O Violão Vadio de Baden Powell
por Marcelo Silva Costa
26/06/2003

"Dentro do projeto Brasil-França, a edição de dezembro de 1986 do Festival Internacional de Violão de Martinica foi inteiramente dedicada ao Brasil. Encarregado de montar a programação, o violonista Turíbio Santos convidou uma variada e rica amostra de violonistas brasileiros: os violeiros Elomar e filho, Xangai, o bossanovista Carlos Lyra, os chorões Paulinho da Viola e César Faria, gente da MPB como Geraldo de Azevedo e Gilberto Gil, e violonistas clássicos como João Pedro Borges, Henrique Eanes e o próprio Turíbio Santos. Além de Baden Powell, que era tudo isso ao mesmo tempo".  Pág. 303

Escolhi este parágrafo, pinçado de uma das páginas de "O Violão Vadio de Baden Powell" (Editora 34, 381 pag), para tentar passar a dimensão do mito que foi este violonista carioca. É claro que, nestas poucas linhas, isso será difícil. A idéia principal, porém, é cutucar a curiosidade do leitor sobre este livro lançado em 1999, uma biografia sobre um músico brasileiro pouco comentado e menos ouvido ainda pelas novas gerações. Mais do que qualquer coisa, a de se ressaltar que a ignorância de muitos (a maioria, jovens) deve-se ao fato de que Baden viveu grande parte de sua vida no exterior (França e Alemanha). 

No Brasil, gravou seu disco mais famoso (e um dos mais importantes da MPB em todos os tempos) ao lado de um tal Vinicius de Moraes. Entre 3 e 6 de janeiro de 1966, os dois pariam "Os Afro-Sambas", álbum que marca o auge da parceria que, além de boas canções, também se revelou boa de copo. Baden, sozinho, deve ter bebido mais que todo o rock nacional dos anos 80 junto, o que não é motivo de orgulho, já que foi a bebida que mais trouxe problemas para o músico em seus 63 anos de vida. O que dizer de um cara que chegou a virar quatro garrafas de uísque num dia? Causa e efeito: pancreatite aos 30 anos! Na carreira, o último grande sucesso escrito pelo violonista foi uma parceria com Paulo César Pinheiro que eu, particularmente, me lembro de uma bela versão na voz de Elis Regina: "Lapinha". Quando? 1968...

Não é nada, caro leitor. Nunca é tarde para se descobrir sua própria cultura. E "O Violão Vadio de Baden Powell", biografia escrita pela jornalista francesa (veja só) Dominique Dreyfus, é um bom cartão de visitas para se adentrar o maravilhoso mundo desse músico que lotou centenas de casas de shows na Europa, teve seu modo de tocar transformado em método de aula (com direito a vídeo e tudo) no Japão, tocou com alguns dos maiores nomes do jazz mundial, é idolatrado por quase todo jovem violonista brasileiro que se arrisca na arte das seis cordas e morreu em 2000 deixando uma vasta discografia praticamente inclassificável, sendo apontado por muitos com um dos músicos brasileiros de maior sucesso no exterior em todos os tempos. Dominique é livre docente em letras e literatura pela Sorbonne e passou pelas redações da Rolling Stone francesa e do jornal Liberation. 

Como biografia, "O Violão Vadio" é praticamente perfeito. Conta histórias da vida Baden que muita gente (nem mesmo os amigos) não sabia, além de esmiuçar suas gravações, shows, parcerias, amores e porres. A escrita segue um tom materno. Essa ótica pra lá de carinhosa expõe os erros do músico como erros, sem procurar falsas justificativas, mas, sobretudo, enaltece a obra e o homem. É uma biografia autorizada, oras (a época, Baden estava vivo), e o modo como expõe seus relacionamentos (vários), fraquezas (algumas) e burradas (centenas) chega a comover, transformando-se em um belo relato que o modo franzino do músico "escondeu" em anos e anos de bons serviços prestados a música mundial.

O período francês é contado com riqueza de detalhes. Deve ser possível andar por Paris sem mapa, apenas tendo o livro como guia. Mas o que mais chama a atenção é o inicio de carreira de Baden, balizado por aparições em programas de rádio, gravações sem crédito e shows em boates que só o aceitavam devido a uma autorização do juizado de menores. Também o surgimento da bossa nova e, depois, o período ditatorial em que o Brasil se viu entregue a militares. Isso tudo sem destacar as dezenas de histórias sensacionais que tornam a leitura ainda mais deliciosa. Talvez seu único defeito seja o fato de estar desatualizado. Lançado em 1999 pela Editora 34, o livro continua a venda em algumas livrarias online ao preço de R$ 33,00, mas a história termina um ano antes da morte do músico. Corrigido este detalhe em uma futura segunda edição, "O Violão Vadio de Baden Powell" será, ainda mais, um livro indispensável para quem gosta de boa música... e boa leitura. 

Ps. Ao buscar essa capa do "Afro Sambas" na web, encontrei-a na Amazon com chamada de vinil raro. Preço? US$ 115,00...



