Entrevista - Antonio Fernando Borges
por Jonas Lopes
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Gymnopedies
23/04/2006


Machado de Assis e Jorge Luis Borges: um encontro que todo bom leitor já deve ter imaginado. O mestre brasileiro e o mestre argentino, duas mentes iluminadas, imbuídas de um humor irrefreável, de fina e cortante ironia, enfim, pura genialidade. Infelizmente, um detalhe básico impediria o encontro. Quando Machado morreu, em 1908, aos 69 anos, Borges tinha apenas nove anos. A solução, portanto, é usar a imaginação. Já que, por esse problema logístico básico eles não poderiam se conhecer, o carioca Antonio Fernando Borges, em Memorial de Buenos Aires (Companhia das Letras, 222 páginas), seu terceiro livro, elaborou um quase-encontro.

Como convém ao título (semi) machadiano, trata-se de um livro-diário de um certo Antonio Fernando Borges, acadêmico fanático por Machado de Assis e que acredita ser uma espécie de reencarnação do ídolo (a ponto de achar, inclusive, que tem epilepsia - "aquelas coisas esquisitas", como dizia Machado). O diário corresponderia à viagem de AFB a Buenos Aires em 1939. "O que torna o diário irremediavelmente insensato é o detalhe de que, no período de tempo aludido, meu avô já se encontrava morto, vítima de um acidente doméstico no Natal de 1938", afirma na introdução outro Antonio Fernando Borges, neto do narrador.

O grande barato de Memorial de Buenos Aires é esse jogo de identidades, o quebra-cabeça entre real e imaginário. Nunca fica claro se o diário existe, se tudo aquilo aconteceu ou não (o último capítulo do diário corresponde à data exata do primeiro capítulo, como um retorno). Aqui vemos o lado Borges do livro, nesses truques temporais, os espelhos, dobraduras e bifurcações. Na capital argentina, o narrador conhece um jovem intelectual publicado nas revistas locais, Jorge Luis Borges, conhecido pelos amigos como Georgie. Vão surgindo vários outros Georgies diferentes pelas ruas de Buenos Aires, novamente no espírito borgeano do tempo que se cruza, se repete e se transforma. Quando o verdadeiro (será?) Georgie é seqüestrado, a trama ganha contornos policialescos.

Utilizar autores ou grandes personalidades históricas como personagens é uma prática habitual na literatura desde Stendhal e Tolstói. Hoje em dia é ainda mais comum. De Saramago (O Ano da Morte de Ricardo Reis) a Julian Barnes (O Papagaio de Flaubert) e Colm Tóibin (O Mestre), vários escritores já exploraram essa possibilidade. Alguns, como Barnes, buscam uma abordagem ensaística, que reflita sobre a obra do objeto selecionado. Outros utilizam as informações biográficas como pano de fundo para outra história. Memorial de Buenos Aires fica no meio do caminho. Não chega a ir tão fundo na análise quanto Barnes, mas faz algumas ligações entre a vida e obra de Machado, promove divagações sobre o tempo e tenta adivinhar como teria sido a carreira do Bruxo do Cosme Velho caso tivesse ficado cego em 1878 (pouco depois ele entrou na fase mais criativa de sua carreira). Essas digressões, no entanto, apenas recheiam a narrativa que comanda o romance.

Nessa entrevista, Antonio Fernando Borges (o autor, não o narrador; ou não?) fala sobre a paixão que o levou a escrever três livros sobre os gênios. Fala ainda da polêmica causada por dois artigos recentes publicados na mídia.

Memorial de Buenos Aires encerra uma trilogia envolvendo Jorge Luis Borges e Machado de Assis. O que você pretendia alcançar com essa trilogia?
Eu pretendia pagar um tributo à minha formação como escritor, que foi muito em cima da leitura e do impacto da obra desses dois autores, que eram também grandes leitores, e aí a gente forma uma grande cadeia. Na literatura você tem dois caminhos: ou você viveu grandes experiências, como Joseph Conrad ou Herman Melville, e depois vai escrever sobre aventuras - Tufão, do Conrad ou aqueles livros do Melville; ou então você vai ser um escritor formado pelas leituras que você teve, e essa é uma linhagem que eu sempre me identifiquei mais. E vendo a biografia de Machado e Borges eu vi que tinha uma identidade com esses autores. Quando eu comecei a querer produzir minha própria obra, já na maturidade, eu vi que tinha uma influência, um impacto disso, e se eu tentasse disfarçar ia parecer uma influência explícita, quase uma imitação. Então eu resolvi transar isso diretamente: vou explicitar na forma de um tributo. Peguei a obra dos dois e problematizei. Um primeiro livro de contos sobre a obra do Borges (Que Fim Levou Brodie?, 1996), o segundo um romance em cima do trabalho do Machado de Assis (Braz, Quincas & Cia, 2002) e no terceiro, o Memorial, eu juntei. Foi uma coisa que começou meio improvisada e depois, lá pelo terceiro livro, eu fiz o planejamento e vi que podia fazer essa leitura. E a partir de agora eu me sinto "liberado" da minha dívida e vou partir para novos projetos que já estão em gestação, romances que não tenham a ver com essa coisa de "livro sobre livro", metalinguagem e tal. Mas eu achava que tinha que passar por essa trilha, por esse caminho de homenagear esses dois escritores.

