"O Efeito Urano" - de Fernanda Young
(Editora Objetiva)
por Marcelo Silva Costa
21/11/2001


O elevador de um belo prédio antigo em Higienópolis, bairro de São Paulo, abre a porta: a recepção é feita por Ganesha, o deus hindu (filho mais velho de Parvati e Shiva) que destrói todos os obstáculos e traz fortuna. A iluminação é lilás e me mostra que acabo de entrar no território de Fernanda Maria Young de Carvalho.

Fernanda Young é escritora, e, ao lado do marido, Alexandre Carvalho, também roteirista, de cinema (o filme "Bossa Nova") e televisão (a série global "Os Normais"). E mãe das gêmeas Estela May e Cecília Madonna. 

Ela me recebe de camiseta lilás com escritos em japonês (acho) e me traz uma coca-light. A sala é ampla, mas só temos um pequeno espaço para caminhar, devido a mil e um objetos de decoração. Um lustre com o rosto de Elvis, a parede em frente com uma pintura exuberante e centenas de coisinhas de inspiração astrológica permeiam o ambiente. 

O motivo da entrevista é o lançamento do quinto livro de Fernanda Young. "O Efeito Urano" conta a história de Cristiana, Guido e... Helena. Cristiana é jornalista e forma um belo casal com o psicanalista Guido. Até, sempre existem os "se" e os "até", ela conhecer Helena e se apaixonar. O livro busca abordar o amor e as loucuras impulsionadas pela paixão arrebatadora.

O título do livro tem inspiração astrológica e refere-se a um lapso matemático, muito próximo de um inferno astral, em que uma pessoa faz uma bobagem tão grande que detona a sua vida e a das pessoas mais próximas. 

A escrita ágil e contemporânea segue essa nova tradição de escritoras com teor pop, como Patricia Melo ("O Matador", "Inferno") e a inglesa Helen Fielding ("O Diário de Bridget Jones"). Cita Salinger, Portishead, Garbage. Se auto-cita, também. Busca inspiração em Freud e parece, sobretudo, se divertir muito com tudo isso. 

De cara começamos a bater um longo papo sobre a chatice de se dar entrevistas. Fernanda se empolga e, quando percebemos, já se foram duas horas de bate-papo.
 


S&Y - É ruim da entrevistas?

FY – Olha, é o seguinte. Diz minha irmã que eu não gosto de trabalhar, e isso é o trabalho. A criação, pra mim, ainda tem uma coisa poética da juventude, que talvez eu tenha, tomara Deus eu carregue em mim muito tempo. É muito mais uma viagem, apesar de ser duro, árduo, doloroso, etc, etc, mas tem um componente de prazer muito intenso. Já divulgar, falar sobre o livro é parte do trabalho, e eu fico no bagaço. Eu dou muitas entrevistas porque eu não tenho problema com a mídia, desde o que for até onde for. Só que isso me deixa muito cansada. É muito difícil falar sobre um livro. É muito difícil. O que você vai falar sobre ele?  Ele já está escrito. É estranhíssimo. 

S&Y – O que você gostaria de saber de um livro? 

FY – Eu gostaria de saber sobre a intimidade de algumas pessoas que eu aprecio a obra.

S&Y - Por exemplo, se eu fosse entrevistar Salinger, o que você acha que eu deveria perguntar para ele? 

FY – Eu gostaria de saber como ele escreve, como é que ele se porta fisicamente no espaço físico no momento da criação. Como é que as coisas se colocam. Se ele escreve com coisas arrumadas, como é a mesa dele, como é o espaço físico ao redor dele. Porque eu, por exemplo, a cada livro mudo de computador. É uma coisa física. Escrever dá agonia física. Eu bagunço muito a minha mesa, eu fico muito tempo com os mesmos livros parados nos cantos, sabe. É isso, tem uma "direção de arte" que eu gostaria de saber como funciona na vida dele, mesmo porque ele mora numa casa, numa cidade não sei aonde, que deve ser uma situação extremamente peculiar, mas essa intimidade física com o criador me interessa. Eu tenho até uma vaga idéia, com uma possibilidade de acerto, do que é a sensação na hora da criação, porque eu tenho essa sensação e deve existir uma intersessão que faça com que os criadores sintam a mesma sensação, não sei, imagino que sim. Então é fácil você ver uma entrevista de um autor e se identificar com a sensação que ele tem na hora da criação, mas o estado físico me interessa muito, como eles estão, como eles se vestem. 

