por
Pedro Metz
A volta das almas rebeldes
Recentemente o público gaúcho,
e todos que se interessam pela cena local, foram presenteados com o lançamento
de um livro que preenche um espaço antes vago na história
do rock feito no Rio Grande do Sul. "Gauleses irredutíveis, causos
e atitudes do rock gaúcho", é uma obra imprescindível
para todos amantes da música, cultura e estética rock.
Compilado com competência por
Alisson Avila, Cristiano Bastos e Eduardo Müller, os grandes méritos
do livro são a busca de uma identidade local através de uma
cronologia do surgimento deste movimento em terras gaúchas e a tentativa
de refrescar a memória do público para a relevância
do rock gaúcho como fiel representante da atitude rock. Com depoimentos
brilhantes dos entrevistados, com destaque para Carlos Eduardo Miranda,
Edu K, Plato Divorak entre outros, o livro nos remete a uma época
onde fazer rock era muito mais do que saber tocar instrumentos, pois em
alguns casos os integrantes das bandas nem sabiam tocar mesmo. Assim como
em todos os movimentos de rock mundial, o responsável pela emergência
de uma cena, principalmente em Porto Alegre, já que o livro se centra
nesta cidade, é o tédio, a aparente falta de perspectiva
profissional e a dificuldade de arranjar mulheres, que unidos, transformam
qualquer pessoa com algum talento e muitos questionamentos, em um rocker
em potencial. É claro que a música também é
importante, e os primeiros capítulos são uma espécie
de marco do surgimento e da evolução de uma cena que ainda
luta para se consolidar.
Mas o mais interessante são
os depoimentos dos personagens dos anos 80 e começo dos 90. É
lá que encontramos, por exemplo, a rebeldia, a ‘rivalidade’ entre
as bandas, o Rock Grande do Sul. Um pequeno recorte dessa época
ilustrará melhor o quero dizer:
Alexandre Barea: "A idéia de
sabotarmos o show da Graforréia foi a seguinte: eu e o Flavio Basso
encarávamos o Cascavelletes como se fosse uma banda fechada, um
negócio bem delinqüente, um grupo que aprontava todas o dia
inteiro..."
Flavio Basso: "Eu era realmente doentio
com essa coisa de beatlemania..."
Nei Van Soria: "Nós achávamos
que ninguém da banda podia tocar com outras pessoas ou em outras
bandas. Eu e o Flavio cumpriamos isso à risca, o Barea também.
O Frank não."
Alexandre Barea: "Uma hora antes do
começo do show no ocidente, eu e o Flavio compramos uma garrafa
de Velho Barreiro e fizemos uma caipirinha gigante..."
Frank Jorge: "Aconteceu que eles chegaram
bêbados, gritando algumas coisas. Só que estavam tão
bêbados que não conseguiram tornar plena a sabotagem."
Alexandre Ograndi: "Tinha muita gente:
do lado de fora, pendurada nas árvores. A gente não sabia
que os dois tinham ido no show para nos sabotar."
Flavio Basso: "Moral da historia:
depois que chegamos, o Barea, no segundo ou terceiro número, se
retirou porque estava passando muito mal. Antes tivesse acontecido comigo!
Caí sobre as coisas, as pessoas também caindo. Uma coisa
inclusive um tanto arriscada para a saúde. Mas tudo acabou bem..."
O fato descrito acima, que no livro
está bem mais detalhado, revela algumas características marcantes
do período. Mas duas em especial merecem ser analisadas com cuidado:
a primeira é a atitude dos músicos. Ter uma banda, antes
de mais nada, significava pertencer a uma instituição, algo
um tanto mítico, uma versão contextualizada da eterna rivalidade
Beatles x Stones. Não que eu ache correto 'sabotar' o show dos outros,
mas um pouco de rebeldia sem causa, de porraloquice, é essencial
para o crescimento de uma cena e de uma banda. A arte é algo bastante
subjetivo, e a vivência de estados diferenciados de percepção
e de sentimentos é fundamental para a criação artística.
Sinto que nos anos 90 e começo dos 00 a criação se
estabelece como uma função profissional, o que de maneira
nenhuma é uma coisa ruim, pois viver da musica realmente é
um desafio dos mais ásperos, e a nova ordem social exige um conhecimento
mais amplo por parte dos músicos, mas este profissionalismo
acaba por determinar a perda de uma certa 'aura' que envolvia o rock de
décadas passadas e que é brilhantemenete exposto nas páginas
do livro. Na voz de Rafael Rossato, ex-guitarrista da Bide ou Balde: "Rock
não foi feito para ser bonitinho, puxar saco. Rock é pra
se drogar, pra beber, pra fazer fiasco. Rock faz o que quiser!"
A Segunda é em relação
ao público. Note que na fala de Alexandre Ograndi, da Graforréia,
ele descreve o público no Ocidente: "Tinha muita gente: do lado
de fora, pendurada nas árvores." Acrescento que o show era num domingo
à tarde. Hoje em dia onde que acontece um fato desses? Qual show
que se assemelha a descrição acima? Pessoas penduradas nas
árvores! Tenho vistos muitos shows em Porto Alegre, nos mais variados
lugares, e dificilmente o espaço interno destes lugares lota. Com
algumas exceções, bandas que têm um público
cativo, na maioria dos shows estão sempre as mesmas pessoas. Não
há um interesse, digamos assim, massivo na produção
musical feita fora da mídia tradicional gaúcha. A teoria
de que o rock morreu por falta de bandas e novas 'propostas musicais',
no meu entender, é completamente infundada. Vivemos um período
de ampla criação musical. As opções para quem
gosta de rock são maiores do que nunca. O que acontece é
que na maioria das vezes a produção alternativa sucumbe perante
aos padrões impostos por uma industria cultural cada vez mais sedenta
por dinheiro, o que implica que público, produtores e toda
estrutura da música se direcionem para artistas muitas vezes sem
conteúdo e atitude. E isso é um processo extremamente perigoso,
pois se consolida como ciclo vicioso.
A idéia de um livro como o
Gauleses Irredutíveis é algo digno de aplausos porque
procura trazer de volta a noção de que a cultura, a música,
a arte gaúcha, pode ser feita à parte do resto do país
sem que isso se torne um ato separatista. Na orelha do livro os autores
chamam a atenção para o resultado da obra como "uma espécie
de status quo dos roqueiros do extremo sul do Brasil." Porém, além
de legitimar a "panelinha cultural gaúcha", os autores e as pessoas
que participaram do livro nos mostram que a perspectiva da auto-suficiência
pode ser uma saída para que permaneçamos autênticos
e irredutíveis quanto a nossa postura alternativa, criativa e eternamente
roqueira.
*Pedro Metz
é jornalista, compositor e vocalista da Pública
Leia
entrevista com os autores de "Gauleses Irredutíveis"
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