"Como
Ser Legal" , de Nick Hornby
por
Marcelo Costa
Escrever
um livro não é lá coisa fácil. Mas,
disse alguém, todos temos dentro de nós um livro,
um disco, algo artístico que deva interessar aos outros
mortais. Assim, é compreensível que os discos
de estréia sejam sempre o supra sumo de qualquer banda
e existam perambulando por ai grandes escritores de um livro
só.
A grande questão do parágrafo acima é:
legal, todos podem lançar seu primeiro livro (disco ou
o que seja) que, muitas vezes, trará uma carga autobiográfica
fortíssima, mas a coisa complica quando todas as "nossas"
histórias esgotam um primeiro exemplar. É desse
ponto em diante que diferenciamos artistas de pessoas comuns,
afinal, a de se admirar um cara como Neil
Young que já lançou, até 2002, trinta
e oito discos solo, fora seu trabalho com o Buffalo Springfield
e o supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young. Se ele não
faz arte, me desculpe, eu preciso assistir esta aula novamente.
Nisso chegamos ao inglês Nick Hornby, figurinha fácil
em qualquer conversa sobre cultura pop. Hornby estreou na literatura
com um diário (tem até datas) de um torcedor,
Febre
de Bola, em que contava de sua vida dedicada ao Arsenal,
time inglês de futebol, irmão distante do Corinthians
Paulista. Na seqüência, o escritor passou com louvores
pelo teste do segundo livro com Alta Fidelidade, romance
que desnuda esse ser estranho que é o homem de trinta
e poucos anos do final do século passado, amparando a
narrativa em citações pop. Seu terceiro livro,
Um
Grande Garoto, variava a mesma questão mantendo
a literatura hornbiana em alta.
Para escrever Como Ser Legal (How To be A Good
– 2001), porém, Hornby arriscou um pouco mais. Primeiro:
mudou o sexo de seu interlocutor. Segundo: deu a ele (yep, a
ela), uma casa, um emprego sério e filhos. Mas manteve
as mesmas dúvidas a respeito do mundo que flutuavam no
céu de seus romances anteriores. O resultado dessa empreitada
é, sim, Nick Hornby dos bons. A escrita ágil desse
inglês de 45 anos, fã de futebol e música
pop, é o grande trunfo do livro.
Por outro lado, Como Ser Legal não desce tão
fácil quanto os livros anteriores. Culpa maior de um
tratamento de ambientação que por várias
vezes parece que não vai levar a lugar nenhum, mas acaba
salvo por alguma tirada genial do escritor, dessas de fazer
o leitor, no meio da rua, fechar o livro e rir compulsivamente.
Quer uma sacada engraçada? Ok, este resenhista na fila
do banco, lendo. Ao chegar ao caixa, o funcionário pergunta
se o livro é bom. No que comento e verifico a capa, imagino
o pensamento do rapaz olhando o livro em minhas mãos:
"Ele está tentando ser legal, por isso comprou um livro
de auto-ajuda", afinal não há (a primeira vista)
nenhuma diferença de "Como Ser Legal" para "Como Se dar
Bem Nos Negócios", "Como Ser Feliz No Emprego" ou "Como
Assistir e Gostar de Filmes Iranianos". Fina ironia.
A história é bacana. Katie Carr é médica,
tem dois filhos, um marido (David) constantemente chateado e
uma vontade louca de mudar, jogar tudo para o alto e começar
do zero. Mas nada é tão simples. E a culpa? E
os filhos? E será que começar tudo de novo vai
impedi-la de errar novamente? Mas ela errou? Onde? Todas estas
dúvidas (e muitas outras) preenchem a vida de Katie até
que, em um telefonema, ela avisa a seu marido que quer se divorciar.
A decisão provoca uma reviravolta na vida dos Carr. Sem
saber se divórcio é o certo, o casal segue tentando
encontrar uma solução enquanto trocam provocações.