S&Y – Como você se veste? 

FY – Eu começo um livro me arrumando para escrever. Eu coloco uma roupa confortável, faço uma distinção física, coloco um perfume, tem um ritual que eu tento sempre repetir no início dos livros. Mas teve livros que eu escrevi de calcinha e sutiã, na bagaça, horrorosa. Eu tenho até algumas fotos desses instantes, que o Alexandre tira, e é muito engraçado porque não é nada daquilo que eu imaginária de um autor. Como é um autor fisicamente criando? 

S&Y – Há um horário? 

FY – Há, a partir das quatro da tarde. Pode ser às oito, mas é sempre a partir das quatro, nunca antes. Eu não consigo. Em hipótese alguma, mas literatura, livros. Agora, para roteiro ou qualquer outra coisa eu sou altamente disciplinada e levo tudo muito á sério, no sentido profissional. Eu sei delimitar exatamente qual é a minha persona profissional, que é essa parte que tem que trabalhar, que diz a minha irmã que eu não gosto. Eu não suporto trabalhar, adorei quando ela disse isso. (risos)

S&Y - E começa as quatro horas e vai até...

FY – Começa 4 horas e pode me bastar em quinze minutos como posso querer ficar horas e horas. Teve alguns livros que eu escrevei metade em quatro meses e a outra metade em dez dias. 

S&Y – O "Efeito Urano"?

FY – "O Efeito Urano" eu escrevi de forma disciplinada demais. Eu tinha a idéia desse livro, mas não sabia a estrutura. Eu nunca consigo montar uma historinha com começo, meio e fim. As coisas surgem durante o processo de escrita. É orgânico. O meu interesse pelos personagens, a condução desses personagens... mas eu já tinha a idéia de fazer um livro sobre uma paixão entre mulheres. E era assim, uma idéia, "quero isso". Quando surgiu a proposta, eu estava grávida, ou prestes a engravidar, e era uma proposta que tinha um prazo para ser cumprido. Eu engravidei, tive as meninas e nisso veio a confirmação do projeto. "Fernanda, nós estamos mandando o contrato, vamos adiantar um dinheiro e você vai escrever um romance, tudo bem?". Tudo bem. Só que eu estava com um mês de pós-parto. E foi uma experiência muito engraçada porque era aquela mulher gorda, enorme, igual uma judia, no escritório escrevendo e lendo. Eu escrevia e lia muito Freud, a respeito da sexualidade, lendo de cabo a rabo o "Relatório Hite", que tem uma tradução da Ana Cristina César que é uma maravilha. Eu adoro esses livros técnicos a respeito do comportamento humano, quando são bem escritos. Como "O Efeito Urano" é muito erótico, bem, nem sei se é tão erótico, mas como ele tem momentos sexuais intensos, eu consegui uma coisa legal que foi manter a crueza narrativa de quem está passando por um momento nada libidinoso. E isso deu ao livro uma característica mais indecente, perverteu mais. Lendo hoje, quando vejo a descrição dos trechos em que elas estão trepando, eu percebo que aquela crueza, aquela descrição técnica, é muito interessante em um livro tão sensorial. Foi exatamente aonde eu previ colocar a parte técnica buscando um resultado, embora seja muito subjetivo, eu não posso saber antes se a coisa vai ou não vai, se trava ou não trava. Mas, hoje em dia, isso me encanta muito no "O Efeito Urano". Acho que o livro se tornou indecente devido a essa crueza de narrativa, e foi muito bom que me tivessem encomendado um livro naquele momento, porque eu não escreveria naquela época. Eu estava começando a trabalhar nos "Os Normais", mas é um outro esquema. Agora, escrever um romance eu não escreveria. Mas foi do cacete. Ao mesmo tempo em que foi uma experiência profissional bastante agradável, que demonstra que o mercado está amadurecendo, que está se sofisticando, também me obrigou a escrever um livro que iria morrer na minha cabeça. Essa idéia eu tenho desde 97, assim como eu tenho dezenas de outras idéias desde não sei quando. E provavelmente esse tema se esvaísse depois da maternidade. Não iria mais me interessar, provavelmente. Então é bom. É subversivo. 

