Entrevista com Georges Bourdoukan

por Leonardo Vinhas
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06/08/2005


Georges Latif Bourdoukan nasceu em Miniara-Akkar (Líbano) em 1943 e veio para o Brasil com dez anos de idade. Começou a militar em grupos estudantis aos dezesseis, militância que lhe rendeu a primeira de muitas prisões. Aos dezoito iniciou sua carreira jornalística e trabalhou para diversos veículos de mídia impressa, dentre eles o jornal Última Hora, publicação esquerdista que foi estrangulada pela ditadura militar.

Ele também participou do núcleo de redação do Globo Repórter e esteve presente (ainda que amplamente censurado) nos eventos que marcaram a luta sindical no Brasil no fim dos anos 70, ainda como jornalista da mesma Rede Globo. Fundou com colegas o Jornal de Jerusalém, especializado em assuntos do Oriente Médio, e ainda dirigiu a Revista Palestina (órgão oficial da OLP no Brasil) e a Revista dos Estados Árabes.

Abandonou o jornalismo diário para se dedicar a reportagens mais extensas e à literatura, já tendo publicado quatro livros: O Peregrino, A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro, Vozes do Deserto e a peça O Apocalipse. É cronista da revista Caros Amigos, para a qual colabora desde sua primeira edição.

Antes mesmo de entrevistá-lo, eu já pensava em brincar com o jargão da revista que tornou seu nome notório entre os jovens, anunciando-a como "explosiva". Após concluí-la, essa prática textual se mostrou improcedente, pois Bourdoukan não "explode" nem dá declarações bombásticas, mesmo quando elucida acontecimentos escusos e obscuros ligados à história (e decadência) do jornalismo investigativo brasileiro. Sem pregações, moralismos ou soluções fáceis, discorre abertamente sobre a "excrescência" (para usar um de seus termos recorrentes) que se tornou a grande mídia, sobre a "questão do Oriente Médio", sobre seu assumido anti-sionismo, sobre fronteiras nacionais e religiosas, sobre assuntos diversos.

Ainda assim, e apesar do caráter místico de seus livros, Bourdoukan rejeita qualquer manto de sabedoria que tentem lhe vestir. Dividida em duas partes, essa entrevista não apresenta caráter bombástico ou sensacionalista. Contudo, causa um impacto lento e sutil. Confira.

Vou começar parafraseando a revista (Caros Amigos) e perguntar ao senhor como foi sua infância, primeiro no Líbano e depois aqui no Brasil...
Eu tive uma infância ótima no Líbano até os dez anos de idade. Meus pais já estavam aqui no Brasil, minha mãe é brasileira, baiana. Fiquei no Líbano, eu mais meu outro irmão menor, que já faleceu. No Líbano vi coisas que me impressionaram, e que talvez tenham realmente me marcado profundamente. Duas coisas que me marcaram muito: primeiro, os acampamentos palestinos. Lembro-me de uma vez, eu morava numa aldeia ao norte do Líbano, em que a gente estava indo para Trípoli. Para ir a Trípoli nós passamos por dois acampamentos palestinos, e uma neve medonha, a gente de jardineira, naquele tempo não era nem ônibus. Passando ali, vi aquelas pessoas todas em tendas. Não tinha casa, não tinha nada. Eram todas em tendas, aquela neve violenta e me lembro que a neve, pra você ter uma idéia, quando eu ia à escola, a neve chegava até às coxas. E havia também um problema muito sério, que são os lobos. Tinha lobo que dormia debaixo da janela lá de casa, lobo que avançava, lobo que atacava animal, então o inverno era uma coisa impressionante. Vendo os palestinos, andando muito com minha avó - porque até os dez anos quem me criou foi minha avó - ela falava "coitados". E aquele pessoal morrendo de frio. E a outra coisa que me marcou muito: eu devia ter uns quatro ou cinco anos de idade, e antes do anoitecer vi meu pai correndo e dois gendarmes a cavalo correndo atrás dele e atirando. Lá era tudo poço cisterna (aqueles dos quais se retira a água com baldes) e ele, pra escapar, teve que pular. Ele pulou aquela cisterna e saiu correndo e eles atrás atirando. Então aquilo... Com os palestinos, aprendi que o ser humano tem que ser solidário, não interessa a coloração política ou ideológica, ele tem que ser solidário porque é outro ser humano. E com o meu pai, a hora que eu vi aquela perseguição, comecei a questionar o conceito de pátria. O que é a pátria, entendeu? Porque quem tava atirando nele era um francês, mas o outro era libanês. O francês porque meu pai lutou na guerra contra a França - quer dizer, ele lutou na (Segunda Grande) Guerra normalmente contra os alemães, mas depois começou a lutar contra os franceses.

