"Coração Envenenado", Dee Dee Ramone
por
Leonardo Vinhas
Arte - Karina Tengan
lvinhas1@yahoo.com.br
17/11/2004
Lá
pelos 12 ou 13 anos de idade gravei uma fita com o Loco Live,
dos Ramones. Havia algo de muito diferente ali. Eu era um moleque
quase atípico - "quase" porque na verdade era um gordinho tímido
de classe média baixa que se sentia acuado numa opulenta escola
de classe média alta e passara parte da infância ouvindo Smiths
enquanto brincava de Comandos em Ação, sozinho em meu quarto.
Ou seja, um pré-adolescente chorão normal, a não ser por alguns
dados anedóticos. Mas por que eu ouvia tanto aquela fitinha?
Era um disco barulhento, com trinta músicas (trinta e três,
mas na minha Sony C60 só cabiam trinta) quase iguais entre si,
mas aquilo me dava uma vontade louca de agitar. De, sei lá,
chutar alguma coisa. Sair do meu quarto, tomar sol, falar com
pessoas, dar risada, deixar o cabelo espetado, pogar. Ainda
fiquei um bom período no quarto, criando uma banda de amigos
imaginários onde eu era o baixista e tocávamos covers de todas
as músicas do Ramones. Pelo menos, todas as do Loco Live.
Isso é o resumo simplista da história e claro que muita coisa
mudou. Deixei de ser gordo e tímido há milênios, os amigos imaginários
fazem esporádicas e cordiais visitas e com bem menos intimidade,
tomo sol direto, dou muita risada e deixei de ouvir Ramones.
Nunca pensei a sério se tudo teria começado com as canções daquela
fita.
Provavelmente não, há muito mais por trás de uma vida feliz
que algumas composições adrenalínicas de um minuto e meio. Mas
que Loco Live marcou esse período e aderiu-se indelevelmente
à minha memória musical, não há qualquer dúvida.
Foi há poucas semanas que caiu em minhas mãos esse Coração
Envenenado (Poison Heart no título original), de
Dee Dee Ramone, lançado no Brasil pela editora Barracuda, e
com prefácio do jornalista André Barcisnki. Coração Envenenado
versa sobre Dee Dee, um cara criado na Alemanha pós-guerra que
foi um dos fundadores do quarteto que alicerçou (em partes)
o punk britânico, o idealizador do mais famoso sobrenome do
rock'n'roll, que dividia as principais composições com o vocalista
Joey e que popularizou um jeito de contar até quatro em inglês.
A imprensa "especializada" (vou um dia entender o que é isso?)
andou "vendendo" Coração Envenenado como um livro sobre
os Ramones. Não é. Apesar do subtítulo Minha Vida com Os
Ramones, é a autobiografia de Douglas Colvin, um cara que
tinha tanto ódio de si que mudou de nome para tentar viver outra
vida.
É um livro recheado de drogas, com bem pouco sexo e quase nada
de rock'n'roll. Um livro, na real, bem cansativo de se ler,
pois os capítulos seguem o pensamento errático de quem consumiu
muito de tudo e passou a vida às turras com os próprios demônios,
quase sempre perdendo fácil para eles. Não há nenhuma precisão
quanto a datas, alguns nomes aparecem do nada, outros somem
sem qualquer razão ou satisfação.
Ainda assim, não considero perdidas as horas que passei lendo-o.
Porque existe em nós, pessoas que gostamos tanto de músicas
a ponto de comprarmos publicações sobre elas, uma curiosidade
sobre quem fez aquela canção que embalou um namoro, uma transa,
uma briga, uma viagem, uma farra, um porre, uma desilusão, uma
comemoração. E nesse quesito, Poison Heart traz algumas
poucas revelações. Como a de que os Ramones não gravaram uma
nota sequer no álbum End of the Century, concebido a
partir dos sonhos de Joey e da loucura de Phil Spector. Ou que
Dee Dee estava acabado demais para gravar as linhas de baixo
de Pleasant Dreams, disco cuja turnê subseqüente detonou
sua saída da banda. Ou que Joey, Johnny e Dee Dee sabiam que
eles nunca mais recuperaram o frescor criativo dos primeiros
discos após a saída do baterista Tommy. Ou...
Há muitas outras histórias, inseridas entre episódios tristes,
patéticos ou irritantes. O mundo que orbitava ao redor de Dee
Dee era tão junkie e decadente que englobava desde fatos mediocrizantes
(como Marky de calças arriadas imitando uma galinha por horas
a fio) até brigas violentas, envolvendo strippers, drag queens,
traficantes (aliás, a primeira ocupação do jovem Douglas), empresários,
outros rockers, fãs... Triste, mas sincero e sem rodeios. Punk.
Dee Dee Ramone morreu de overdose em 2002. Joey falecera um
ano antes, e esse ano foi a vez do carrancudo Johnny bater às
portas do paraíso. Não sei se deixaram qualquer deles entrar,
e nem vou arriscar uma avaliação final do livro pois isso seria
como julgar a própria existência de seu infeliz autor. Mas os
Ramones, em suas diferentes fases, estão na memória musical
de muita gente. Se isso é motivo para ler o livro, eu não sei.
Porém, é motivo mais que justo para nunca ter vergonha de entoar
um "hey ho, let's go".
Leonardo Vinhas não sabe tocar
nenhum instrumento, mas tirou sozinho e de ouvido a linha de
baixo de I Don't Want to Live This Life Anymore.
Site da
Editora Barracuda
Site Oficial dos Ramones
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