S&Y – Você disse que quando lê "O Efeito Urano" sente isso e aquilo. Você lê os seus livros? 

FY – Eu faço o seguinte. Eu escrevo, leio, releio, leio, releio, leio, releio, até não agüentar mais. É um teste para mim sobre a qualidade do livro, tipo "é bom ou não?". Então eu fico, "gente, eu não vou me cansar desse livro?". E é incrível, porque eles sobrevivem ao meu crivo, e eu sou uma leitora muito dura. Eles sobrevivem quando passam por todas as minhas observações, todas as análises possíveis e imagináveis. Eu tenho uma consideração a pontuação que é incrível. Eu tenho uma consideração ao parágrafo, tanto que no final, a Editora me manda uma cópia em páginas grandes, mas com o formato que será no livro, só para eu ver se não tem nada que esteja corroído. Eu tenho muito cuidado com o livro como objeto, então já tento manter esse cuidado na realização do livro, para que depois ele fique com uma estrutura visual que não me faça mal. Eu leio em voz alta pra sentir o ritmo, para ver se está homogêneo. É um trabalho muito sério. Depois segue para a Objetiva e eles são super cuidadosos. Tanto que em alguns erros propositais eles perguntam, "Fernanda, você quer manter assim?". "Sim, quero manter assim". Porque às vezes há uma necessidade sonora, às vezes poética, do erro, que acaba fazendo com que esse erro seja necessário. É tudo muito cuidadoso. Desde o meu primeiro é assim. E com o primeiro ("A Sombra De Vossas Asas") aconteceu algo interessante, porque eu voltei a lê-lo para fazer o roteiro de um filme. Ele seria filmado e acabou não dando certo. Mas foi ótimo porque eu voltei a ler e li minuciosamente para este roteiro. Com isso eu percebi várias coisas, desde estrutura até sacar que é um livro muito juvenil, mas que é fofinho, não vou escrever mais assim, mas é bacana. E eu saquei que eu estava extremamente freudiana e que, naquele livro, eu ainda era muito ingênua. Eu estava falando verdades universais velhérrimas. Velhas por causa da psicanálise, porque a psicanálise é que verbalizou isso. A psicanálise é a criação máxima do verbo, da explicação verbal das sensações. Eu percebi que a minha literatura era muito psicanalítica e que eu tinha que estudar para não ficar uma boboca. Então eu fui ler as obras de Freud, os autores pró e contra Freud, as ramificações, e comecei a me envolver muito com a psicanálise, e os outros livros que escrevi começaram a ter esse ritmo de mais consciência da psique. Acho que todos os meus livros têm, principalmente os dois últimos. São livros curtos porque não poderiam nem ser tão grandes para que as pessoas não estourassem de tanta precisão a respeito do assunto. Eu acho que um leitor que queira ser delicado e queira captar coisas estará muito bem servido com esse livro. Trechos como o que eu falo da avidez, da inveja, são verdadeiros Aquilo é resultado de uma pesquisa séria. Foi uma pesquisa do objeto, a respeito da mitificação do objeto. Você quer amar e você pega um objeto, idealiza esse objeto, esse objeto reflete o que você quer, quando na verdade você está buscando a si próprio, você está jorrando a si no outro e o outro está te dando um respaldo de toda a bagunça que é isso tudo. É incrível. Uma coisa que tem me impressionado muito, até depois desse livro, e eu digo que vou parar com essa coisa de psicanálise, mas não agüento, eu adoro isso, mas eu cheguei há algumas importantes constatações esses dias e uma delas é que no campo idéia, nem sei se falo isso no "O Efeito Urano", acho que não, mas você tem uma idéia, "ahhh, hoje vou falar isso isso e isso com alguém", e você está no campo da intenção. A intenção é uma coisa vaga, vaga, vaga. O percurso da intenção quando entra para o campo da ação e você se depara com outro, diante de um meio ambiente repleto de informações, é complicado. Então, nesse percurso, a sua intenção vai pra puta que o pariu. Eu me frustro muito com isso. Porque como eu sou uma profissional do verbo, eu fico pensando "porra, eu sai de casa para falar com fulano, para mostrar o quanto eu sou legal, mas o que que eu fiz: agi como uma esnobe, falei em latim, por que eu fiz isso?". Quer dizer, no caminho, no meio daquilo tudo, você se transforma e você perde a sua intenção. Isso é de uma dor...

