"Casa de Encontros", de Martim Amis
por Carlos Willian Leite Email 03/10/2007
Filho do consagrado autor inglês Kingsley Amis, Martin Amis, 57 anos, é um dos grandes nomes da ficção britânica contemporânea. Surgiu no meio literário em 1983, quando foi incluído entre as apostas da legendária revista Granta. A seu lado, outros nomes que se consagrariam na década seguinte: Ian McEwan, Julian Barnes, Salman Rushdie e Kazuo Ishiguro.
Seu novo romance, "Casa de Encontros", não é só uma recriação do totalitarismo do século 20, mas um grito contra o totalitarismo dos dias de hoje. Sua crítica ácida não se limita à extinta União Soviética. Também atinge a Rússia pré e pós-comunista. A obra seria uma versão ficcional de "Koba the Dread" (inédito no Brasil), ensaio que sustenta que o genocídio stalinista foi tão cruel quanto o dos nazistas, apenas menos lembrado.
Amis se baseou em relatos de sobreviventes e em documentos recentes sobre o Gulag - acrônimo para a administração dos campos de trabalho ou de reeducação - surgidos durante o regime stalinista, estendendo-se a regiões como a Sibéria e a Ucrânia, que se destinavam, na verdade, a silenciar e torturar opositores do regime. A trama é um triângulo amoroso: o narrador e seu irmão disputam o amor de uma mulher, sedutora, independente e carregada de mistério. O triângulo não provoca empatia, mas Amis é penetrante quando enfoca a brutalidade do totalitarismo.
O protagonista anônimo é um ex-combatente do Exército Vermelho de 84 anos. Quase meio século depois de ter passado 10 anos confinado num campo de trabalhos forçados na Sibéria, acusado de traição política, ele retorna à Rússia - para morrer. E enquanto navega pelos mares gelados, escreve uma longa carta a Vênus, sua enteada, passando em revista o seu passado bárbaro, marcado pela selvageria e pela perversidade.
A narrativa começa pelo rio Ienissei, de barco, alguns turistas seguem para o Círculo Ártico, onde visitarão o que sobrou das instalações de um campo de concentração para dissidentes. Com tristeza e amargura, o protagonista constata que os visitantes do campo são "deploravelmente poucos". "O passeio para o Gulag, explica-me o comissário, nunca fez muito sucesso." Esse acontecimento dá uma noção da ironia devastadora do romance: a Rússia dos dias atuais transformou locais de tortura em pontos turísticos.
Os dias passados no Gulag sobrepõem-se às linhas gerais do terrorismo de Estado, e o panorama sociológico dá lugar à observação meticulosa do narrador. O horror do campo está magnificamente sintetizado em uma passagem do livro: um guarda que perdeu os dedos por causa do frio tenta acender um cigarro com as mãos recentemente mutiladas.
No centro da narrativa está seu irmão caçula, Liev, companheiro de confinamento e marido de Zóia, cujo corpo fazia lembrar os rutilantes contornos geográficos das duas Américas - e que motivou a prisão e a conseqüente deportação de Liev, quando, num dia de euforia em conversa com a irmã, elogiou publicamente a beleza de "Américas". Acabou sendo acusado de elogios ao arquiinimigo da pátria. Na União Soviética dos finais dos anos 1940, qualquer elogio aos Estados Unidos era um crime contra a revolução comunista.
Liev chegou aos campos em 1948. Para surpresa do irmão mais velho, havia casado secretamente com Zóia na véspera de sua prisão. "Falei para Liev que suas chances de sobrevivência eram boas. No gulag, não se pode dizer que as pessoas morriam feito moscas. Em vez disso, eram as moscas que morriam feito pessoas. (...) Ali era o Ártico. O que o corpo faz, no campo, é consumir a si mesmo lentamente; meu irmão agora estava mais grosso nos ombros e no peito, mas, com um metro e sessenta de altura, ele continuava a ser uma refeição parca. Faça as contas e as perspectivas dele eram exatamente zero. Não, eram menos que zero."
O narrador, um fascista para stalinismo, mata para sobreviver. A índole pragmática e violenta vale a sobrevivência de ambos. O tom é sempre impiedoso e Amis não parece disposto a redenções. Apesar de certa ternura e passividade, o protagonista não nos poupa, inclusive, de confissões cruéis, como estupros, cometidos por ele.
