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'Memórias de Brideshead', de Evelyn Waugh
por
Drex Alvarez
Blog
30/01/2006
Qualquer lista coerente dos cinco maiores escritores britânicos
do século XX deveria certamente contar com Evelyn Waugh. Por
algum motivo, no entanto, seu nome ainda não foi coberto com
a aura de ícone artístico, tal como são tratadas hoje as obras
de James Joyce, George Orwell ou Virginia Woolf, só para citar
três escritores. Evelyn Waugh sempre foi um nome um tanto misterioso,
a começar pela ambiguidade básica que carrega - afinal, esse
tal de Evelyn é homem ou mulher?
Para começar, Evelyn Waugh é homem. Nascido em Londres, em 1903, atingiu a fama bastante precocemente, logo ao final dos efervescentes anos 20, reconhecido por sua escrita satírica, repleta de uma ironia tão mordaz quanto os tempos em que vivia. São deste período diversos ensaios provocadores e obras como Declínio e Queda, Furo! e Um Punhado de Pó. A Segunda Grande Guerra provocou a passagem para um tom mais maduro, ainda que sem perder suas características iniciais. É desta fase Memórias de Brideshead (1945), tido por muitos como sua obra mais notável.
Memórias de Brideshead é o tipo de livro que causa uma sensação de incômodo verdadeira. Vinte e quatro horas depois de terminado sua leitura, permaneço ainda com sentimentos não-digeridos dentro do estômago, falhando miseravelmente em conseguir alguma interpretação conclusiva e coerente sobre o que senti a respeito dele. O incômodo, no entanto, deve ser comemorado. Livros ruins existem aos montes. Livros espertalhões, pretensamente subversivos, também. Diferente é conseguir aliar sutileza e elegância e, ainda assim, desferir o golpe certeiro. Acredite: isso é para poucos.
A elegância de Evelyn Waugh, tão fora de moda, é justamento o que o torna mais doloroso. Memórias de Brideshead é uma leitura saborosa - fluente, rica, equilibrada, com muitas pitadas da ironia fina e da mordacidade que fizeram a fama do autor em seus primeiros livros. No entanto, o que poderia ser apenas um romance épico sobre a decadência da aristocracia inglesa no período do Entre-Guerras vai sutilmente adquirindo novas camadas e pretensões. Sem muito barulho ou escândalo, a leitura aprazível sobre amores idílicos, caçadas e galanteios caem por terra e então Memórias de Brideshead vai se tornando dolorosamente incômodo, não por tornar-se pretensioso ou obtuso, mas por ousar navegar por mares indesejáveis e, máxima culpa, rumar implacavelmente contra a corrente dos nossos tempos modernos.
Brideshead é o nome da majestosa casa de campo dos Marchmain, uma família de aristocratas ingleses que, para se tornarem ainda mais particulares dentro da Inglaterra protestante, são católicos praticantes. As Memórias, na verdade, pertecem ao Capitão Charles Ryder, amigo íntimo da família Marchamain que testemunha sua trajetória durante os anos 20 e 30. As reminiscências de Charles vêem à tona quando, logo ao início do livro, já em plena Segunda Grande Guerra, seu batalhão monta acampamento justamente na Mansão Brideshead, então já abandonada e danificada pelos tempos de combate.
A fórmula narrativa tende, portanto, a emular certo saudosismo e permitiria, perigosamente, uma visão a posteriori carregada de falsas justificativas. O virtuosismo de Waugh, no entanto, não permite que sua narrativa degringole para momentos de sentimentalismo ou edificações de moralismo barato. Ao contrário, a forma como a história é narrada transforma-se justamente num dos pontos altos do livro - as memórias de Charles vão revelando lentamente a complexidade da família Marchmain. É como aquela antiga metáfora da cebola - a cada camada cautelosamente retirada, uma nova realidade se apresenta.