TRECHOS

1955

"Na hora de fazer seu trio, Ed (Lincoln) procurou Baden:
- Escuta, vou fazer meu trio para tocar lá no Plaza, você quer entrar?
- Claro.
- Agora eu preciso de um contrabaixista melhor do que eu. 
- Eu conheço um cara muito bom, é o Luiz Marinho. 
Assim nasceu o Ed Lincoln Trio. O conjunto ensaiou, viu que dava certo e estreou (...). O Plaza continuava com uma freqüência fora do comum, tornando-se ponto de encontro dos músicos da capital. Cyll Farney, João Donato, Geraldo Vandré, Tom Jobim, que ainda era estudante de arquitetura, eram dos que sempre passavam por lá, dispostos a dar uma canja. Mas do Tom, Zé Augusto Godoy (dono do Plaza), não gostava muito:
- Ah, Ed, não bote mais esse rapaz para tocar, que ele toca uns negócios esquisitos, não dá."

1957

"Baden, que nunca foi ingrediente de uma panela só, freqüentava todas, ou quase. Aparecia vez ou outra na casa de Nara Leão, ou melhor, de seus pais. Freqüentava também o apartamento de Lula Freire, reputado ‘o último bar a fechar na Zona Sul’: ‘Meu apartamento ficava na Rua Toneleros, e bem antes da bossa nova, o pessoal gostava de se reunir lá, para fazer jams sessions’. (...) Com seu gravador, Ampex, o máximo na época, Lula gravava ‘tudo que estava acontecendo’ em sua casa, registrando encontros históricos na sala de visitas, como um dueto entre Baden e Luizinho Eça no acordeon. Ou ainda, em 1963, ‘O Samba do Avião’, exorcismo ao pavor que Tom Jobim tinha desse meio de transporte, pedindo uma introdução que seu compositor não encontrava. Nisso, Tom dedilhou o “Samba do Avião” no teclado, reclamou que não conseguira fazer a introdução e Baden a fez... entrando numa parceria, jamais oficializada, porém efetiva, com Tom Jobim".

1959

"A bossa nova já estava bem implantada no panorama musical brasileiro, principalmente o carioca: apadrinhados pelos mais velhos, como Ary Barroso ou Cyro Monteiro, que acompanhavam como podiam a evolução da música brasileira, a cada dia surgiam novos talentos. (...) Na época, eram famosas as domingueiras onde a juventude da Zona Sul ia escutar jazz, bebendo sua cuba libre. Havia as domingueiras do Copa Golfo em Ipanema, onde a garotada ia dançar. A primeira vez que Baden apareceu lá, pegou o violão e começou a tocar ‘Rock Around The Clock’. A galera escandalizada chamou-lhe a atenção:
- Ih, rapaz, aqui só se toca jazz. 
Baden não se deu por achado, começou a improvisar. E o baile acabou: todo mundo sentou boquiaberto, fascinado, e passou a tarde inteira escutando Baden tocar".

Conhecendo Vinicius de Moraes

"O assunto da conversa de cara foi música. Vinicius contou que acabara de colocar uma letrinha em cima da Cantata nº 147 de Bach, “Jesus Alegria dos Homens”. E que sairá uma marcha-rancho muito bonitinha. Baden, incrédulo, pensou consigo mesmo: ‘Uma marcha-rancho de Bach? Muito bonitinha!?’. Em seguida, contemplou longamente o copo na mão do companheiro, avaliou o nível da garrafa de uísque em cima da mesa e achou melhor não comentar nada. (Mas teve que se dobrar quando ouviu a parceria Vinicius-Bach: havia realmente algo de carnavalesco no feeling do compositor alemão)".

1962

"Odete Lara, convidada de um festival de cinema na Itália, aproveitou a ocasião para passar uns tempos na França, (...) o que lhe permitiu retomar o fio da meada musical com Baden, que a convidou para cantar com ele no show que fez na Bélgica. (...) Juntos, fizeram uma longa temporada de dois meses, durante o verão. Nesse meio tempo, um grupo de rock inglês que estava estreando também se apresentou, chamava-se The Beatles. Baden assistiu ao show, mas não se empolgou muito com os britânicos". 

1968

"De volta ao Rio, Baden gravou pela Elenco o LP ’27 Horas de estúdio’, assim chamado porque, quando o diretor financeiro da gravadora recebeu a fatura do estúdio, ele comentou, admirado:
- Puxa, só 27 horas de estúdio?
Baden tinha entrado no estúdio num dia e só saiu no dia seguinte, após gravadas as dez faixas do disco." 

1975

"Nos primeiros dias de 1975, Baden seguiu Cote d’Azur para se apresentar no MIDEM. Convidada especial do evento, Elizeth Cardoso pediu a Baden e (ao baixista) Guy Pedersen que a acompanhassem: ‘E durante o show aconteceu uma coisa incrível, que eu nunca poderei esquecer’, relembra o baixista. ‘Elizeth começou a cantar ‘Serenata do Adeus’ e de re pente deu uma pane na eletricidade. Apagaram-se as luzes, os microfones, os amplificadores, as mesas de som, tudo. A sala ficou na maior escuridão e, imperturbável, Elizeth continuou a cantar como se nada tivesse acontecido. Baden no violão e eu no baixo, continuamos também. E tudo estava no lugar: o tempo, o som, tudo perfeito. Era um milagre!” Elizeth cantou a música até o fim, no escuro e sem amplificação, enchendo o vasto espaço do Palais dês Congrès de Cannes com aquele vozeirão extraordinário, dando um banho em todos os cantores de música popular do planeta. Quanto acabou a música, a luz voltou, e o público, pregado nas poltronas, não podia nem se mexer, paralisado pela emoção,. Quando despertou, num delírio total, ovacionou a cantora e seus músicos". 
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