Ele era militante contra o colonialismo...
Ele era comunista. Era comunista, então eles lutaram mesmo... Pra você entender melhor, o comunismo no Oriente Médio era mais nacionalismo. Não havia esse comunismo que a gente conhece aqui...

... como o do Leste Europeu...
É, exatamente. O cara que lutava pelo país dele queria liberdade (do povo), então ele era chamado de comunista, qualquer coisa lá era comunista. Era assim "aquela rosa é rosa". Se falasse "sei não, aquela rosa parece amarela", esse cara era comunista, entendeu? Então isso realmente me marcou muito até os dez anos de idade. Isso no Líbano. Fora isso, uma infância normal. Como todo moleque naquela época, a gente caçava passarinho, inclusive pra comer. Eu fui amamentado pelo leite de uma jumenta. Na guerra havia tanta escassez que minha mãe não tinha leite para me dar e então fui alimentado pelo leite de uma jumenta. Isso tudo era conhecido lá, tenho até uma história peculiar em cima disso tudo. A fome, nesses países - quer dizer, não era só no Oriente Médio. Você vê, na Irlanda, se não fosse a batata, morreriam milhares a mais, na Itália morreram milhares, na França morreram milhares, uma fome mesmo. Não havia essa, vamos chamar entre aspas, "fartura" que se tem hoje, essa diversidade de alimentos que se tem hoje. Isso realmente criou raízes muito profundas em mim. E venho de uma família que tem padre. No Líbano, padre católico pode casar, porque são outros concílios. E parece que - uma vez até perguntei isso para o Dom Pedro Casaldáliga quando ele veio aqui (na Caros Amigos) dar entrevista - parece que haviam... bom, no Oriente Médio você sabe que grande parte da população é islâmica e a Igreja precisava manter esses católicos principalmente no Líbano, porque o Líbano foi uma colonização, eu diria pra você não só francesa, mas culturalmente e ideologicamente foi francesa. Que a França tinha toda a rede, mesmo... tem um conceito, vou chamar de arabismo, mas nem sei se esse é o termo correto, mas que influenciou de tal maneira a cultura francesa, que o Líbano tinha duas línguas oficiais: a árabe e a francesa. Então o que aconteceu foi o seguinte: na minha família tinha um padre, que veio para o Brasil várias vezes ver a família dele no Pará. Ele foi parar lá em Belém, por causa do ciclo da borracha - quer dizer, no começo do século XX. E eu até os dez anos fui coroinha. Então eu tinha que ir lá, carregar a cruz, aquela coisa toda. Agora lá, ao contrário daqui do ocidente, a grande festa não é o Natal, é a Páscoa. É quando você come do bom e do melhor, quando você cozinhava os ovos com casca de cebola para ficar vermelho e depois fazia a disputa do ovo, então quer dizer, eu tive uma infância que realmente foi privilegiada, na medida em que eu não passava sentado na frente de uma televisão, e muito menos rádio, porque onde fui criado não tinha nem energia elétrica. E a aldeia onde eu nasci (Miniara-Akkar) é a aldeia onde nasceu o imperador romano Alexandre Severo, eu coloco isso em algum de meus livros, não sei se no Peregrino ou no Vozes do Deserto...