A rotina muda quando David, que assina uma coluna no jornal
local de nome "o homem mais irritado de Holloway", encontra
o DJ Boas Novas, um curandeiro movido a ecstasy, que lhe mostra
a "luz" (sic) e o caminho perfeito para a humanidade. Da noite
para o dia, David torna-se solicito, gentil, bem humorado, politicamente
correto e caridoso a ponto de doar um dos três computadores
que existiam na casa para uma instituição carente
e abrigar indigentes em sua casa. Nas palavras de Katie: "David
virou uma versão cristã, careta e boba alegre
do Ken da Barbie, mas sem a beleza rústica e o corpo
torneado do Ken".
Katie se sentia uma mulher legal. Afinal, sua profissão
tinha a nobreza de ajudar aos outros. Mas será que ela
era mesmo boa? Será que ser bom é exercitar um
desprendimento desmedido? É suportar pessoas e gestos
inconvenientes? O egoísmo de uma condição
mais confortável significa desprezo pela humanidade?
Há motivos para se sentir culpado por causa das dificuldades
alheias?
Várias passagens impagáveis surgem como brinde
ao leitor. Na mudança de personalidade, David procura
ser uma pessoa boa. Katie pensa: "No nosso bairro, há
o consenso de que pessoas como Ginger Spice, Bill Clinton e
Jeffrey Archer estão do outro lado da cerca; se alguém
sai defendendo essa gente (que é o que David começa
a fazer), o consenso desmorona e o caos se instala. Será
possível querer se divorciar de um homem só porque
ele se recusa a falar mal de Ginger Spice? Temo que sim".
Ainda: "Começo a pensar em todas as coisas que não
funcionavam do jeito que funcionam agora e não sei bem
como se sinto a respeito disso. Uma delas é que David
gastava muito dinheiro com cds e livros... e agora ele perdeu
completamente o interesse por isso tudo. Interiormente eu gostava
de morar com uma pessoa que sabia como Liam Galagher ganhava
a vida, e agora isso se foi".
Essa série de dúvidas parece o grande tema do
livro, mas é bem mais simples. Como Ser Legal
é apenas uma declaração de amor à
família. Katie irá até o fim do buraco,
cavará um pouco mais para baixo, mas será salva
pela percepção de que o mundo dos sonhos é
o mundo dos sonhos, já que na prática, sabemos,
a teoria é bem diferente. Assim, Como Ser Legal
é uma extensão da "teoria das calcinhas velhas"
explorada magistralmente em Alta Fidelidade.
É a maneira com que as pessoas lidam com a decepção.
Rob Fleming balançou os braços, acendeu um cigarro
e logo em seguida estava gravando uma fita para uma nova garota
até perceber que não dá para ficar pulando
de galho em galho eternamente. Katie Carr pediu divórcio,
traiu seu marido e dentre as outras várias coisas que
fez, descobriu que a mágica é evitar o arrependimento.
"Esse é o segredo. Não dá para fazer
isso eternamente, pois é impossível não
cometer os erros que abrem as portas para o arrependimento,
mas os mais bem sucedidos conseguem se arrastar até os
sessenta ou setenta antes de sucumbir. Eu consegui chegar aos
trinta e sete, e David também, mas meu irmão entregou
os pontos antes disso. E não se arrependimento tem cura.
Desconfio que não".
Mais do que um belo romance, Nick Hornby consegue escrever literatura
simples que faz pensar. Passou pela prova do quarto livro com
Como Ser Legal. Só não dá para dizer
se ele um dia chegará aos 38 livros, como Neil Young
chegou em discos. Mas podemos afirmar, com certeza, que Hornby
tem estilo, arte e um espaço especial nas estantes de
muitos leitores ao redor do mundo.
Obs – Uma das coisas legais nos livros de Hornby é que
todas as suas situações se passam na mesma região
da Inglaterra (embora todos os personagens sejam universais,
podendo morar em um bairo de Porto Alegre, na Vila Madalena
em São Paulo, num canto de Nova York ou numa quebrada
de Kosovo). Assim, não foi estranho ver Will Freeman
de Um Grande Garoto entrando na "Champioship Vinil" de
Rob Fleming, do Alta Fidelidade. Como não será
estranho quando você descobrir que um dos funcionários
de Rob irá criticar o Air, promentendo gravar uma fita
"com outros conjuntos franceses de música ambiente muito
melhores" para Kate em Como Ser Legal.
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