Não devemos esperar então um eventual encontro entre Pierre Menard e Quincas Borba, procurando o Aleph na rua do Ouvidor?
(Risos) Não, não, aí daqui a pouco estão dizendo que eu sou monomaníaco. Agora eu estou com uns novos trabalhos esboçados que não têm a ver com isso. Porque isso também representou pra mim uma coisa que nem todo escritor valoriza, que é o diálogo com a tradição. As pessoas ficam pensando, "como vou enfrentar o desafio da página em branco?", ou "como eu vou introduzir uma coisa nova?", e não percebem que o grande desafio não é a tela em branco ou a folha em branco; é como dialogar com esse imenso legado que já existe na literatura. Você não vai reinventar a roda ou descobrir a pólvora. Então você tem que negociar - negociar no bom sentido -, dialogar com esses autores, com essa tradição que você escolheu seguir. E Borges e Machado também traziam isso, vinham nessa cadeia alimentar, de autores no crivo da tradição, tentando dar uma contribuição.

Você falou das influências explícitas. Em um trecho do livro o narrador afirma que "a decisão de escrever sobre Machado logo se revelou uma vontade, mais do que uma inveja, de escrever como ele". Quando começou a escrever, você sentiu essa dificuldade de fugir das influências e encontrar uma cara própria?
Eu senti mais do Borges, que tinha uma linguagem e uma prosa que eu considerava mais parecida com o que eu queria escrever, mas com o Machado também teve muito isso. Aquela prosa solta e irônica de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, aquilo foi fascinante. Poxa, depois de autores como esses, como eu vou escrever? O fato de eu ter sido um leitor voraz deixou em mim um padrão de referência, de exigência, com a leitura. Será que eu vou conseguir escrever alguma coisa que me agrade, que agrade ao leitor exigente que eu me tornei? Esse foi o desafio, e acho que não cheguei lá não, estou me esforçando. Mas escrever como Machado ou como Borges é uma tentação, pois são dois autores com um estilo - vamos chamar precariamente de estilo - bastante marcado, bastante forte. E isso eu senti que é um problema meu. Você pega um autor e, como eu coloquei nessa frase do narrador do livro, passa quase a querer escrever como ele. E é um ótimo exemplo. Se é pra seguir um exemplo, que siga os melhores.

O título do livro, que é muito bom, veio antes ou depois da idéia da história?
Veio antes. Eu tinha escrito os dois primeiros livros e não tinha essa idéia do projeto, de ser uma trilogia, até porque foram lançados por editoras diferentes, em períodos diferentes. Eu tinha ganhado um volume daquela editora francesa Pléiade, chamado Album Borges, com fotos dele, e estava passando na porta da Academia (ABL) e vi a estátua do Machado. Aí o trocadilho me passou pela cabeça e caiu na hora. Eu gostei tanto que fui inventar um livro para encaixar esse título. Mas o título surgiu primeiro.

Que outros livros nesse formato de explorar autores clássicos como personagens você admira?
Naquela série que a Companhia das Letras lançou (Literatura e Morte) há dois que eu gosto muito: o do (Luis Fernando) Veríssimo em cima do Borges (Borges e os Orangotangos Eternos) e do (Alberto) Manguel sobre o Stevenson (Stevenson Sob as Palmeiras). Mas o meu projeto iniciou antes, não tem influência disso. O Nabokov faz isso de brincar com a literatura, só que os autores dele são inventados, não são conhecidos. Desses autores cuja relação entre literatura e vida me influenciaram, eu poderia citar o Nabokov, uma leitura muito marcante pra mim, e o Ítalo Calvino, que faz aqueles livros de livros, reinventa As Maravilhas de Marco Pólo em Cidades Invisíveis.