S&Y – Não tem muito do acaso ai? 

FY – Tem muito da gozação cósmica...

S&Y – Digo isso porque nós temos toda essa planificação, essa idéia, mas em uma série de expectativas. Por exemplo. Pensamos "eu vou falar com fulano e pode acontecer isso, isso ou aquilo", e acontece uma quarta coisa que não estava nos planos...

FY – Eu acho essas casualidades maravilhosas, mas isso eu ponho no micro, no micro, no micro que é o seguinte: é você conseguir apenas ser visto. Porque a busca da psicanálise, da sensação de turbulência que é como a psicanálise denomina quando você fica bem, Freud escreveu o termo "turbulência" devido a um quadro, de Leonardo da Vinci, eu acho, e ele viu aquilo e comparou a pessoa que fica naquela turbulência de uma consciência plena, que é isso de você conseguir ser visto. Quando eu digo que a intenção se perde é que, naquele momento, você não conseguiu se mostrar. Você simplesmente se anula na intenção de ser verdadeiro e se transforma num clone louco e exuberante. Eu tenho muito isso. Talvez eu tenha idéia fixa nesse assunto porque toda vez que eu vou há algum lugar e penso, "eu vou ficar ali, no canto, misteriosa, calada", mas quando vejo já estou contando a piada do fanho e imaginando que não é isso, minha intenção não era essa. É isso, e acrescentando outros fatores, que deve ser o efeito urano. É a evolução, o acaso, a transformação, a queda. Acho que no livro tem uma coisa bastante bacana que é quando a Cristiana tem o pânico das pedras e que ela liga, e eu uso muito isso nos meus livros, essa coisa do celular. O celular é uma merda. O celular é o primeiro passo para fazer a merda. Eu, durante uma época da minha vida, se não tivesse celular não teria feito metade das coisas que eu fiz. Então, a Cristiana saca do celular e liga para a outra. E ali inicia a história, que é quando eu falo "pelos fios de Graham Bell, por telefones dados e não dados". É o acaso. A intenção dela não era aquela. Ela estava andando em uma rua que eu digo que é uma rua que ela sempre passa, ou seja, são os percursos da intenção e aonde ela vai parar. O certo é que a gente saiba lhe dar com nosso dia a dia de forma, no nosso meio social, familiar até, tentando estar o máximo realizado dentro da intenção do que você é. Mas no amor e na paixão é exatamente o oposto disso. Você despiroca. É o “Efeito Urano”. É quando você vê que suas intenções estão todas fugindo pelos seus dedos e você quer uma coisa e faz outra, e ao mesmo tempo faz o que quer, mas não era para fazer o que quer. E ai... puxa, eu nunca falei tanto como eu estou falando agora (risos) e eu nem queria dar entrevista, né. Sabe, eu estou me lembrando de partes incríveis do livro, estou adorando. Por exemplo, na hora em que eu falo do macaco, e eu falo muito de macaco, você percebeu? Tem uns três momentos em que eu falo do macaco, do genoma do macaco, de que se ele quiser banana ele vai não sei aonde e até recorro a idéia de que venho falando de macacos já faz tempo. Tem aquele trecho em que a Cristiana diz que descende de Adão e Eva e não dos macacos. Eu acho que tudo acontece porque ela tem um medo muito grande da natureza. Porque a repressão, as impossibilidades sociais, as impossibilidades afetivas, o proibido, a assusta. E a paixão que é, simplesmente, uma coisa muito constrangedora. Porque a paixão não é fácil. A paixão está sempre envolvida com dificuldades e com decepções. E o incrível da paixão é que você abre essas gavetas que eu falo no livro, se mostra totalmente, mostra coisas do arco da velha, e ao mesmo tempo, mistura tudo, idealiza tudo, informa tudo errado. O caminho da intenção e da ação se desvirtua. E surgem os mal-entendidos. É mal-entendido atrás de mal-entendido. Eu adoro isso. Eu adoro quando as pessoas me contam as histórias de suas paixões. Eu fico, me conta isso, me conta aquilo, e a pessoa chora, chora, chora. E eu fico, "que maravilha". É incrível. Você faz tudo errado, e a pessoa diz "eu fiz tal coisa e me reergui" e dá uns dias e essa pessoa faz uma merda de novo e eu acho isso simplesmente fascinante. São esses jogos que você simplesmente não consegue deixar de fazer. A Cristiana não conseguiu. Em dado momento ela se mostra tão honesta que diz que não conseguiu e que não se arrepende disso. Ali ela faz a sua mea culpa, porque ela não se arrepende. O que fazer? Foi o efeito urano. A pessoa que se arrepender de um efeito urano está fudida, porque não tem como retroceder. O efeito urano é um fato. E deixa cicatrizes, como no caso dela, que foi a cicatriz da cesariana, que é uma simbologia belíssima, da cicatriz, da mentira, porque ela representa um fato e não é. São as intenções se perdendo novamente. Eu acho isso muito bonito. 

