"A Dália Azul", Raymond Chandler segundo Filippo Scózzari
por Leonardo Vinhas
Capas - Divulgação

lvinhas1@yahoo.com.br
10/12/2004

O amigo leitor que sabe quem é Raymond Chandler, provavelmente deve ter mais de 25 anos. Mesmo assim, é sempre bom apresentar: Chandler era um dos cardeais do romance policial, aquele estilo lindo e cheio de frases de efeito muito parecidas entre si que abrilhantou os anos 40 e 50 e deixa uma porção de gente sofrendo de nostalgia até hoje - como você, leitor, que além de maior de 25, não suporta os filmes do tipo "policial bom & policial mau".

O homem foi também roteirista de Hollywood, o que fodeu com sua vida. Por mais que pareça gratificante, Chandler trabalhou com duas lendas do cinema, colaborando no roteiro de dois indiscutíveis filmaços: Pacto de Sangue, de Billy Wilder (1944), e Pacto Sinistro, de Alfred Hitchcock (1951). A Dália Azul (1946), seu único roteiro original, foi seu maior sucesso comercial, transformado num hit das bilheterias com a presença de Alan Ladd e da linda e gélida Veronica Lake. Chandler odiou a película, bem como todo o processo de realização da mesma. Ele também odiou Pacto de Sangue e Pacto Sinistro...

Filippo Scózzari, o leitor só sabe quem é caso tenha passado os anos 80 gastando uma boa grana em gibis europeus. (Não foi meu caso, eu estava aplicando meus suados caraminguás em abobrinhas Marvel e DC) Um dos integrantes da seminal revista Frigidaire, Scózzari criou personagens e histórias totalmente desviados de qualquer moral - como a freira Dentona e seus boquetes. Assim como seus obcecados companheiros comunistas iconoclastas, Scózzari detestava qualquer lugar comum em qualquer arte (eles gostavam de The Residents, e isso diz muito). Seria inimaginável que um deles se dispusesse a quadrinizar a historinha pífia d'A Dália Azul, mas foi exatamente isso que aconteceu em 1982, e agora ganha uma bela edição brasileira pela Conrad Editora.

Porque esse anarquista adaptou um hit hollywoodiano manjado você pode descobrir no delicioso prefácio escrito por Rogério de Campos, nessa edição que ainda inclui textos do produtor e ator John Houseman e do grande Oreste Del Buono (que já era um ativista multimídia antes de inventarem esse termo babaca). É o primeiro passo recomendável para você cair de boca (ou de olhos, como queira) nesse maravilhoso trabalho, fruto de duas mentes antagônicas que nunca passaram perto uma da outra.

(Aliás... Como será que Chandler encararia essa HQ? Será que ele a renegaria, como renegou o filme? Ou será que ele acharia o máximo? Faz alguma diferença saber disso? Alguém se importa?)

Conjeturações à parte, essa A Dália Azull em quadrinhos é um trabalho superlativo, que mereceria os melhores adjetivos, se Scózzari não rejeitasse todos eles. Também ele desgostou profundamente do resultado final, sem ter se divertido nadinha com o desenvolvimento do mesmo.

Ambos, Chandler e Scózzari, viam a trama com pouco interesse e muitas reservas. O ódio nutrido pelo italiano pode ser percebido, por exemplo, no recordatório do décimo capítulo, que resume o mote: "a mulher de Johnny foi eliminada. Ele não tem nada com isso - de saco cheio, já tinha caído fora. De qualquer forma, ele é suspeito e procurado. Uma loira, ex-mulher de um amigo da mulher de Johnny, dá em cima dele - muitos figurantes, Chandler está bobo de tudo e eu, que vou atrás dele, estou mais ainda".

Sem a mínima vontade de continuar o imbróglio, Filippo abusa da metalinguagem, do freakshow e do cinismo para conduzir a trama a um desfecho minimamente interessante. E consegue mais que isso. O produto final não foi apenas uma divertidíssima desconstrução de um "clássico", mas uma cínica e hilária obra visual. A arte "deformadora" é uma atração à parte: até o bonitão-fodão Johnny vira um camarada meio patético em seu traço pérfido e limpo.

Merece aplauso também a Conrad Editora, pelo capricho e esmero ao tratar dessa BD com respeito, mas sem reverência excessiva (um mal editorial nacional, que alça qualquer boa historieta à condição de "clássico"). Chandler entrou em colapso por ter perdido um ano de sua vida escrevendo o original, Scózzari se lamenta por ter jogado fora mais um ano adaptando-o e eu estou feliz da vida por ter dispendido duas horas do meu sono lendo isso aqui. Se os autores detestam a obra com toda sua alma, aos leitores sobram razões para deixá-la em destaque na estante.

A luta entre a consciência anárquica e satírica de Filippo contra o legado rejeitado de Raymond virou uma história cheia de humor, aspereza e sordidez, que te pega de forma a te deixar sem descanso até chegar ao final. Pode não ser um clássico, mas é certamente a coisa mais divertida que você vai ler esse ano.

Leonardo Vinhas, 25, gosta de Ed Mort, Franco Saudelli e mulheres baixas. Mesmo assim, adorou essa A Dália Azul.
PS: parabéns, Rogério de Campos, por não engrossar o coro dos louvadores da porquice metida a noir de Frank Miller.
E obrigado.


Leia também
Franco Saudelli, por Leonardo Vinhas

Links
Site Oficial da Conrad Editora
Site de Filippo Scózzari
Informações sobre Raymond Chandler