Deus salve
a América
Diabo salve
Charles Bukowski
por
Leonardo Barbosa Rossato
porresia@bol.com.br
Charles Bukowski é um escritor
único. Escatológico, melodramático, cínico,
marginal (izado), antiacadêmico, anti-grupos literários, lírico,
alcoólatra, machista, politicamente incorreto, anarquista e um grande
escritor.
"Cartas na rua", "Mulheres", "Misto
Quente", "Hollywood": são apenas alguns dos romances de Charles
Bukowski, que também era poeta e trabalhou em diversos empregos
durante a vida inteira até ser consagrado como escritor e ter seu
espaço na literatura americana contemporânea.
Alguns críticos teimam em colocá-lo
lado a lado com a turma dos beatniks, mas Bukowski nada tem a ver com Kerouac
e Ginsberg.
Os beats são filhos do surrealismo francês, gostavam de jazz
e eram liberais sexualmente. Estavam à margem do sistema, talvez
apenas aí haja uma comparação entre eles. O velho
Buk, "the old dirty man", (além de adorar Mozart e Schoppenhauer)
era um escritor solitário, era uma gangue sozinho, era um beberrão
sensível.
Se buscarmos uma tradição
para o escrever de Buk, talvez encontremos em dois escritores americanos
renegados: Henry Miller ("Trópico de Câncer"/"Trópico
de Capricórnio") e John Fante ("Pergunte
ao pó"). Vejo em Buk muito dos romances considerados mal escritos
por Miller: pornográficos e autobiográficos e do lirismo
decadente de Fante. Quem descobriu Fante para o mundo foi o velho Buk numa
de suas andanças pela biblioteca quando não estava bebendo
no bar.
Alias, numa epígrafe dos romances
de Miller ("Trópico de Câncer") lemos: "Estes romances
cederão lugar, pouco a pouco, a
diários ou autobiografias
-livros cativantes, desde que um homem saiba escolher, entre o que chama
sua experiência e saiba registrar verdadeiramente a verdade". E a
verdade de Buk é o dia-a-dia da classe trabalhadora norte-americana.
Seus subúrbios, suas brigas, seus sonhos, suas palavras. Nos seus
personagens simples, complexos e por isso mesmo tão reais, vê-se
a decadência do american way of life. Um país tão rico
e orgulhoso de si que tenta esconder seu lado escuro, sujo
mesmo.
É realmente visível
esse desconforto americano para com seus filhos renegados, podendo ser
feita até uma análise da sociedade americana pela literatura
de Buk; fundada por protestantes que vieram trazer a liberdade e a riqueza
pra essas terras de cá, mas que no entanto não conseguem
lidar quando indivíduos fogem desse sistema, os losers que incomodam,
simplesmente por existirem. A cultura de exaltação do indivíduo
tem efeito contrário, tornando todos uma grande massa
homogênea e despersonalizada.
E a literatura de Charles Bukowski entra neste contexto, narra a vida das
pessoas comuns: que trepam, que se ferram pra pagar aluguel, que bebem,
que trabalham ou procuram por, que não são inteligentes ou
cultas a ponto de ser um winner na
sociedade. Tanto que analisando criticamente a literatura bukowskiana,
pode-se dizer que os livros são em sua grande parte iguais, tanto
o estilo narrativo cru, tosco e por aí chegando ao poético
até as histórias sempre narrando a vida dessas pessoas, no
caso sempre ele, centralizador dos sentimentos e do estilo de vida pelo
qual essas pessoas marginalizadas vivem.
E esse estilo todo pessoal dele fez
com que o cinema também retratasse o universo de Buk nos filmes
"Crônica de um amor louco", cult nos anos 80 no Brasil do genial
diretor italiano Marco Ferreri, e "Barfly- Condenados pelo vício",
de Barbet Schroeder. O filme de Ferreri é mais profundo, mais escatológico,
mais bukowskiano, no entanto os dois filmes retratam com
maestria a decadência dos subúrbios
e o lirismo bêbado dos livros de Buk.
Enfim, nós, os leitores de
Charles, somos como mulher de malandro. Somos agredidos, apanhamos das
palavras ácidas
dele, mas queremos mais. Não
há como se sentir maltratado e intrigado ao ler nos romances de
Buk diálogos como esse:
"- Eu odeio pessoas, você não?
- Não. Só quando
elas estão perto de mim"
Charles Bukowski não teve muitos
herdeiros. Sua escrita era (é) única e especial. Mas
ele não estava muito preocupado com isso. E não se importaria
por um garoto de classe média brasileiro que está escrevendo
sobre ele. E é por isso que escrevo sobre ele.
Bukowski no Brasil
Cartas na rua, ed. Brasiliense, 1983
Misto quente, ed. Brasiliense, 1984
Mulheres, ed. Brasiliense, 1984
A Crônica do Amor Louco, L&PM,
1984
Fabulário geral do delírio
cotidiano, L&PM, 1984
Notas de um velho safado, L&PM,
1985 e 2000
Hollywood, L&PM, 1989
Pulp, L&PM, 1989
O capitão saiu para o almoço
e os marinheiros tomaram conta do navio, L&PM, 1999
Charles Bukowski - vida e loucuras
de um velho safado (biografia), de Howard Sounes, Conrad livros, 2000
PREFÁCIO de
Charles Bukowski: vida e loucuras
de um Velho Safado (Conrad)
Charles Bukowski levantou-se da cadeira
e pegou uma cerveja na geladeira, atrás dele, no palco. A platéia
aplaudiu enquanto ele bebia, emborcando a garrafa até tomar a última
gota dourada.
"Isto não é uma muleta",
disse ele, falando lentamente, com uma cadência na voz, como W. C.