S&Y – Interessante isso que você falou sobre as histórias de amor e sobre as expectativas.  Eu, pelo menos, quando li "A Insustentável Leveza do Ser" fiquei chapado, porque o Milan Kundera lida de forma maravilhosa com o real. Aquilo é a realidade. Porque nós ficamos pensando "a pessoa está imaginando isso, está pensando aquilo”, quando ela está pensando uma outra coisa totalmente diferente...

FY – "A insustentável leveza do ser" é um dos meus livros prediletos. Quando eu tomei a decisão de escrever mais um livro, eu estava meio perdida na época, e eu resolvi escrever "A Vergonha dos Pés". Nisso eu li muito "A insustentável leveza do ser" para dar o start. Era exatamente o caminho que eu queria para o meu livro. E é uma literatura bem psicológica, sensorial. 
 
 

S&Y – Exato, porque lida com essa expectativa que nós criamos, mas está apenas no nosso imaginário. 

FY – A gente cria tudo, só que não é. E outra coisa. Uma coisa dolorosa demais, um erro recorrente de todo mundo é ficar pensando como o outro te vê. A idéia do outro, como o outro te olha. E, simplesmente, você não tem a menor chance de acerto. É um exercício de uma estupidez tremenda. E quando eu faço das minhas... bem, eu sou uma pessoa muito tímida socialmente. Eu me excluí socialmente e me relaciono com poucas pessoas. Algumas pessoas, muito raras, eu telefono. São pessoas que eu admiro e tal, mas que eu sempre tento mostrar uma coisa e acabo mostrando outra e fico pensando no que a pessoa pensou. Ai eu sumo... "o que será que essa pessoa pensou? Ela deve ter pensado que eu sou uma louca"... Isso é um erro. Eu acho que esses exercícios mentais meus completamente enlouquecedores fazem parte do meu oficio. Eu acho que essa elucubração ensandecida sobre a figura A e a figura B, a conexão e as desconexões, que eu tenho na minha vida, são de onde eu tiro a minha escrita. E a minha vida é bastante simples, não são coisas incríveis, são pequenos tratos com pequenas pessoas, algumas informações que se perdem e desentendimentos. As pessoas pensam que eu vivo intensamente. É muito gozado, mas não é o que acontece. É tudo muito delicado. O start de uma idéia começa na delicadeza. Agora, que de fato eu sou um desastre em me apresentar, eu sou. Isso me assusta às vezes. E eu sempre fiz isso, desde pequena. Utilizei-me muito de recursos de autoproteção e de uma série de coisas que estabeleceram uma verdade ao meu respeito que não condiz com a realidade. E, claro, eu manipulo essa informação. E ela me traz muita liberdade. Porque quando você tem uma má fama você é mais livre. É ótimo ser uma bad girl. 

S&Y – O livro faz parte da série "Cinco Dedos de Prosa" da Editora Objetiva. Você foi a primeira a escolher um dedo. Por que esse?