Sem remorsos ou culpa, o ex-combatente relata em tom confessional, como se tornou um estuprador de mulheres alemãs. "No exército de estupradores, todo mundo estuprava", escreve a sua enteada. E justifica: "Sabemos muito a respeito das conseqüências do estupro - para as pessoas estupradas. De forma bastante compreensível, ninguém perdeu o sono tentando entender as conseqüências para o estuprador. O significado peculiar de sua tristeza pós-coito, por exemplo: nenhum animal jamais foi tão triste quanto um estuprador".
Contudo foi ao frágil Liev que Zóia preferiu entregar-se. Depois de anos presos, é ele quem ela vai visitar na casa de encontros, como era chamado o local reservado para visitas íntimas, logo após a morte de Stálin, mediante a política de abertura do regime que concedia o privilégio aos condenados casados de, numa noite, desfrutar da companhia dos cônjuges.
O que se passou naquele dia obceca o narrador ao longo da trama, e só no fim ele descobrirá tudo por uma carta que o irmão lhe deixa para ser lida depois de sua morte. "Casa de Encontros", é sobretudo, um grito político se valendo da ficção. Amis mostra que a liberdade sempre pediu clemência à política. E faz isso de forma magistral: contando uma história terna e violenta - de três amores em conflito.
Trechos de "Casa de Encontros",
de Martin Amis
"1. O Ienissei, 1º de setembro de 2004
Meu irmão menor veio para o campo em 1948 (eu já estava lá), no auge da guerra entre os brutamontes e as putas...
Bem, não seria uma primeira frase ruim para a narrativa propriamente dita, e eu estou ansioso para escrevê-la. Mas ainda não. "Ainda não, ainda não, minha jóia!" Era o que o poeta Auden dizia aos poemas líricos, às epístolas derramadas que pareciam pressioná-lo a um parto prematuro. É cedo demais, agora, para a guerra entre os brutamontes e as putas. Haverá guerra nestas páginas, inevitavelmente: lutei em quinze batalhas e, na sétima, fui quase castrado por um projétil secundário (uma peça de ferro de um quilo e trezentos gramas) que se alojou na face interna da minha coxa. Quando a gente sofre um ferimento feio como esse, durante a primeira hora nem dá para saber se você é homem ou mulher (ou se é velho ou jovem, ou quem foi o seu pai e como você se chama). Mesmo assim, três ou quatro centímetros mais para cima, como dizem, e não haveria mais nenhuma história para contar - porque esta é uma história de amor. Tudo bem, amor russo. Mas, ainda assim, amor.
A história de amor é triangular, no formato, e o triângulo não é eqüilátero. Eu às vezes gosto de pensar que o triângulo é isósceles: não há dúvida de que ele forma um ângulo bem agudo. Sejamos honestos, no entanto, e vamos admitir que o triângulo permanece rudemente escaleno. Creio, minha cara, que você tenha um dicionário à mão, não é verdade? Você nunca precisou de muito incentivo no seu respeito pelos dicionários. Escaleno, do grego, skalenos: desigual.
É uma história de amor. Então, é claro, devo começar pela Casa de Encontros.
Estou sentado na sala de jantar, em forma de proa de navio, de um vapor de turismo, o Gueórgui Júkov, no rio Ienissei, que corre do pé das montanhas da Mongólia até o oceano Ártico e, portanto, corta a planície da Eurásia do Norte - uma distância de duas mil verstas e meia. Em vista das distâncias na Rússia, e das agruras da vida russa em geral, é de supor que uma versta seja o equivalente a - não sei - umas trinta e nove milhas. Na verdade é pouco mais de um quilômetro. Mesmo assim é um percurso bastante longo. O livreto descreve o passeio como uma "viagem rumo ao destino de uma vida" - expressão que transmite uma conotação um tanto indesejável. Tenha em mente, por favor, que nasci em 1919.
Diversamente de quase tudo o mais, lá, o Gueórgui Júkov não é nem uma coisa nem outra: nem futuristicamente plutocrático, nem futuristicamente austero. É um retrato do antigo e prático Komfortismus tsarista. Abaixo da linha-d'água, onde a tripulação e os auxiliares cochilam e enchem a cara, o navio, está claro, é uma ruína fétida - mas veja a sala de jantar, com suas toalhas douradas cor de mel, seus veludos vermelhos de bordel. E nosso fardo é leve. Tenho uma cabine com quatro beliches inteira só para mim. O passeio para o Gulag, explica-me o comissário, nunca fez muito sucesso... Moscou é impressionante - soturnamente fantástica, em sua riqueza roubada. E Petersburgo também, sem dúvida, depois do seu aniversário de um bilhão de dólares: um tricentenário para a cidade construída por escravos, "roubada ao mar". Fica em toda parte que não esteja abaixo do nível da água.