No Vozes. Pois é, havia me esquecido. Então a gente encontrava ruínas do império romano. E lá a escola é período integral, e tem um fato interessante, porque lá os protestantes estavam entrando e a escola dos protestantes era meio-período, então todas as crianças queriam ser protestantes para ter só meio período de aula. Então a gente ia procurar, cavava, achava moeda do império romano e trocava por doce. Porque minha infância era na base de troca. Trocava pão por sorvete, pegava a azeitona. Chegava antes da colheita, a gente pegava azeitona e enterrava dois, três sacos de azeitona, que depois da colheita eles falavam "pode ir lá buscar azeitona agora", mas só davam uma, duas ou três, e nós já tínhamos escondidos os sacos antes, e trocava por doce, por sorvete. Quer dizer, uma criancice, entendeu? Isso foi basicamente minha infância lá. No Brasil, ela continuou já completamente diferente. Para mim foi um choque brutal. Eu dormia e queria acordar no dia seguinte no Líbano. Diria pra você que até hoje, apesar de ter mãe brasileira, de ter vivido toda a minha vida no Brasil, ainda não consigo me sentir um filho da terra. Estou sempre dividido, sabe? E aí, a partir desse momento, que dá pra você entender melhor porque não gosto muito do conceito de pátria: eu tenho uma tia que mora no Haiti, e conheço bem meus primos. Tenho uma tia que mora em Cuba, e conheço bem meus primos. Tenho uma tia que mora na Síria, e conheço bem meus primos. Ou seja, eu tenho parentes na França, na Itália. E ficava pensando quando era criança: pô, porque que vou fazer guerra? Se meus parentes estão todos lá, como é que vou brigar contra esses países? Aos poucos você vai aprendendo, sua cultura vai expandindo, e você vai percebendo que não é por causa de uma fronteira física, que hoje sabemos que não existe mais. A tecnologia acabou com as fronteiras. Não existe mais nada. É por causa de um pano - que é a bandeira - que você vai sair pra matar, mas matar quem? Pessoas que você não conhece? O que eles fizeram pra você? Para mim isso ficou muito claro, porque como vim de um país para o outro, e como tenho parente em quase tudo quanto é lugar, virei quase uma pessoa cosmopolita. Não consigo entender porque precisamos de uma guerra para matar o outro. Isso também ajudou muito nas minhas colocações, na minha filosofia de vida, como é que quero viver, como eu acho que a humanidade tem que ser. Acredito no seguinte: o ser humano é a dimensão de todas as coisas, pra mim isso é inegável. E ao mesmo tempo, acho que o ser humano tem que ser uma pessoa solidária, porque é o primeiro preceito que considero fundamental: a solidariedade. Se sou solidário com você, sou uma pessoa que olha pra você como se tivesse olhando pra mim mesmo. Ou seja, a solidariedade pressupõe que você vê no outro você mesmo.

O eu é o outro (título de uma das crônicas de Vozes do Deserto e frase que aprece recorrente em seus textos).
Exato! É evidente que tem muita gente que não compreende isso, que não gosta disso, acho que posso até estar errado, mas acho que na medida em que sou contra a violência, que sou contra a exploração do homem pelo homem, na medida em que sou a favor da solidariedade humana, acho que não sei, talvez todos estejam errados, sabe, viver numa sociedade competitiva, numa sociedade que não respeita o próximo, numa sociedade que quer levar vantagem, eu realmente abomino isso.

Então deve ter sido mesmo um choque muito grande sua chegada no Brasil. Porque, se não a questão nacionalista, existe essa questão da exploração do homem pelo homem...
Minha avó me criou porque meus pais estavam aqui no Brasil. Meu pai precisou fugir do Líbano. Então, o que aconteceu: minha mãe é baiana, mas na verdade é de origem libanesa também, ela conheceu ele no Líbano, se casaram e vieram para o Brasil, e eu fiquei lá até a quarta série, eu e esse meu outro irmão. E minha avó sempre foi uma pessoa que sempre quis ajudar as pessoas, ela sempre ensinava isso. Você só tem valor se você ajuda ao próximo, você só tem valor se você ama ao próximo, e nada a ver com religião propriamente dita. É claro que ela era muito religiosa, tal e tal, mas ela não confundia as coisas, sabe? Ela não fazia barbaridades em nome de Deus. Ela não praticava o bem em nome de Deus nem o ódio em nome de Deus, e eu vim para cá e sofri um choque violento, como você falou. De repente não era nada disso. Para você ter uma idéia, a primeira coisa que vi no Brasil, quando cheguei - fui pra Minas, meu pai tinha uma loja lá - foi uma reunião de gente, muita gente na rua e eu perguntei "o que foi" e (me disseram que) tinham assassinado um cara com nove facadas ali. Aí perguntei "mas porque que matou?" e me responderam que o alfaiate não tinha terminado o terno dele - você vê como isso me marcou tanto, é coisa de mais de cinqüenta anos atrás. Ele prometeu o terno e não terminou no dia, e o outro foi lá e matou ele. Aí eu falei: "ele vai ser morto?", foi minha primeira reação. Porque vim de uma região que não permite esse tipo de violência, e meu pai falou "não, aqui ele foi embora, ninguém mais pega ele". E eu: "como? Mas a família dele não vai atrás?". Você entendeu? Quer dizer, eu vim de uma cultura completamente diferente.

