Robert
Crumb é uma lenda. Uma lenda magrela, franzina e tímida, daquelas
que esconde atrás de seu sorriso uma inteligência voraz e uma
visão inconformada das coisas que o cercam. Em Blues
(Conrad), Crumb constrói uma ode aos primeiros anos do estilo,
enquanto massacra a música popular moderna, que na verdade é
qualquer coisa criada dos anos 70 para cá. "Eu me interesso
por épocas anteriores, mas os anos 1920 e 1930 são próximos
o suficiente para me despertar um envolvimento pessoal", diz
o desenhista no posfácio, para depois completar: "A música moderna
sempre me pareceu apocalíptica".
Blues reúne, pela primeira vez, as HQs "musicais" de
Crumb e as capas de discos, filipetas, anúncios e cartazes que
o quadrinista fez nas últimas quatro décadas. As HQs já haviam
sido reunidas em Crumb Draws the Blues (inédita no País),
enquanto as capas de discos foram compiladas na França e na
Holanda, mas nunca publicadas em um mesmo livro.
A relação do desenhista com a música é o mote de Blues,
que conta com dezenas de histórias deliciosamente nostálgicas,
honrando o velho bordão "como era boa aquela época" enquanto
sacaneiam os tempos modernos em um livro que é um retrato impressionante
a respeito dos bluesmen norte-americanos. "Eu adoro música.
No entanto, não sou um grande músico. No máximo, arranho um
banjo ou um violão. Para mim, a música é o maior dos prazeres,
com o sexo. Mais do que arte, admito", garante Crumb. E essa
relação apaixonada é exibida ao extremo em Blues.
Desenhada em 1984, Patton conta a história do blueseiro
que trocou a alma pelo sucesso com o demo em uma encruzilhada,
bateu e apanhou de muitas mulheres, entornava álcool como respirava
e gravou alguns dos maiores blues de todos os tempos, para morrer
totalmente desconhecido. "A música que Patton tocava e cantava
não pode ser descrita de maneira alguma. Ela precisa ser ouvida".
As Velhas Canções São As Melhores é um dos trechos mais
hilariantes do livro, e lembra muito o estilo MAD de ver as
coisas. Crumb traduz para os quadrinhos, literalmente, quatro
canções e o resultado é uma acachapante sacanagem com as músicas,
mas a grande carta de intenções do livro é a história Onde
Foi Parar Toda Aquela Música Magnífica de Nossos Avós (1985),
que detona Bruce Springsteen e até cita o Menudo! Para Crumb,
o problema é que a música elétrica é tocada alta demais, sem
contar que desde Robert Plant, passando por Bon Jovi, Guns e
chegando no Darkness, gritar e cultivar uma cabeleira decente
ficou muito mais importante do que tocar uma simples canção.
Além da crítica voraz de Crumb, em histórias recheadas de cinismo
e diretas no queixo da juventude consumista, Blues traz
as ilustrações coloridas do quadrinista para capas de discos,
revistas e até filipetas de sebo e selos de vinis. Robert Johnson
é retratado com suprema maestria para a capa da revista 78
Quarterly (1988) enquanto o violinista Louie Bluie ganhou
uma sensacional capa de disco: de um lado, uma bela negra seminua
e do outro, ele, o demônio. Entre os dois, o blueseiro. No entanto,
nenhuma capa de disco de Crumb ficou mais famosa que a para
o álbum Cheap Thrills, da banda Big Brother & The Holding
Company, que contava com os vocais da então desconhecida Janis
Joplin, amiga de Crumb. Clássica é pouco para a capa do disco.
A própria capa do livro foi retirada também de uma capa
de disco, a coletânea Harmônica Blues, com canções dos
anos 20 e 30.
Em uma edição caprichada da Conrad - que já lançou no Brasil
o álbuns com histórias de Fritz The Cat, Mister Natural, a compilação
de trechos da revista Zap Comix, e América - Blues
também conta com a presença de Mr Natural e o famoso "Keep on
Truckin", além de fotos do próprio Crumb em atividade com sua
banda (sim, ele montou uma banda!!!), que, segundo um dos cartazes
presentes no livro, é "a banda perfeita para todas as ocasiões:
festas, casamentos, quadrilhas, festivais e pequenos clubes".
Em um cartaz anunciando um disco do R. Crumb & The Cheap Suit
Serenaders, o desenhista (e tocador de banjo) avisa: "Nós não
usamos glitter, nem penduricalhos, pulseiras ou colares brilhantes
nessa banda de homens. Apenas tocamos a melhor música que podemos".
Blues é, mais do que qualquer outra coisa, uma reverência
ao passado, e como observou Rosane Pavam no ótimo prefácio do
livro, "o passado é uma ilusão - e como ilusão precisa ser restabelecido,
ou ser um homem não fará senso". Por baixo da veia satírica
com que Crumb detona os dias atuais e se declara apaixonado
pelo passado também há muita nostalgia. A crítica, no entanto,
serve para chacoalhar o leitor e mostrar que as coisas que existem
hoje em dia brotaram no passado e foram sendo afetadas pela
cultura de massa até tomarem a forma que tomaram. E vão continuar
mudando. No fundo, bem lá no fundinho, música boa é música antiga.
Se tirarmos as histórias inventadas, as roupas, o glamour, a
moda e o marketing, pouco sobra de tudo que ouvimos atualmente
da "melhor banda de todos os tempos da última semana". É ali,
no som do violão cru e da voz rascante que está a redenção.
Nos velhos discos de vinil (discos de vinil? Meu Deus, o que
é isso?) de 78 RPM. Amém.
Leia também:
Documentário sobre Robert
Crumb, por hugo
Link:
Conrad Editora
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