"Diário de um Fescenino", de Rubem Fonseca
por
Marcelo Damaso
madamaso@terra.com.br
24/06/2003
Ele
é um escritor que teve um sucesso incomum na atual literatura
brasileira, seu primeiro livro foi adaptado para o cinema e
televisão, desfruta da fortuna concebida dos direitos
deste livro e seus outros romances foram meros desagrados para
público e crítica. Um belo dia resolve escrever
um diário, "algo que nunca publicaria", ele constatava.
E publicou. Não, não estamos falando do autor
Rubem Fonseca, e sim de seu personagem Rufus, voz narradora
de Diário de um Fescenino.
O
Aurélio defende um fescenino como um sujeito obsceno,
licencioso. Rufus, no entanto, não chega ao extremo de
ser um depravado, apenas se envolve com muitas mulheres da feita
em que sente um afeto físico e (ou) emocional. Rufus
é apenas macho, só que ele escreve sobre sua macheza
sem nenhum pudor em seu diário. Alguns críticos
sérios já questionaram a qualidade do livro e
atacaram justamente o rótulo "fescenino" que se afasta
do conceito do personagem.
Diário
de um Fescenino continua na mesma linha estilística
inovadora e de narrativa ousada de um dos grandes mestres da
literatura contemporânea. Ao passar das páginas,
você precisa ficar ligado nos dias em que ele conta os
acontecimentos passados e nos dias em que ele passa sem contar
alguma coisa. É como a leitura do diário de uma
pessoa: você precisa saber o que ela fez naquele dia e
o que ela vai contar no próximo dia sobre os dias em
que não escreveu.
Enfim,
você se interessa pela vida de um escritor que traça
todas as mulheres que lhe dêem um sorriso? Quer saber
sobre um cara que foi criado por quatro mães? Acha irônico
mesmo assim o sujeito ser machista? Acha que é mais um
daqueles livros em que o autor quer se colocar em primeira pessoa?
Principalmente, você acha que Fonseca estava ficando velho?
Leia seu último romance e se prepare para indagar como
é que um senhor de 78 anos ainda consegue escrever com
tanta concisão sobre sexo feito um garoto que acabou
de descobrir tal coisa.
Rubem
Fonseca não usa viagra, e escreveu sobre um cara que
usa as mulheres, é macho, as come do jeito que quer e
se envolve de forma humana e prestativa com cada uma delas,
transformando a primeira metade do livro em uma descrição
curiosa e bem humorada sobre ser escritor no Brasil – inclusive
as percepções e impressões de Rufus sobre
o universo literário soam como fortes desabafos de Fonseca.
Na segunda, ele transforma o livro num romance policial como
ele bem sabe fazer. Todo escritor quer ser como o Rubem Fonseca
quando crescer: viril, quase anônimo e com um belo contrato
com a Companhia Das Letras.
Trechos
"1º
de janeiro
Decidi,
primeiro dia do ano, escrever um diário. Não sei
que razões me levaram a isso. Sempre me interessei pelos
diários dos outros, mas nunca pensei em escrever um.
Talvez depois de considerá-lo terminado - quando?, que
dia? - eu o rasgue, como fiz com um romance epistolar, ou o
deixe na gaveta, para, depois de morto, os outros - nem sei
quem serão, pois não tenho herdeiros - resolverem
o que fazer com ele. Ou, então pode ser que eu o publique.
'O
bom diarista', disse Virginia Woolf, 'é aquele que escreve
para si apenas ou para uma posteridade tão distante que
pode sem risco ouvir qualquer segredo e corretamente avaliar
cada motivo. Para esse público não há necessidade
de afetação ou restrição.' Nao me
imporei restrições, porém sei que estarei
sendo influenciado de várias maneiras, ao considerar
a hipótese de ser lido pelos meus contemporâneos.
Os autores de diários, qualquer que seja sua natureza,
íntima ou anedótica, sempre escrevem para serem
lidos, mesmo quando fingem que ele é secreto. O Samuel
Pepys, que codificou o seu diário, deixou pistas para
ser decifrado."
Trecho
2
'18
de maio'
'Acredito
em você.'
'Pode
acreditar.'
'Então
me beija.'
