"Cinzas do Norte", de Milton Hatoum
por Jonas Lopes
Yer Blues
15/09/2005


Milton Hatoum chega ao seu terceiro livro com uma missão complicada: superar o soberbo Dois Irmãos, um dos grandes romances brasileiros dos últimos anos. Foram cinco anos entre Dois Irmãos e o recém-lançado e sensacional Cinzas do Norte (Companhia das Letras, 311 páginas). Uma espera relativamente curta, se pensarmos que foram onze anos entre a estréia Relato de um Certo Oriente e Dois Irmãos. E o livro novo chega em momento adequado, quase estudado: denúncias de corrupção por toda parte, conceitos e arautos da ética caindo, uma população que se divide entre a revolta e a conformação em relação à crise. Um país em frangalhos. Em cinzas.

Cinzas do Norte traz a história de dois amigos, Mundo e Lavo, e tem como pano de fundo a ditadura militar. Mundo sonha ser artista. É apaixonado por desenho desde pequeno e ignora qualquer educação formal (o começo do livro, em que Mundo chega à escola e é tratado como excêntrico por colegas, lembra o início de Madame Bovary). Seu pai, o milionário Jano, amigo dos militares, não aceita que o filho troque os negócios da família pela arte, e tenta esmigalhar seu sonho. Alícia, a mãe, por outro lado, estimula seu talento.

Lavo é órfão - perdeu os pais em um naufrágio. Cresceu com tia Ramira, costureira apaixonada por Jano, e com tio Ranulfo, ex-namorado, ex-cunhado e eterno amante de Alícia, que o trocou pelo dinheiro e o status de Jano. Ranulfo é um típico boêmio errante, e também instiga Mundo a levar a sério seus desejos artísticos. Hatoum constrói aos poucos a dúvida sobre a paternidade de Mundo, como já fizera em Dois Irmãos com a paternidade duvidosa do narrador, filho da empregada com algum dos irmãos da história. Cartas de tio Ran para Mundo recheiam o livro, intercaladas com os capítulos.

Mundo e Lavo são dois opostos que representam os caminhos que marcaram a juventude daquela geração: ser artista e/ou engajado e lutar pelas mudanças, ou se conformar e virar um engravatado, quieto e com o salário garantido no fim do mês. Como diz Mundo, "ou a obediência estúpida ou a revolta", sem saber, em sua radicalidade ingênua, o quanto esses dois caminhos, apesar de todas as diferenças, terminam parecidos ("neste mundo, quem vive é que vê o pior", diz o chofer de Jano). Terminam na desilusão, implacável.

A amizade de Lavo e Mundo não é óbvia. Mais do que afeto, o que sentem um pelo outro é uma espécie de necessidade, uma inveja mútua. Lavo inveja a coragem, a ousadia, o talento e o inconformismo de Mundo. E este se ressente da suposta liberdade do amigo, que não tem um pai ou alguém para o impedir de realizar seus sonhos - mesmo porque Lavo não tem sonhos. Falta-lhe a obstinação. Torna-se advogado por falta de vontade de decidir qualquer outra coisa.

É um livro sombrio. A dissolução familiar ainda é um tema forte para o autor - o ódio entre pai e filho é ainda mais assombroso que no livro de 2000. Como em Dois Irmãos, Hatoum delineia não um ou dois grandes personagens, mas muitos. Todos. Outra semelhança com o livro anterior é o narrador observador. Lavo, ainda que todos os fatos narrados estejam diretamente ligados a sua vida, conta a história do lado de fora. Um artifício bem-vindo.

A literatura de Hatoum nutre-se de conflitos. Conflito cultural, com o ocidental e o oriental que se fundem, mas que mantêm sua obra sempre universal, nunca regionalista. Conflito entre a tradição familiar, geracional, e a modernidade industrial que sufoca, oprime, desvirtua Manaus, expulsa os moradores da beira do rio. Conflito entre a natureza dos rios e igarapés, além da floresta amazônica, e a concretude urbana - as praças rasgadas por avenidas. Conflito entre a linguagem culta, elegante, e a coloquial, herdada da oralidade e presente na segunda pessoa utilizada nos diálogos. O adjetivo mais adequado à prosa de Hatoum: hipnótica.

Cinzas do Norte instaura ainda uma discussão interessante sobre a função da arte. Engajada ou comercial? Experimental ou convencional? Mundo acredita que o artista verdadeiro é o da obra destruída. Enxerga uma função social em sua arte, uma discussão que vem desde Sartre e Glauber. Arana, seu guru, contrasta as vertentes; tem vontade de soar artístico, mas faz trabalhos por encomenda e exibições para turistas. No fim, torna-se exportador de objetos feitos com madeira nobre, valiosos lá fora, e ganha muito dinheiro. Já sobre a literatura, Lavo aprende com seu tio, escrever é trabalhar com a imaginação dos outros e com a sua própria.

Milton Hatoum cumpriu seu objetivo de escrever a "história moral de sua geração". E ele, que ganhou duas vezes o prestigiado prêmio Jabuti de melhor romance por seus dois primeiros livros, é forte candidato a manter a média exemplar e levar mais uma vez o troféu. Qualidade não falta. Frondoso em seu lirismo, minucioso em sua ambigüidade e irretocável em suas filigranas, Cinzas do Norte já é um clássico.

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