FY – Esse é um dedo que eu adoro e que eu uso muito, no fuck you, assim, na rua, para pessoas que me incomodam. Eu sempre me defendi muito com esse dedo e é um dedo que eu uso anel. É o dedo que está no centro. Acho que todos os dedos podem e estão sendo trabalhados com mil possibilidades porque a mão toda é extremamente inspiradora. Mas eu acho que o dedo médio é o mais contemporâneo, o mais pop. Ele é o que surge no movimento punk. Ele já tem um design, um conceito pop. E ele penetra, ele é sexual. Eu gosto. Eu não titubeei a respeito da escolha. Não tive duvida alguma. Depois eu comecei a perceber coisas legais, como o fato de ter homens ao meu redor e eu estar no centro. E que de fato seria natural e estratégico que eu ficasse com esse dedo. Por fim ele me coube muito bem na proposta de marketing do livro. A Objetiva vem tentando fazer com que meus livros sejam bem vendidos, porque, claro, é essa a intenção. E eu acho chiquérrimo para o Brasil que um livro meu esteja, um dia, entre os dez mais vendidos. Isso é uma coisa que eu não tenho ansiedade alguma, mas que eu sei que um dia acontecerá, e que será uma evolução para o Brasil. Na minha opinião... sincera e nada modesta. (risos). A Objetiva vem traçando essa evolução da minha carreira, do meu mercado profissional, nunca interferindo na minha criação. Nunca modifiquei uma linha de livro meu por causa de nenhum editor, nada, nada. Meus livros sempre foram tratados com toda atenção. Todas as capas foram escolhidas por mim, menos essa, por ser parte de uma série. Porque esse é um projeto da Objetiva, eles compraram a criação. E isso é muito interessante porque o livro como manuscrito não era tão erótico como ficou como objeto. Eu agora acho que está erótico. Antes eu não achava. Eles trabalharam com um erotismo forte. E isso é uma coisa que não foi intencional, sabe. Não é minha intenção e não é o meu estilo. Não é da minha natureza a descrição como tema do erotismo, mas o livro ficou como um objeto erótico. 

S&Y – Você disse que tinha várias idéias e que está estava entre elas. Como surgiu? 

FY – Ela surgiu porque, quando eu publiquei em 97 o "A Sombra das Vossas Asas", já existia muita gente, desde o inicio, que dizia que se identificava muito com meus livros, com os personagens dos meus livros. Tanto homens quanto mulheres, porque, da maneira que eu descrevo o amor, não importa o sexo. Se você abstrair o sexo fica apenas a descrição da sensação. E algumas pessoas, algumas mulheres que são bem diferentes de mim, conservadoras até, estavam dizendo que se identificavam comigo. Eu pensei, "estou fazendo com que as pessoas pensem", que bom, porque é para isso que serve o escritor. Tem gente que não realiza a idéia e o escritor vai e realiza, e essa pessoa fica "nossa, mas eu sinto isso". Esse é o poder da literatura. Nisso eu pensei, "vou escrever um livro em que as mulheres se identifiquem e se sintam incomodadas com essa identificação". Será que elas vão vir me dizer que se identificaram? E está acontecendo. E é esse tipo de gente que eu pretendo que se desvencilhe do sexual e que se identifique apenas com a sensação. Tem ocorrido isso. E para elas verbalizarem isso, para elas se tocarem que estão se identificando com uma história que trata do amor entre duas mulheres, é muito libertário. Eu acho que é muito libertário. Não é um assunto tabu porque não existe assunto tabu para mim. Eu não tenho problema com assunto nenhum. A essa altura do campeonato, se pensar isso é ridículo. Mas instigar alguém a ter uma sensação por caminhos novos, diferentes, sensações guardadas, mostrar que esse alguém tem coisas que, às vezes, em suas gavetinhas, possam parecer tão anormais e que não são anormais, é muito bom. Eu adoro fazer com que as pessoas se sintam melhores. Eu acho que tenho conseguido isso com a minha literatura e com "Os Normais" também. É a idéia de fazer com que as pessoas simplesmente se sintam acompanhadas, percebam que elas não são anomalias. Nós somos educados a crermos que somos anomalias. Eu acho que quem lê os meus livros com bons olhos sabe do que eu estou falando. Então, você percebe que o assunto é muito menos VIP/EXAME do que se imagina. Não há nada de tão incrível. As partes de descrição sexuais são altamente normais, que eu saiba. Qualquer mulher sabe o que fazer com outra. Basta saber o que fazer consigo mesma. É uma verdade. É um caminho orgânico que as mulheres têm. As mulheres são muito pansexuais. Então, a descrição me é autoral, com um bom nível de crueza, por causa dos fatores que te expliquei no começo, mas eu fico muito orgulhosa. É um livro que me deixou com orgulho. Outro dia eu estava pensando que minhas filhas vão ler os meus livros. Sim, elas vão ler. Não sei exatamente em que momento que elas vão ter essa curiosidade. Não sei. Só sei que elas vão ler esse livro e eu as estava amamentando quando escrevi. E eu acho que é um livro para se ter orgulho. Orgulho é uma palavra meio vaidosa. É um livro para pensar, poxa, "que mulher... forte". Eu quero que as minhas filhas sejam mulheres fortes e elas só vão ser fortes se me verem forte. E esse livro é muito feliz. É de uma categoria, de uma coragem. Eu estou muito feliz. 