Minha visão periférica é rodeada por garçons meio agachados, a postos para dar o bote. Há duas razões para isso. Primeiro, chegamos ao penúltimo dia da viagem e agora está solidamente estabelecido, a bordo do Gueórgui Júkov, que sou um velho de má índole e boca suja - enorme e desgrenhado, meu cabelo não é do tipo branco e fofo dos caducos que não reclamam de nada, mas sim pontudo e de um cinzento amargo. Eles também sabem, a esta altura, que sou um psicótico exagerado nas gorjetas. Não sei por quê, mas desde o início, suponho, eu dava vinte por cento em vez de dez, e o valor tem subido sem cessar desde então; mas isso é ridículo. Sempre tive dinheiro de sobra, mesmo na União Soviética. Mas agora sou rico. Para constar nos registros (e isto é o meu registro), só uma patente, porém com vastas aplicações: um mecanismo que aprimora, de maneira importante, a elasticidade das próteses das extremidades corporais... Assim todos os garçons sabem que, se sobreviverem aos meus frenesis cloacais, uma recompensa os aguarda ao fim de cada refeição. Erguido à minha frente, um livro de poemas. Não Mikhail Liérmontov, nem Marina Tsvetáieva. Samuel Coleridge. O marcador de páginas que uso é um envelope meio grosso que contém uma carta comprida. Está em meu poder faz vinte e dois anos. Um velho russo, a caminho de casa, tem de ter suas recordações significativas - o seu deus ex machina. Não li a carta ainda, mas vou ler. Vou ler, nem que seja a última coisa que eu faça.
Sim, sim, eu sei - um velho não deve dizer coisas grosseiras. Você e sua mãe tinham muita razão de arregalar os olhos. É de fato um espetáculo de dar pena, e sem nenhum charme, ver a boca de um velho praguejar palavrões, os dentes postiços ou ausentes, os lábios secos até sobrar só a metade. Dá pena porque é um protesto muito evidente contra a decadência das forças: dizer foda-se é a única coisa suja que ainda se pode fazer. Mas eu gostaria de enfatizar as propriedades terapêuticas dessa palavra de poucas letras. Todos aqueles que sofreram de verdade sabem o alívio que traz, afinal, afundar a cabeça e, por horas e horas, chorar e dizer palavrões... Meu Deus, olhe só as minhas mãos. Do tamanho de uma tábua de queijos, não, queijos, queijos inteiros, com suas manchas e pregas, sua viscosidade, seu azinhavre. Machuquei muitos homens e mulheres com estas mãos.
No dia 29 de agosto, atravessamos o Círculo Ártico e houve uma comemoração muito compreensível a bordo do Gueórgui Júkov. Um acordeão, um violino, um violão muito enfeitado, garotas com blusas de piranhas, um bêbado em calças de montaria que tentou imitar a dança dos cossacos e não parava de cair da cadeira. Eu agora estou numa ressaca que, já faz dois dias, continua a piorar. Na minha idade, nos meus "oitenta e muitos", como dizem agora (em lugar de "no fim dos oitenta", pois a palavra fim tem conotações impertinentes), simplesmente não há lugar para uma ressaca. Ai, ai, ai... Ai, ai, ai... Não imaginava que eu ainda fosse capaz de me poluir de modo tão completo. Pior, eu sucumbi. Você sabe muito bem o que quero dizer. Participei de todos os brindes (providenciaram uma caçamba de lixo em miniatura para espatifarmos nossas taças lá dentro) e cantei todas as músicas; chorei pela Rússia e enxuguei minhas lágrimas na bandeira. Falei um bocado sobre o campo - sobre Norlag, sobre Predposilov. No raiar do dia, comecei a impedir fisicamente que certas pessoas saíssem do bar. Mais tarde, causei um bocado de estragos à minha cabine e tive de ser transferido no dia seguinte, no meio de um vendaval de palavrões e de notas de vinte dólares".
Suas obras incluem as coletâneas de ensaios The Moronic Inferno e Visiting Mrs. Nabokov, a coletânea de contos Einstein's Monsters e os romances The Rachel Papers (1974, Prêmio Somerset Maugham), Dead Babies, Success, Other People: A Mystery Story, London Fields, Time's Arrow, A Iinformação, Trem Noturno e Água Pesada e Outros Contos - os três últimos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
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