O livro se divide em três grandes partes. A primeira, ambientada na Universidade de Oxford, se concentra na relação entre Charles Ryder e Sebastian Flyte, o filho mais novo da família Marchmain. Recém admitidos em Oxford, os dois calouros desenvolvem uma forte amizade, apesar de serem bastante diferentes. Sebastian é um dândi, o típico garoto rebelde que é querido por todos. Sensível à flor-da-pele, equilibrando-se sempre entre uma estranha religiosidade - algo católica, algo pagã - e um hedonismo fervoroso. Charles, por outro lado, é um rapaz reservado, ainda reticente quanto aos seus talentos e quanto à vida em geral e, portanto, agnóstico quanto à qualquer forma de religiosidade. Charles é, no fundo, um intenso observador da realidade, mas sente vontade de se entregar completamente a algo. Isto até conhecer Sebastian. A alegria e a fome de viver do jovem lorde oferece a Charles um caminho irresistível. Seus meses seguintes da faculdade são então dedicados a uma vida idílica, freqüentando os jardins da Mansão Brideshead e empenhando-se na busca da felicidade, na admiração do belo, da arte e do vinho.
Esta primeira parte é uma saborosa descrição da juventude, com
seus sonhos e ilusões, durante uma época de glamour e esplendor.
É também o cenário para a primeira polêmica do livro: o relacionamento
entre Charles e Sebastian. As interpretações vão desde uma inocente
amizade fraterna, passam pelo amor platônico, e chegam até o
consumado relacionamento homossexual. Apesar de não haver nada
explícito na narrativa que resolva a questão, o clima é óbvio
e pequenas menções dão a entender que houve entre os dois mais
do que simples olhares tenros. Esse 'possível' affair homossexual
não é, no entanto, o mote do livro. E, de maneira nenhuma, poderia
ser fonte de algum incômodo verdadeiro. Até porque é apenas
nos dois últimos terços da obra que se desenvolvem as questões
mais graves e intrigantes de Brideshead.
A segunda parte retrata a época da ressaca juvenil, das crises e dos desencontros. Charles, em dúvida vocacional, abandona a faculdade e passa a dedicar-se à pintura. Sebastian, cada vez embriagando-se mais e mais, acaba expulso da faculdade. Na sua perdição, Sebastian torna-se tanto causa quanto vítima do esfacelamento da família Marchmain. Na terceira e última parte, Charles, já estabelecido como pintor, casado e pai de dois filhos, reencontra-se com a família Marchmain através de Júlia, irmã de Sebastian. Mesmo com ela também casada, ambos se envolvem num inusitado e intenso romance. É esta relação de Charles e Júlia que leva a história até seu clímax e desfecho.
O ponto de destaque, no entanto, durante a decadência e a redenção
das duas últimas partes de Memórias de Brideshead é a
questão da religião. O catolicismo, como uma religião de casta
minoritária na Inglaterra, é um tema recorrente para os Marchmain.
No decorrer do livro, a evolução dos personagens faz com que
a religião se torne o ponto central de conflito entre eles.
Este conflito, no entanto, não é tratado num nível de pragmatismos,
preconceitos ou burocracias dos dogmas religiosos. Evelyn Waugh
sobe o tom e dá uma dimensão transcendente às escolhas dos personagens
e a religião, dentro da trama, passa a não se tratar apenas
de uma questão de etiqueta social. Passa a representar, na verdade,
a visão de mundo de cada um deles, de suas escolhas morais e,
sobretudo, muito mais gravemente, de suas escolhas existenciais.
Há um mote geral na obra, uma trajetória que, de alguma forma, é percorrida por todos os personagens. Cada um deles procurou o que a vida poderia lhe proporcionar de melhor e, num determinado nível, obteve sucesso nessa busca. Nenhum deles, porém, consegue ser feliz com isso. Dá-se então, com cada personagem, algum tipo de conversão espiritual. Cada um se impõe seu próprio martírio. Depois, após alguma provação, obtém sua quota de redenção.
Para o leitor contemporâneo, mergulhado numa cultura cada vez mais laica e racional, familiarizado com uma sociedade materialista e "desencantada", o mote religioso de Memórias de Brideshead soa perturbador. Principalmente porque nos acostumamos, nas últimas décadas (ou séculos!), que a arte nos "liberte" da religião. Desde Voltaire, passando por Nietzche e chegando até Philip Roth (com seu Complexo de Portnoy) esperamos que a arte nos ilumine e nos livre dos grilhões da moralidade religiosa. Queremos o pensamento livre. Queremos liberdade de expressão e comportamento. Queremos formar a nossa própria consciência, sermos os responsáveis últimos por nossos atos. E então vem Evelyn Waugh e nos propõe o sentido inverso - a libertação através da religião.