Hoje se começa a escrever muito mais cedo. Vemos autores com vinte, vinte e poucos anos lançando livros, enquanto você lançou o seu primeiro trabalho com mais de quarenta. Como você enxerga essa questão de começar cedo ou tarde?
Olha, eu comecei a escrever cedo e comecei a publicar quando achei que tinha maturidade, alguma coisa digna de ser publicada, de provocar interesse nos outros. Acho que as pessoas ficam ansiosas de ter um reconhecimento, até de ser celebridade - se é que literatura traz o que se pode chamar de celebridade - e publicam as primeiras coisas que escrevem. As primeiras coisas que eu escrevi foi aos catorze anos! E não saio publicando aquilo. Eu até fui severo demais e rasguei tudo, e hoje, aos 51, gostaria, por nostalgia e pelo resgate afetivo, de ver esse material. Só que eu joguei fora. Eu até usava uma Lettera 22 que meu pai me deu de presente.

Escrever é um processo que a gente começa cedo mesmo. Não tem receita pra isso: alguns começam a escrever tarde e mostram brilho, mas costuma-se começar cedo. É mais fácil hoje em dia publicar. Tem blog na internet e, por mais que as pessoas falem e reclamem da dificuldade de editar, nunca foi tão fácil publicar um livro. Têm muito mais editoras. Pagando ou não, você tem um leque de possibilidades e as pessoas se sentem seduzidas por isso. Eu acho que muitas delas podem se arrepender depois. Quer dizer, nada é tão irreversível assim; depois você se retrata publicando livros melhores. É uma escolha pessoal.

Você provocou um certo rebuliço ano passado com um texto publicado no site nomínimo (Publicar é preciso. Escrever, não), afirmando que os autores novos só querem publicar, e não escrever...
Ah, essa garotada adora bater boca. Você não tem idéia do quanto eu fui ofendido. Mandaram emails pra mim, uma barbaridade. Mas eu continuo com essa posição. As pessoas delegam a você o papel do algoz, do carrasco. "Ah, você está querendo impedir que as pessoas publiquem". Eu não quero impedir nada, nem tenho poder pra isso. Eu apenas expressei minha opinião. Teve gente que, por email ou por blog, me acusou de tentar censurar as pessoas. Eu não tenho poder pra nada disso! Não trabalho em editora, não dirijo publicação, não faço política literária, ou seja, poder absolutamente nenhum. Só expressei uma opinião e insisto nela: essas pessoas têm mais pressa de publicar, de aparecer, de viver esse prestigiozinho, do que de escrever. É claro que o tempo acaba selecionando, os melhores ficarão, os talentosos. Eu acho que só botei o dedo na ferida, doeu e nego berrou.

Literariamente falando, quais são os problemas dessa geração?
Acho que falta de diálogo com as outras gerações, falta de conhecimento. Porque existe uma tradição romântica no Brasil de romper a literatura, ter espontaneidade, então acho que as pessoas estão querendo reinventar a roda de uma linguagem que, essa sim, eu considero bastante desgastada, que é o realismo, o naturalismo. Querendo escrever sobre os problemas sociais sem tê-los entendido. Vão repetindo uma série de clichês que a tradição política-ideológica vem legando, e isso é um problema.

Essa questão da impaciência de querer publicar antes de ganhar maturidade faz com o que o cara não treine. É uma questão de treinamento. Deve ter por geração um ou dois gênios que têm aquele dom mesmo da escrita, mas pra maioria é treino. Comigo foi muito treino. Eu trabalhei muitos anos como jornalista, trabalho ainda como redator, hoje em dia trabalho com projetos por encomenda, e não ganho a vida com meus livros, que nem vendem lá essa coisa toda, longe disso. Aprende-se a escrever escrevendo. Mas as pessoas não têm essa prática. Aí vem o quê? Textos fracos, às vezes com aquela coisa escatológica, a preocupação que o jovem tem de querer impactar, chocar, causar escândalo. Aquela rebeldia dos jovens que há em qualquer geração.

O Fabrício Carpinejar escreveu um artigo admirável na revista Entrelivros (Ofídio de escritor), reclamando que os novos autores querem ser Joyce sem ter lido Balzac...
Exatamente. Assino embaixo. Não leram nada, e ficam querendo transgredir. Até por ingenuidade. Eu me lembro que queria isso também, mas tinha a salvaguarda porque eu não publicava. Não vou dizer que eu nunca cometi esses pecados. Eu escrevi coisas que depois fui ver e, cara... Drummond fez isso, Mallarmé já fez isso, muito tempo atrás, e eu aqui bancando o "gênio que inventei...". Inventei porra nenhuma. Com o tempo você vai ficando mais exigente, vai restringindo o leque. Todos esses erros eu cometi, mas não os trouxe a público. E ainda bem que não me deixaram publicar na época, que hoje eu já podia estar com pudores, "eu publiquei isso, que eu vou fazer, jogar debaixo do tapete?". Os primeiros livros do Mário de Andrade ele botava na bibliografia como "obras imaturas", e só depois vinha a obra madura.