Ainda era o Talião (o "olho por olho, dente por dente" do Velho Testamento).
Exatamente. Lá é mesmo a Lei de Talião. Quer dizer, por isso sempre vai haver um assassinato, um crime, porque nem o Estado se preocupa. Não estou justificando, estou mostrando o choque de cultura. No que eu fiquei satisfeito sabendo que aqui o Estado não tem mais poder do que, por exemplo, do ponto de vista religioso, porque a Bíblia diz "não matarás", e o Estado, quando mata, está sendo superior à palavra de Deus. Quer dizer, como o Estado pode ser superior... Essas coisas todas. Eu trouxe uma cultura completamente diferente, uma cultura que não tem nada a ver com isso tudo. Esse foi o primeiro choque. E o segundo choque foi na escola. Lá as Cruzadas - a gente sabia como foram as cruzadas, não era que nem aqui. Aqui a gente tinha um professor de História que era uma besta (risos), o cara queria convencer a classe que as cruzadas lutaram em nome de Deus, que estavam levando religião, levando civilização, e eu falei "pô"... Aí eu comecei a criar problema dentro da escola. Eu enfrentava ele, sabe? E ele não se conformava. E quando ele entrava na história da região, eu conhecia muito mais do que ele, evidentemente, porque eu estudei lá. E eu tinha meu ponto de vista, e aí criou um problema pra mim na escola, que na medida em que ele falava eu já sabia. Aí criou um grupo na classe, havia os que me apoiavam e evidentemente os que queriam boa nota do professor, e ele sempre me falava "não, você não vai tirar boa nota, você não sabe nada". Aí eu comecei a ver outro tipo de injustiça, sabe? Eu tinha certeza da história que conhecia. A gente sabe que não tem como estar errado, mas ele... ele era um fanático, sabe? E se você falasse que a primeira atitude das cruzadas foi atacar principalmente os cristãos lá em Constantinopla, o professor dizia: "ah, não! Aquilo foi...", ele não conseguia nem dizer pra você que eles erravam, ele justificava até isso.

Agora indo pra adolescência do senhor, numa crônica publicada na Caros Amigos, o senhor diz que aos dezesseis anos, sofreu "a primeira de muitas prisões".
Ah, sim! A partir daquele momento - vê como as coisas acabam se interligando - nessa escola onde eu discutia com o professor, eu criei o primeiro jornal da escola. Tirei o título de um livro, não me lembro mais o nome do autor, russo, que se chamava Tortura dos Cérebros, que era um negócio assim, pra provocar mesmo, e é evidente que aí eu fui chamado (na direção). Ah, e ao mesmo tempo eu fui ser secretário-geral da UPES (União Paulista de Estudantes) - já comecei a militar politicamente, né?

Isso já em São Paulo?
Já em São Paulo. E os meus amigos eram aqueles amigos solidários, contrários à exploração do homem pelo homem. Era a juventude de esquerda, não tinha velho, éramos nós mesmos. Fico pensando nisso agora, e dou risada sozinho (sorrindo), os erros que a gente fez, as bobagens que a gente dizia, era... um aprendizado, isso era o que a gente fazia.

Isso em final dos anos 50, começo dos 60?
Era em 57, 58 mais ou menos. A época da minha primeira prisão. A UPES fez uma greve. Na verdade, a gente se solidarizou com o pessoal da Faculdade de Medicina da USP que tinha feito uma greve na avenida Doutor Arnaldo, no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, que é da Escola de Medicina. A gente foi lá e tal, eles fecharam a escola, e chegou o DOPS, né. E o delegado: "ah, que vagabundo", e a gente "vagabundo?!" (erguendo as mão como se fosse dar um tapa)... A gente já estava puto, e tinha razão, todos tinhámos razão, porque... porque a greve era por uma melhoria do ensino. O problema do Terceiro Mundo é esse: você briga para melhorar o ensino, e não interessa (para o Estado), porque quanto mais ignorante, melhor para ser governado, né? Então o cara me deu um puta dum tapa. Pô, um nego de dois metros de altura, rapaz. Fui parar lá longe, e fui preso. Eu e um monte, que na hora que eu caí, a solidariedade, né... Encheram um ônibus de estudantes e levaram para o DOPS. Essa foi minha primeira prisão. Depois houveram outras, mas tudo assim, nesse sentido, em relação à escola, melhores professores...