O que soa realmente perturbador é que a singela história de Evelyn Waugh é capaz de arrebentar toda uma barreira cultural, uma resistência histórica de valores, e, com uma narrativa sem sentimentalismos, consegue emocionar. A primeira das razões é o extremo talento de Waugh como escritor. Estilisticamente, o autor não dá nenhuma chance para quaquer tipo de pieguice, didatismo ou proselitismo religioso. Já no prefácio do livro, ele deixa claro que o tema central da obra é a "ação da graça divina sobre um grupo de pessoas", assim como admite que utilizou um estilo mais retórico e menos suave que em suas obras anteriores. A verdade é que, mesmo com a temática religiosa sempre presente, a história corre sempre solta, sutil, honesta e cheia de coerência.
No entanto, além do estilo existem outros fatores importantes que dão relevância e legitimidade à Memórias de Brideshead. Waugh sempre foi conservador, nos sentidos político, social e cultural do termo. Era um crítico ferino dos filisteus, da falsa cultura, do arrivismo social sem conteúdo. O humor corrosivo, característica marcante de suas primeiras obras, era, na verdade, a única arma que Waugh possuía para defender seus valores e combater o que entendia como uma sociedade em decadência e mediocrização. O destino, no entanto, o fez assistir ao colapso da hegemonia britânica e a mudanças sociais intensas e aceleradas. Já na meia-idade, Waugh chegou a servir no Exército Inglês, durante a Segunda Guerra. Foi nesta época, por volta de 1943, que converteu-se ao catolicismo. Isso deu-se pouco antes de escrever Memórias de Brideshead. Alguns afirmam que Waugh buscou na religião católica a perenidade de valores que não via mais na sociedade de seu tempo.
De todas as formas, o catolicismo, como tratado por Waugh em
Brideshead, não deve ser confundido com a instituição
Igreja Católica. Sem abandonar seu aguçado senso crítico, Waugh
aponta diversos defeitos e incoerências da Igreja. Na voz do
agnóstico Charles são colocadas todas as críticas mais comuns
e já bastante antigas feitas à doutrina cristã e à religião
católica. Também não há no livro uma tentativa de pregação
moralista ou puritanismo rasteiro. Qualquer senso moral que
se queira tirar da trajetória de redenção dos personagens é
muito mais complexo que uma simples visão maniqueísta do que
é "certo ou errado", "virtude ou pecado". Isso porque Waugh
coloca o nó da questão num nível bem mais alto. As perguntas
que ficam propostas são muito mais difíceis de se digerir. É
possível ter uma vida plena fora dos valores cristãos de fraternidade,
entrega, amor incondicional e misericórdia? É possível ser feliz
plenamente sem se comprometer com um ideal mais elevado? Há
algum sentido numa vida sem fé e compromisso?
Waugh desfere tapas em minha face iluminista, mas é meu estômago que dói, cheio de contradições. É impossível negar coisas que se tornam explícitas demais. A liberdade (de pensamento, de expressão, de comportamento), tão valiosa e tão penosamente conquistada, geração após geração, é agora utilizada cada vez mais grotescamente. Esteticamente, a conquista saudável do elogio à espontaneidade transforma-se hoje em oportunismo medíocre, em arte fácil para o consumo do mercado. Toda qualidade e esforço pela sofisticação são desprezados como mero elitismo. Os valores morais, por sua vez, se tornaram tão diluídos, tão líquidos, tão subjetivos, que a positiva proposta ética da "tolerância ao diferente" é hoje maculada por uma permissividade hipócrita, que enoja e revolta, desde a libertinagem do caixa 2 à vulgaridade no trato pessoal do dia-a-dia.
E mais. Se antes os grandes vilões da Igreja eram os ateus comunistas, hoje quem se apresenta como o maior inimigo dos valores cristãos é, ironicamente, o capitalismo financeiro global, com seu estímulo à competição sem freios, sua frieza estrutural, sua apologia ao material, ao consumo e aos prazeres de curto-prazo. Quando a depressão é eleita a doença do século XX, quando todos nós conhecemos alguém que já teve algum tipo de ataque de pânico ou fobia, é impossível negar que um grande número de pessoas se encontra amargurada pela falta de sentido de seu cotidiano. Basta apenas dar mais um passo para dizer que, atualmente, muita gente carece de um sentido transcendente em suas vidas. Ou será que o sucesso material e as explicações racionais nos abastecem de tudo que precisamos?