Beijei-a
na boca. Aos poucos ela foi entreabrindo os lábios, mantendo
os olhos fechados. Eu não fecho os olhos nunca. Gosto
de deixar todos os meus sentidos funcionando. Por esse motivo,
não ingiro estupefacientes quando me encontro com uma
mulher: os prazeres governados pela lucidez são mais
aguçados, a euforia insensibiliza.
'Pode
encostar o corpo em mim, como fez naquele dia.'
Encostei
o pau duro nela. Nos livros uso parcimoniosamente esse linguajar
soez, mesmo assim sou considerado por muitos um autor obsceno.
No fundo sou um moralista. Lembro-me de como fiquei chocado
quando, já jovem adulto, descobri que uma mulher com
quem mantinha uma relação muito íntima
era casada. Ainda tenho dentro de mim muito dessa inocência.
Nos seus diários, editados com o título Tagebücher,
Schnirzler escandalizou os leitores ao registrar as suas dezenas
e dezenas de orgasmos com mulheres diferentes. Schnitzler, 'com
sua busca ávida de conquistas sexuais', no dizer de Peter
Gay, 'não era típico de sua classe, pois os prazeres
burgueses costumavam ser moderados, temperados, permeados de
abstenções'.
Trecho
3
'21
de agosto'
Posso
ser considerado um fescenino, um licencioso, tendo tido, até
agora, pouco mais de quarenta mulheres? É bem verdade
que se eu mantiver o atual desempenho e durar tanto quanto o
Casanova - o libertino morreu com setenta e três anos
- terei ultrapassado as cento e dezesseis amantes que o italiano
teve. Don Juan Tenório alcançou a cifra de duas
mil quinhentos e noventa e quatro amantes. O recorde absoluto
- evidentemente, de uma mulher - é de uma atriz francesa,
Mademoiselle Dubois, que, em suas memórias, escreveu
que num período de vinte anos teve casos com dezesseis
mil quinhentos e onze homens, o que dá uma média
de três por dia. Mas chega de falar de façanhas
sexuais. isso é assunto de revista feminina.
Estou
pensando seriamente em publicar este diário sob um pseudônimo.
Quais as vantagens e as desvantagens? Bem, prejuízo eu
não teria, meu verdadeiro nome não leva mais ninguém
às livrarias. Meu nome, segundo o meu editor, não
é comercial. 'Rufus não é nome de escritor,
é nome de cachorro, como Rex', J. S. disse antes de publicar
o meu primeiro livro. Nenhum autor com pseudônimo ganhou
o prêmio Nobel; como não estou concorrendo a essa
recompensa, não seria uma desvantagem inventar um nome
novo para mim. Eu sairia ganhando alguma coisa? Creio que sim;
os críticos literários acostumaram-se a falar
mal de mim, ou, o que é pior, passaram a me ignorar completamente.
Talvez o meu novo livro, assinado por outro autor, seja mais
bem recebido pela crítica e pelo público, pode
acontecer comigo o fenômeno Roman Gary-Émile Ajar.
Escritores usam pseudônimos há muitos séculos,
o nome verdadeiro de Rabelais era Alcofribas Nasier, Voltaire
foi batizado como François Marie Arouet, Molière
chamava-se Jean-Baptiste Poquelin, Stendhal era Henri Marie
Beyle - poderia citar centenas de nomes, antigos e modernos.
Vou pensar mais no assunto. Ah, lembrei-me agora: Ricardo Reyes
ganhou o Nobel com o pseudônimo de Pablo Neruda.
J.
S. me convidou para tomar um café na editora. A cara
dele estava grave, mas começamos falando bobagens, esse
é o jeito dele, gosta de conversar trivialidades antes
do assunto sério, foi assim ao dar-me a noticia do fracasso
do meu segundo livro, antes falou meia hora sobre futebol. No
segundo livro, A órfã, tentei contar uma história
do ponto de vista do personagem feminino. O livro tem um visão
jamesiano que só percebi mais tarde.
Trecho
4
"Morar
com uma mulher é a maneira mais rápida de se acabar
com o tesão, com o amor, até mesmo com a amizade.
Porém as mulheres em geral querem casar, ter um lar e,
dentro do lar, um homem gentil que lhe dê um ou mais filhos,
e que saia para trabalhar toda a manhã e que saia a noite.
Não querem esse homem para amar e foder – evidentemente
ficam mais tranqüilas quando o macho as come, mesmo quando
não estão muito dispostas -, querem companhia,
provisão, segurança."
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