"Fúria" de Salman Rushdie
(Companhia das Letras, 312 páginas)
por Marcelo Silva Costa
06/08/2003

Malik Solanka é indiano, tem 55 anos e se julga celibatário. Emigrou de Bombain para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos. Estudou filosofia e história em Cambridge, porém, largou a carreira acadêmica para se dedicar ao seu hobby predileto: confeccionar bonecos de madeira. Uma rede de TV inglesa decide investir na idéia de bonecos filósofos e passa a Malik Solanka a oportunidade de um programa sobre a história da filosofia em que um boneco seu entrevistaria um filósofo famoso. Assim, Malik cria Little Brain, uma boneca que será responsável, primeiramente, por este talk show. Depois, por um sucesso avassalador de escala mundial que levará o professor a quase destruição. 

Sob essa premissa, o escritor Salman Rushdie entrega ao mundo "Fúria", seu mais recente romance. Sempre que se for falar de Rushdie (de 1989 até a eternidade) terá de ser lembrado que, sim, é este o escritor que foi condenado à morte em 1989 por uma fatwa (um decreto religioso) do aitolá Khomeini, líder iraniano que julgou antiislamita o livro "Versos Satânicos". A sentença já foi revogada, porém, todo ano alguém no Irã tenta renová-la. E por mais que este seja um parágrafo auto-explicativo, após tantos anos de perseguição, é interessante notar que Rushdie é, hoje em dia, mais uma persona política do que um romancista. Sobre esse prisma, pende descuidada a faca do descaso que, ao prestar atenção demais no quão a figura desse homem é polêmica, esquece o quão bom romancista ele é.

Porém, em "Fúria", Rushdie parece perdido em atualidades. Seus temas caros – o exílio, a inveja, a fama instantânea, a falta de raízes – aparecem rodeados de citações ora pops, ora cotidianas que mesmo pessoas vivendo o tempo presente não irão conseguir absorver em sua totalidade. O livro parece uma continuação do pop e belo "O Chão que Ela Pisa", lançado em 1999. Se em "O Chão que Ela Pisa" o escritor já tinha usado e abusado das referências, em "Fúria" ele vai além, chegando a abrir demais um parágrafo, apenas para incluir neste uma citação aparentemente desnecessária, que preencherá um certo espaço físico na trama, mas poderia muito bem ser dispensada. Um trecho marcante pegou de surpresa o próprio tradutor:

"Em Nova York também havia circo, além de pão: um musical sobre adoráveis leões, uma corrida de bicicleta na Quinta, Springsteen no Garden com uma canção sobre os quarenta e um tiros com que a polícia matou o inocente Amadou Diallo, a ameaça do boicote ao concerto de Boss, Hillary versus Rudy, o funeral de um cardeal, um filme sobre adoráveis dinossauros, as carreatas de dois candidatos presidenciais altamente intercambiáveis e certamente nada adoráveis (Gush e Bore)...".

De todas essas exemplificações da fauna nova-iorquina (a lista segue página afora), eu só conheço Bruce Springsteen (não sei qual é a música), o filme sobre adoráveis dinossauros e os candidatos políticos (com a primeira letra trocada, intencionalmente). Mesmo o tradutor escorrega quando traduz "ao concerto DE Boss", provavelmente desconhecendo que Boss e Springsteen sejam a mesma pessoa, e o correto seria "ao concerto DO Boss". 

Deixando de lado todas essas bobagens pseudogramaticais e, principalmente, o emaranhado de citações, o que resta é um ótimo romance contemporâneo. Sim, porque atrás de toda essa caracterização da Nova York do novo milênio temos uma história que seduz o leitor, talvez por ser extremamente moderna. Em qual época da história mundial uma simples boneca iria adquirir vida própria e fazer filmes, estrelar vídeo clipes, lançar livros e inspirar jovens em todo o mundo senão nesta? O Gorillaz e Lara Croft que o digam... 