Não há ninguém que se salve na Geração 90?
Eu confesso que, por falta de tempo mesmo, eu nunca li nada não. Aquele menino que organizou a coleção, e nem é dessa geração, ele é bom, o Nelson de Oliveira. O Drummond tinha um poema que dizia "não me mande originais, estou atrasadíssimo com os clássicos". Eu tenho um tempo limitado pelo trabalho, pelos familiares, amigos e o que sobra eu vou dedicando a leituras que vou colocando numa fila, como todo mundo. Não é por maldade. Da geração anterior - se é que a gente pode marcar por gerações - eu destacaria o Bernardo Carvalho, o Nelson de Oliveira e o Rubens Figueiredo.

O que você achou do Movimento Literatura Urgente?
Posso ser franco? Não sei nem o que é isso.

É um manifesto lançado ano passado, assinado por cento e tantos escritores, pedindo, entre outras coisas, uma espécie subsídio do governo para escrever.
Isso é absurdo. O escritor não tem que contar com isso não. É criar uma geração de burocratas com o compromisso de apresentar resultado que tiraria toda a liberdade da literatura. Meus livros, depois de prontos, eu pergunto pro editor se gostou, se quer publicar e só. Mas me prender dessa maneira, só a idéia já me dá um calafrio na espinha.

Uma vez, em uma reunião com amigos, havia um candidato a prefeito aqui no Rio, há umas duas eleições atrás. O político perguntou para mim que a prefeitura devia fazer pela literatura. Eu falei, "quer a opinião sincera? Absolutamente nada. A prefeitura devia deixar a literatura em paz". O que se pode fazer - e veja bem, isso não tem a ver com literatura, e sim com circulação de livro - é estimular a compra de livros pelo MEC, pelo Ministério. Nada a ver com a produção da literatura. O escritor tem que ser livre.

Outra polêmica sua foi um artigo na EntreLivros (Menos política e mais literatura), em que você reclama que o discurso de rappers e funkeiros têm sido elevado à condição de literatura e a arte está virando caso de polícia. Acho que as pessoas não entenderam a sua posição, pois eu vi gente lhe chamando até de fascista...
É pegar uma frase pra querer sacanear os outros. Eu quis dizer que baixaram os padrões de qualidade e, por razões extra-literárias, ficam dando voz para esse rapaz que fez o livro do Falcão (MV Bill), dentro de uma tradição que no Brasil é muito grande: a apologia romântica do bandido, do fora-da-lei, do que transgride e enfrenta a sociedade. Eu usei esse exemplo porque, dentro da música, eu considero o que há de mais ruim. E as pessoas acham que porque vem da periferia, por razões sociológicas e não estéticas, precisa ser valorizado. Ele tem o direito de falar? Tem. Como disse, não sou eu que tenho autoridade para impedir alguém de abrir a boca. Eu só reivindico o direito de não gostar, não querer ouvir e, quando tiver um espaço, poder dizer que não ouço e acho uma porcaria. E extremamente fascista é quererem calar a minha boca, me caçarem como uma ratazana só porque eu expressei uma opinião divergente da maioria.

Além de escrever, você também dá palestras e oficinas de escrita. Com toda essa dedicação à literatura, não bate às vezes um desespero, uma angústia de pensar que pouca gente lê e que a livro é, hoje, algo supérfluo para a maioria das pessoas? Qual o sentido de continuar?
Vem muito daquela discussão filosófica do sentido da vida. Me lembro que uma vez, há muito tempo atrás, eu trabalhava à tarde num emprego de horário fixo e tinha algumas manhãs que eu ficava em casa terminando meu primeiro livro. Tinha uma faxineira lá em casa que um dia disse, quando eu estava escrevendo, "puxa, o senhor deve ganhar muito dinheiro, trabalha tanto". Eu apontei pra tela e disse que "isso aqui não dá dinheiro, não". Ela se apoiou no cabo da vassoura e perguntou, com toda a espontaneidade e pureza d'alma: "ué, se não dá dinheiro, por que o senhor faz?". E é uma pergunta recorrente pra qualquer pessoa com senso prático. Certamente não é dinheiro nem glória terrena que eu estou buscando. A gente busca outras satisfações, como escrever um bom livro.

E o livro está em expansão no Brasil - o livro como objeto, como produto industrial, não necessariamente a literatura de qualidade. Claro que, per capita, você vai ver que a porcentagem de leitura é muito baixa no Brasil. Eu também acho que a literatura - e essa é uma visão pessimista - vai entrar em extinção nos próximos séculos. Às vezes me sinto um ser em extinção. Mas é o que dá sentido à minha vida. Eu faço outras coisas pra ganhar dinheiro, claro, mas é a literatura que dá satisfação.

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