E nem todas as prisões ligadas à militância, mas algumas ligadas também à carreira de jornalista.
Como jornalista fui preso várias vezes também. Eu me lembro muito de Ibiúna... Eu trabalhava no jornal A Última Hora, que era um jornal de esquerda, e tal.

Que inclusive foi depredado na época do golpe (de 64)...
É, uma coisa horrível... Vou contar um caso que não tem nada a ver com prisão nem nada, mas... Tinha um fotógrafo, acho que era Nascimento o nome dele. A gente tava debaixo do viaduto do Anhangabaú, e fomos comer alguma coisa naqueles muquifos lá perto quando de repente a gente ouve um monte de grito: um cara ia pular do viaduto. Ele tava querendo se matar. Saímos correndo e gritávamos "não pula! não pula!" - que nessa hora tem muita gente sacana que diz pra pular - e o cara (o suicida) contou uma história impressionante, e ele (o Nascimento) ficou parado e disse "peraí!", e correu até a redação, pegou a máquina e gritou "agora pula!" (gargalhadas). Fiquei tão abismado com aquilo. Eu disse pra ele: "Pô, você ia matar o cara!", e ele: "Não, esse cara não ia pular mesmo", mas o Nascimento fez isso, sabe? Esse foi um dos meus primeiros choques como jornalista, para você ver o que um jornalista faz pra ter o flagrante dele. Mas aí no Última Hora, quando fui pra Ibiúna, eram mais ou menos duas horas da manhã, e um frio! E tiros de metralhadora para tudo quanto é lado. Naquela época as redações funcionavam da seguinte maneira: tinha o setorista de esportes, o setorista de polícia, o setorista de política... Tinha os setores mesmo. Então a redação tinha uma micro-redação nas delegacias, uma micro-redação nos campos de futebol, aquela coisa toda. Os repórteres de polícia naquela época andavam armados. Eles iam atrás de bandidos, o que eu achava um absurdo. Tinha até um chefe de reportagem muito legal, não me lembro o nome dele, recém-falecido, que era neurótico de zona. Ele tirava o revólver e atirava pra cima. Na redação, uma vez ele atirou pra cima, atravessou o laboratório fotográfico e quase matou um fotógrafo. Foi uma zona, não feriu ninguém, mas você pode imaginar daí como é que era. Então um desses setoristas falou pra mim: "Você tem algum amigo lá em Ibiúna"? Falei: "Pô, lá todos são meus amigos". Era o movimento estudantil e eu morava na Cidade Universitária (SP). Aí ele virou pra mim e falou assim: "A polícia vai estourar isso". E eu falei: "Pô, como? Ninguém sabe onde é?" e ele: "Você pode não saber, mas a polícia sabe". Então comprei duas caixas de Sonho de Valsa e falei: "Vou lá levar comida e fazer cobertura". Eu sabia que meu irmão estava lá (ele estudava engenharia), muitos amigos. E realmente a polícia chegou lá e estourou tudo aquilo. Eles chegaram e prenderam todo mundo, então falei para os jornalistas que estavam próximos para não nos identificarmos "porque vamos saber pra onde estão levando [os presos]". A gente não se identificou.. Quer dizer, teve um de nós, um canalha que acabou se identificando e hoje ele tem um certo prestígio. Ele foi liberado assim que se identificou. Então vimos que se a gente tivesse se identificado, eles teriam liberado, tinham ordem pra isso. A gente foi parar lá na Tiradentes, em um lugar que agora é um banco, e eu sei que na minha cela estava um rapaz que tinha um poder de organização muito interessante, que é o Franklin Martins (jornalista da Rede Globo). Eu e o irmão dele trabalhamos juntos. Ele nem era jornalista, mas era impressionante o poder dele... Nós éramos mais ou menos em quarenta, aí ele virou pra mim e falou assim: "Vamos organizar isso, vamos colocar o pessoal aqui, o pessoal ali, vamos fazer a limpeza". A cela não tinha colchão, e era frio. Mas tinham uns três viados lá, presos, que viram aqueles estudantes todos, e ficaram apaixonados! (risos) De repente surgiu colchão, surgiu fruta, surgiu iogurte... Parece que eles tinham certos privilégios. Eles circulavam ali, ficavam na cela ao lado, ficavam: "deixa eu pegar na sua mão! Deixa eu pegar na sua mão!" Olha, eu dei tanta risada, foi um negócio impressionante. Essa foi então minha primeira prisão como jornalista. Depois houve muitas outras. Como quando eu chefiava a TV Cultura, e fui preso pela Operação Bandeirantes, do DOI-CODI, um ano antes do Vladimir Herzog - nós trabalhamos juntos. Tinha uma epidemia de meningite. Na TV Cultura, como tínhamos poucos recursos - eu na verdade era o chefe de reportagem, e também fazia uma escala de colocar os programas no ar - e no dia em que mandei o repórter fazer a matéria, recebi uma ligação do Chefe da Casa Civil, que se chamava Henri Aidar, que disse: "olha, o senhor vai colocar ai esse negócio de meningite? acho melhor não colocar [no ar] porque vai alarmar a população". E eu disse: "Não, o senhor está enganado. Eu vou alertar a população". E muita gente ficava: "Não, não, não faça isso! Não faça que você vai se arrepender". E eu: "Pô, vou me arrepender do que? Vou perder meu emprego?". Aliás, naquela época eu fui (para a TV Cultura) para ganhar metade do que eu ganhava na Editora Abril. Falavam que eu era louco de sair para ganhar menos, mas era mais pra saber como funcionava a televisão. Bom, duas horas antes do programa ir ao ar, me liga o governador: "No coloque esse programa (no ar), vai alarmar a população". Eu disse: "Governador, o senhor me desculpe, primeiro a Fundação Padre Anchieta (que engloba a TV Cultura) é independente, e segundo, que eu preciso alertar a população". E eu coloquei o programa no ar. Então fui preso, pela... (diminui o tom de voz) Pô, nem gosto de falar isso porque... A primeira coisa que o cara fez foi pegar o revólver e botar na minha cabeça e fazer "pá!" (imita um disparo seco). Quer dizer, não tinha nada senão não estava falando aqui, mas estavam matando adoidado as pessoas.