Paralelamente a isso, temos a história de um homem comum. Assombrado por uma infância traumática que tinha tudo para se desdobrar em uma velhice traumática, Malik abandona a mulher, o filho, a boneca Little Brain e Londres para tentar viver a vida de um velho anônimo em Nova York, a capital do novo milênio. Ali, ele se vê absorvido pelo bombardeio de informação que o faz dividir-se em pensamentos (paradoxais e ao mesmo tempo complementares) acerca da mecanização dos humanos e/ou a humanização das máquinas. 

Os primeiros capítulos tentam apresentar a cidade ao leitor. Pouco de Malik será contado no início. Ali pelo meio, a história começa a fluir melhor. É quando uma série de assassinatos acomete a cidade, oportunidade que Rushdie tem para deixar escorrer um delicioso humor negro de sua caneta. Se o livro começa grandioso demais em adjetivações e carrega no humor negro em sua metade, o final é de um brilhantismo delicioso. Rushdie parece colocar as mãos sobre o coração do leitor e apertar para ver se dali sai algo. Quanto mais as páginas rareiam, mais o livro fica interessante, preparando terreno para um final arrebatador. 

Em palestra em São Paulo marcando o lançamento de "Fúria" no Brasil, Salman Rushdie comentou que escreveu o livro em menos de um ano quando, normalmente, costuma ficar vários anos com a mesma história na cabeça. A urgência com que o livro veio ao escritor não foi o único aspecto curioso que cercou a obra. O livro foi lançado nos EUA no dia 11 de setembro de 2001, mesmo dia dos atentados às torres gêmeas. Isso mudou a forma com que o livro foi recepcionado. "Eu esperava que fosse encarada como uma obra satírica contemporânea, mas acabou se tornando um romance sobre a perda", disse o escritor. 

"'Fúria'' não é um livro sobre vingança", comentou Rushdie. "É uma comédia de humor negro, uma forma de olhar o mundo. Não tentei me vingar de ninguém. Os aspectos passionais do ser humano, criação e destruição, são dois lados da mesma coisa, da mesma força. Esta é a força que dei o nome de Fúria. Não é somente a raiva, pode haver uma fúria poética, um frenesi espiritual pode ser trazido, por exemplo, pela música", completou o escritor.

Talvez a rapidez com que surgiu tenha dado a "Fúria" uma característica de falta de acabamento. Talvez o escritor ache justo enfileirar citações e rebuscar a escrita, imaginando que escrever um livro não é escrever um recado em guardanapo, dessa forma, escrever para si mesmo é ainda o grande prêmio dessa história. E, por fim, talvez Rushdie esteja à frente dos outros, escrevendo sobre modernidades para um público que não percebe o quanto às modernidades estão enroscadas em seu dia-a-dia. Independente de qual talvez seja o certo (talvez não seja nenhum destes), "Fúria" parece surgir como um livro menor do escritor indiano, porém, não menos interessante. É o mundo sob o olhar de um fazedor de bonecos. Ele vê coisas totalmente dispensáveis tanto quanto enxerga algumas que podem iluminar a existência de outros pobres mortais. 

Quererá um escritor mais do que isso?



TRECHO DO LIVRO

"O professor Malik Solanka, historiador de idéias aposentado, irascível criador de bonecos, e, desde o seu recente aniversário de cinqüenta e cinco anos, celibatário e sozinho por (mui criticada) vontade própria, em seus anos prateados se viu vivendo uma idade dourada. Lá fora, um verão longo, úmido, a primeira estação quente do terceiro milênio, torrava e transpirava. A cidade fervia de dinheiro. O valor dos aluguéis e das propriedades nunca havia sido tão alto, e na indústria de roupas o que se dizia era que a moda nunca estivera tão na moda. Novos restaurantes abriam de hora em hora. Lojas, representantes exclusivos, galerias batalhavam para satisfazer a estonteante demanda por produtos cada vez mais recherchés: azeites de oliva de produção limitada, saca-rolhas de trezentos dólares, veículos Humvees personalizados, o último software antivírus, serviços de acompanhantes que ofereciam contorcionistas e gêmeas, instalações de vídeo, arte marginal, xales leves como pluma feitos com a pelugem do queixo de cabritos montanheses extintos. Tanta gente estava reformando seus apartamentos que os preços dos estoques de acessórios e complementos de alta classe dispararam. Havia listas de espera para banheiras, maçanetas, madeiras de lei importadas, lareiras em estilo antigo, bidês, mármores. Apesar da recente queda no valor do índice Nasdaq e das ações da Amazon, a nova tecnologia dominava a cidade: ainda se falava de start-ups, de IPO, de interatividade, do futuro inimaginável que acabara de começar. O futuro era um cassino, todo mundo estava apostando, e todo mundo esperava ganhar.