Por outro lado, cobra a racionalidade, pregar a necessidade de motivações transcendentes é sempre delicado. Motivos transcendentes podem ser diferentes e inconciliáves de indíviduo para indivíduo e o ser humano sempre se demonstrou insuficientemente maduro ou tolerante para conviver harmoniosamente com as crenças dos outros. Historicamente, a busca por motivos transcendentes tem o costume de criar perigosos "ismos" levando pessoas a lançarem-se umas contra as outras em nome de ideologias, nações e crenças. Colocar o monopólio da paz e da realização nas mãos de uma entidade maior foi e sempre será temerário. Justamente por isso se deu toda a luta secular por trazer mais racionalidade e bom-senso às relações entre os homens, por dessacralizar as instituições, por individualizar as escolhas, por tirar a religião de dentro do Estado e da cultura.
Por tudo isso, mesmo com a enorme sensação de vazio presente
na sociedade atual, incomoda ver uma saída religiosa proposta
num livro. As perguntas deixadas por Waugh, coerentes e verdadeiras,
se fazem ainda mais amargas e pertubadoras. Simpatizar e emocionar-se
com sua história fez meu idealismo progressista estremecer,
toda minha racionalidade balançar. Tive medo de, de repente,
estar me tornando um velho, um carola, um conservador. Bobagem.
Nada pode ser mais contraditório para quem se diz progressista
que permanecer sempre no mesmo lugar. Para caminhar em frente,
para melhorar o mundo ou apenas o seu quintal, talvez não se
possa atirar sempre para o mesmo lado. O mundo é dinâmico, as
forças mudam de lugar. E às vezes é preciso coerência, bom-senso
e honestidade para perceber quando a balança já pendeu demais.
Para chacolhar e revisar as velhas crenças, separar o que é
apenas acessório daquilo que é realmente essencial. Os estúpidos,
os cabeças-de-bagre e os fundamentalistas são justamente aqueles
que não sabem diferir o "joio do trigo", aqueles que se apegam
às ninharias marginais em detrimento dos verdadeiros valores
a serem preservados. Em Memórias de Brideshead, Evelyn
Waugh questiona o "para quê afinal estamos lutando?". O resto,
como diz o Capitão Charles Ryder, é vaidade, somente vaidade.
Memórias de Brideshead foi publicado logo após o término da Segunda Grande Guerra, em 1945, obteve grande sucesso na Europa e, para a supresa de Evelyn Waugh, também nos bárbaros EUA. Mas o que transformou Brideshead definitivamente numa referëncia pop, principalmente no Reino Unido, foi a mini-série televisiva, produzida pela Granada Television e transmitida em 1981. Em onze capítulos, a série obteve enorme sucesso de público e crítica, sendo considerada uma adaptação bastante fiel à obra original. Brideshead Revisited contava com atores já consagrados, como Laurence Olivier, e também com alguns então novos talentos da dramaturgia inglesa, como Jeremy Irons interpretando Charles Ryder.
O cinema deverá receber uma nova adaptação do romance para o final de 2006. A pré-produção enfrentou percalços no ano passado, quando o já contratado diretor Daniel Yates foi convidado para assumir o novo Harry Potter, A Ordem da Fênix e teve de abandonar repentinamente o projeto. Mesmo com o direção ainda indefinida, as promessas quanto ao elenco são altas - Jude Law como Sebastian, Jennifer Connely como Julia, e Paul Betanny como Charles Ryder. Com roteiro de Andrew Davies (Bridget Jones 1 e 2), o foco da trama será o triângulo amoroso entre os personagens principais, deixando de lado qualquer temática religiosa. Eis aí mais um sinal da triste opção pelo empobrecimento e pela superficialidade destes nossos tempos ultramodernos. Enquanto o filme não chega aos cinemas, procure - em sebos - a edição brasileira lançada pela Companhia das Letras em 1991, pois esse é um livro que você precisa ler.
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Philip Roth, por Jonas Lopes
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