E prenderam o senhor em casa?
Em casa. Chegaram com metralhadora e tudo, quebraram tudo... Tinha um livro, chamado Bombas Hidráulicas, pois meu irmão fazia Engenharia, e foi apreendido, porque acharam que servia pra fazer bomba.

Me lembro de ter lido essa história, não citando especificamente seu irmão, mas ela estava documentada na Caros Amigos Especial do Golpe de 64. Por sinal, na sua crônica, o senhor...
Você.

... você fez uma crônica especial sobre o tema, onde pergunta se valeu a pena todo aquele período, você fala das pessoas que trocaram as idéias "por migalhas de poder", é a expressão que você usa. E no final, quando você pergunta se valeu a pena, você diz: "eu por exemplo, votei no companheiro Lula e vejo no poder o Doutor Luis Inácio". E você torna a perguntar se valeu a pena. Você consegue responder essa pergunta hoje, se valeu realmente à pena?
Olha, acho que valeu a pena, claro, porque na verdade tem muita coisa que eu não coloquei. Fiz vários programas do PT, inclusive quando era diretor do Globo Repórter aqui em São Paulo, eu fui o único jornalista que dormiu em 79 no Sindicato dos Metalúrgicos. Toda imagem que você ver de referência, de cunho histórico [daquela época] são nossas, porque a Globo não colocou o programa no ar, ela censurou. Foi o primeiro encontro que eu tive de fato com o Lula. Eu fiquei lá, fui solidário. Foi quando ele foi preso e solto logo depois e eu fiquei muito marcado por causa disso. Fiquei muito marcado também quando morreu o Santos Dias [da Silva, operário assassinado pela polícia durante piquete grevista em São Paulo no dia 30 de outubro de 1979], porque eu coloquei cinco carros da Globo acompanhando o enterro. Aí um cara do jornalismo diário me dedou, nem vou falar o nome dele também porque eu... Acho que preciso ser menos prolixo.

Não, está ótimo.

(Na segunda parte da entrevista, Georges Bourdoukan fala sobre seu trabalho no programa Globo Repórter, então bem diferente do que é hoje; sobre os conflitos no Oriente Médio, sobre o filme Cruzada, sobre as acusações de anti-sionismo e sobre seu trabalho como escritor).

CONTINUAÇÃO