Na rua do professor Solanka, jovens brancos ricos passeavam suas roupas baggy por baixo das rosáceas dos pórticos, estilosamente simulando indigência enquanto esperavam os bilhões que sem dúvida lhes viriam em algum momento próximo. Havia uma jovem alta, de olhos verdes, de malares centro-europeus pronunciados que chamou particularmente a atenção de seu olho sexualmente abstinente, mas ainda ativo. Seu cabelo loiro-ruivo saía espetado como o de um palhaço de debaixo do boné preto de beisebol D'Angelo Voodoo, os lábios eram cheios e sardônicos, ela riu grosseiramente por trás de uma mão displicente quando o europeu, quase dândi, pequeno Solly Solanka passou girando a bengala, de chapéu-panamá e terno de linho cor de creme em seu passeio da tarde. Solly: o apelido de faculdade que ele nunca apreciara, mas que não havia conseguido perder inteiramente. 

"O senhor aí. O senhor, com licença." A loira chamava por ele, num tom imperioso que exigia resposta. Seus acompanhantes puseram-se em alerta, como uma guarda pretoriana. Ela estava quebrando uma regra da vida na cidade grande, audaciosamente, segura de sua força, confiante de seu território e de seu bando, sem nada temer. Aquilo era só bravata de menina bonita, uma bobagem. O professor Solanka parou e virou o rosto para a deusa ociosa do portal, que continuou, irritantemente, a entrevistá-lo. "O senhor anda muito. Quer dizer, cinco, seis vezes por dia eu vejo o senhor indo para algum lugar. Sentada aqui, vejo que o senhor vai, vem, sem cachorro, e nunca volta com alguma amiga, com alguma compra. O horário também é estranho, trabalhar é que o senhor não está indo. Então, pensei assim: por que ele está sempre andando sozinho? Tem um cara na cidade batendo com um bloco de concreto na cabeça das mulheres, o senhor quem sabe já ouviu falar, mas se eu achasse que o senhor era um maluco desses, não vinha conversar. E o senhor tem sotaque inglês, o que é interessante também, certo? A gente até seguiu o senhor umas vezes, mas o senhor não estava indo para lugar nenhum, só andando por aí, passeando. Me deu a impressão de que estava procurando alguma coisa, e aí pensei em perguntar o quê. Só para fazer amizade, boa vizinhança. O senhor é meio misterioso. Para mim, pelo menos."

Uma súbita ira brotou dentro dele. "O que eu estou procurando", rugiu, "é que me deixem em paz." Sua voz tremeu com uma raiva muito maior que a intromissão merecia, uma raiva que o deixava chocado cada vez que percorria seu sistema nervoso, como uma enchente. Ao ouvir sua veemência, a jovem recuou, recolhendo-se ao silêncio.

"Cara", disse o maior e mais protetor dos guardas pretorianos, seu amante, sem dúvida, seu loiro centurião oxigenado, "para um apóstolo da paz o senhor está cheio é de guerra."