S&Y – Como você definiria a personagem principal, Cristiana.

FY – Eu acho que a Cristiana é uma personagem muito fraca. Ela é uma mulher com uma cultura bem bagunçada. Eu entendo que a partir do casamento dela com o Guido, e isso não está escrito no livro, ela começou a ler, a se sofisticar mais, mas sempre sendo uma mulher muita engraçada, perspicaz, especial. Mas uma mulher sem uma estrutura familiar. Eu conheço várias mulheres assim. Eu mesma sou assim, com uma mistura classe média pop erudita muito forte. Mas ela é uma pessoa fraca. Naquele primeiro instante que ela narra, em Paris, quando ela se sentiu olhada, ela demonstra isso. E é muito bonito esse lance de que a gente se esquece do olhar dos outros quando a gente não pode vê-los. E ela sente algo novo, um feedback do que ela é. Quando o outro olha para você é o feedback do que você é. E aquilo fica amortecido e, naquele instante, ela conhece o objeto perfeito que lhe veste perfeitamente. E é aquela mulher que a gente não sabe como é, porque nós não sabemos como a Helena é. A Cristiana tem uma narrativa extremamente rancorosa, porque ela foi desprezada. A gente tem algumas informações de que a Helena é uma pessoa muito duvidosa, mas, enfim, é aquela coisa, nós não sabemos como a Helena é realmente. A gente sabe que a Cristiana é uma mulher muito fraca. Ela tem o caráter, a personalidade fraca. E, ao mesmo tempo, ela tem um corpo, uma natureza física muito forte. E ela é influenciada pelo cosmos, que é onde entra o "Efeito Urano". O efeito urano a conduz. E ela passa por tudo aquilo. Até engravidar ela engravida. Ela tem um corpo totalmente natural, com uma beleza física, e ao mesmo tempo ela é muito junkie porque ela bebe pra cacete. Isso é uma negação. Ela não escuta o corpo dela. Ela tem o caminho da paixão, mas ela tem a negação de um monte de outros caminhos. E acontece a gravidez e tudo que decorre dessa gravidez é muito triste, mas era inevitável. Aquilo ali foi o erro cósmico. É triste demais. Eu acho que o livro propõe mais umas vinte páginas para o leitor imaginar... afinal, é claro que o Guido a ama, e é claro que ela não sabe disso. Porque ela sabe que ela fez uma cagada enorme e ela não pode nem conceber que alguém possa perdoar. Porque ela não consegue se perdoar. Ela está calada, muda e não consegue nem pedir perdão. Eu acho que vai existir um momento em que ela conseguirá verbalizar isso e que o Guido, que é uma alma superior, como costumam ser os homens atuais que trabalham o lado feminino, poderá tê-la como sempre teve. Ela é uma mulher especial porque viveu um efeito urano. E era o que ela queria. O tempo inteiro, no livro, ela diz que clamava por uma vida diferente, algo incrível, algo que a mudasse, e ela consegue essa algo incrível, esse algo que muda tudo. Acho até que ela tem chance de escrever, que é o que ela quer. Com certeza ela melhorou após isso tudo. 

  

continuação