Fields. "É uma necesssssidade." A platéia riu e aplaudiu.
Uma jovem na frente gritou que ele era um velho legal. De fato, aos cinqüenta
e dois anos, Bukowski tinha idade suficiente para ser pai da maior parte
dos garotos que ali estavam para ouvir sua leitura e, por isso, sua atitude
tornava-se muito mais engraçada. Bukowski tinha uma aparência
estranha e um modo peculiar de falar. Era um homem alto, de um metro e
oitenta, encorpado, com uma barriga de cerveja, mas sua cabeça parecia
grande demais para o corpo, e o rosto era assustador como uma máscara
de Frankenstein: queixo comprido, lábios finos, olhos tristes, apertados
e encovados. Um grande nariz de beberrão, vermelho e roxo, com veias
rompidas, e uma barba grisalha e desigual sobre a pele oleosa, marcada
pela acne: pele tão ruim que parecia trazer as marcas de uma queimadura.
Voara para São Francisco,
em setembro de 1972, levado pelos editores da City Lights Books, em razão
do sucesso de uma coletânea de seus contos, Erections, Ejaculations,
Exhibitions and General Tales of Ordinary Madness* [Nota de rodapé:
* Esse livro foi lançado no Brasil em dois volumes:
Ereções, Ejaculações
e Exibicionismos (Porto Alegre: L&PM, 1984. 2ed.) e Crônica de
um Amor Louco (São Paulo: Círculo do Livro, 1989). (N. de
E.)]. O livro era dedicado a sua jovem namorada, Linda King:
who brought it to me
and who will take it
away
quem o trouxe a mim
e quem vai levá-lo
embora
Oitocentas pessoas pagaram para entrar
em um ginásio em Telegraph Hill, ansiosas por ver o autor de Life
in a Texas Whorehouse e outras histórias chocantes, aparentemente
autobiográficas. A idéia de aparecer diante delas aterrorizava
Bukowski. Embora sua aparência causasse um certo impacto, era um
tímido inveterado e odiava a si mesmo por ter arrastado seu traseiro
até a cidade dos escritores beatnik, um grupo do qual não
gostava e no qual não se inseria.
Bebera durante todo o dia para criar
coragem. No vôo de Los Angeles pela manhã, no restaurante
italiano em que ele e Linda almoçaram e atrás da cortina
enquanto esperava a deixa para entrar em cena. Seu rosto estava cinza de
medo. Vomitou duas vezes.
"Sabe, é mais fácil
trabalhar em uma fábrica", disse ao amigo Taylor Hackford, que filmava
um documentário. "Não tem essa pressão." A multidão
o conhecia por seus contos, mas Bukowski leu poesia. Poemas sobre bebida,
jogo, sexo e até mesmo idas ao banheiro ele sabia que só
o título "piss and shit" já os faria rir.
"Vejam, alguns desses poemas são
sérios, e tenho que me desculpar porque sei que algumas platéias
não gostam de poemas sérios. Mas tenho que ler alguns de
vez em quando para mostrar que não sou uma máquina de beber
cerveja." Escolheu um poema sobre seu pai, a quem odiara com toda a força.
Chamava-se "the rat":
with one punch, at the age of 16 and
½,
I knocked out my father,
a cruel shiny bastard with bad breath,
and I didn¹t go home for some
time, only now and then to try to get a dollar from dear momma.
it was 1937 in Los Angeles and it
was a hell of a
Vienna.
...
me? I¹m 30 years older,
the town is 4 or 5 times as big
but just as rotten
and the girls still spit on my
shadow, another war is building for
another
reason, and I can hardly get a job
now
for the same reason, I couldn¹t
then:
I don¹t know anything I can¹t
do
anything.
com um murro, aos 16 anos e ½,
derrubei meu pai,
um filho da puta cruel com mau hálito,
e não voltei para casa por
um tempo, só vez por outra para batalhar um dólar com a querida
mamãe.
era 1937 e Los Angeles era uma grande
Viena.
...
eu? Tenho 30 anos,
a cidade está quatro ou cinco
vezes maior
mas tão acabada quanto
e as garotas ainda cospem quando
passo, outra guerra se cria por outra
razão, e não consigo
emprego agora
pela mesma razão de outrora:
não sei fazer nada, não
consigo fazer
nada.
Parecia que ia chorar quando terminou
os últimos e tristes versos, mas mudou de repente e começou
a representar o rebelde novamente. "Eu conheço você?", perguntou
a uma fã, que fez um pedido. "Não seja insolente, gracinha...",
ameaçou, desatando a rir. "Mais uma cerveja e vou pegar todos vocês."
Jogou a cabeça para trás, deixando à mostra os dentes
estragados, e gargalhou. "Ha, ha, ha. Cuidado!"
Outro fã tentou subir no palco.
"Que diabos você quer, cara?
Sai do meu pé!", disse Bukowski, como se falasse com um cachorro.
"Quem é você, algum
babaca?" O público gritou e gargalhou. Alguém perguntou quantas
cervejas ele conseguia beber. Outros não estavam tão impressionados
e exigiam que Bukowski parasse de perder tempo. Eles haviam pago para ouvir
sua poesia, não para ver um bêbado. "Vocês querem poemas?",
provocou os alunos, antipatizando com suas roupas caras e rostos despreocupados.
"Implorem."
"Foda-se, cara!"
"Mais algum comentário?"
Quanto mais bêbado ficava, mais
hostil se tornava, e mais hostilidade recebia da platéia. "No final,
eles atiravam garrafas", recorda o poeta beat Lawrence Ferlinghetti, dono
da City Lights Books, que abriu caminho, à força, para tirar
Bukowski de lá, pensando em sua própria segurança. |