Ela o fazia lembrar de alguém que não conseguia identificar, e a pequena falha de memória, o "momento de maturidade", incomodou-o furiosamente. Felizmente ela não estava mais ali, ninguém estava, quando voltou do carnaval caribenho com o chapéu molhado e ensopado até os ossos, depois de ser apanhado desprevenido por uma rajada de chuva firme e quente. Passando pela Congregação Shearith Israel, no Central Park West (uma baleia branca de edifício com frontão triangular sustentado por quatro, eu disse, quatro, maciças colunas coríntias), o professor Solanka, correndo debaixo da chuvarada, lembrou da menina de treze anos recém-barmitzvada que avistara por uma porta lateral, esperando, de faca na mão, a cerimônia de bênção do pão. Nenhuma religião tem uma cerimônia de Contar as Bênçãos, pensou o professor Solanka: era de esperar que os anglicanos, pelo menos, tivessem inventado uma. O rosto da menina brilhava na penumbra que baixava, os traços juvenis redondos confiando atingir as mais altas expectativas. É, o momento abençoado, se alguém se desse ao trabalho de usar palavras como "abençoado", coisa que Solanka, o cético, não fazia.

Na avenida Amsterdã, ali perto, havia uma festa de verão no bairro, um mercado de rua, fazendo bons negócios apesar dos aguaceiros. O professor Solanka avaliou que na maior parte do planeta os bens empilhados naquelas barracas encheriam as estantes e vitrinas das mais exclusivas butiquezinhas e lojas de departamentos de alta classe. Em toda a Índia, China, África e grande parte do continente sul-americano, os que tinham lazer e carteira para a moda (ou simplesmente, nas latitudes mais pobres, dinheiro para meramente comprar coisas) seriam capazes de matar pelas mercadorias de rua de Manhattan, pelas roupas refugadas e os acessórios encontrados nos opulentos bazares de caridade, pela porcelana rejeitada e pelas pechinchas de grife encontradas nos depósitos de ponta de estoque do centro da cidade. A América insultava o resto do planeta, pensou o antiquado Malik Solanka, tratando aquela opulência com o descaso do encolher de ombros da riqueza nada igualitária. Mas Nova York nessa época de plenitude tornara-se objetivo e alvo da concupiscência e lascívia do mundo, e o "insulto" só deixava o resto do planeta com mais desejo que nunca. Em Central Park West, as carruagens puxadas a cavalos subiam e desciam. Os sininhos dos arreios soavam como moeda viva na mão.

O grande sucesso do cinema na temporada retratava a decadência da Roma imperial do César Joaquin Phoenix, em que honra e dignidade, para não mencionar as ações e distrações de vida e morte, só apareciam na ilusão gerada por computador da grande arena de gladiadores, o Anfiteatro Flaviano, ou Coliseu. Em Nova York também havia circo, além de pão: um musical sobre adoráveis leões, uma corrida de bicicleta na Quinta, Springsteen no Garden com uma canção sobre os quarenta e um tiros com que a polícia matou o inocente Amadou Diallo, a ameaça de boicote do sindicato da polícia ao concerto de Boss, Hillary versus Rudy, o funeral de um cardeal, um filme sobre adoráveis dinossauros, as carreatas de dois candidatos presidenciais altamente intercambiáveis e certamente nada adoráveis (Gush, Bore), Hillary versus Rick, as tempestades de raios que atingiram o concerto de Springsteen e o Shea Stadium, a sagração de um cardeal, um desenho animado sobre adoráveis galinhas inglesas, e até um festival literário. Mais uma série de "exuberantes" paradas comemorando as muitas subculturas étnicas, nacionais e sexuais da cidade, que terminavam em esfaqueamentos (às vezes) e ataques a mulheres (sempre). O professor Solanka, que se considerava igualitário por natureza e um cosmopolita nascido e criado na convicção de que o campo é para as vacas, em dias de parada passeava docemente apertado entre seus concidadãos. Num domingo, seguia ombro a ombro com os exibidos quadris estreitos do orgulho gay, no fim de semana seguinte se enchia de ritmo ao lado de uma bunduda porto-riquenha que usava como sutiã a sua bandeira nacional. Havia um anonimato gostoso nas multidões, uma ausência de intromissão. Ninguém estava interessado em seus mistérios. Todos estavam ali para se perder. Era essa a magia inarticulada das massas, e aqueles dias em que se perdia eram praticamente o único propósito da vida do professor Solanka.