'A
Divina Comédia dos Mutantes', de Carlos Calado"
'É Rita quem corta as unhas do pé do amigo Arnaldo'
por
Manuela Colla
2001
Que
os Mutantes são uma banda importante pra caramba na música
brasileira, todo mundo sabe. Que a década de 60 foi meio
maluca, também. O que a maioria das pessoas não
imagina sobre Rita Lee, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista
é o que está contido nas 358 páginas de
A Divina Comédia dos Mutantes, de Carlos Calado,
que está na sua segunda edição.
O
livro conta toda a história do trio, desde quando ainda
não passavam de três fãs apaixonados pelas
melodias de Lennon e McCartney. Parafraseando Jim Jarmush a
respeito de Screamin' Jay Hawkins, eu diria: o fato é
que eles eram loucos, e isso bastava. Nunca o Brasil tinha visto
uma banda que ia muito além da música: eles eram
imagem, cor, diversão. E, além disso, músicos
que primavam pela qualidade e originalidade. Pode haver coisa
melhor?
Na
real, Carlos Calado preferiu usar a narrativa às avessas,
começando pela tentativa de suicídio de Arnaldo,
em 1982, que deixou seqüelas no mutante até hoje.
Logo após, o livro revê toda a história
do grupo, seu auge e decadência (a fase em que decidiram
enveredar pelo rock progressivo), e um breve relato do que eles
andam fazendo por hoje – dando destaque para a carreira solo
de Rita Lee.
Vamos,
então, ao começo: Sérgio e Arnaldo tinham
sido criados por pais extremamente liberais e ligados à
música, de modo de os dois tiveram formação
clássica. Apesar disso, a primeira banda que formaram
com os amigos era de iê-iê-iê, os Wooden Faces.
O livro recupera várias partes interessantes dessa época,
como os apelidos, as brincadeiras, as tardes ouvindo sucessos
da orquestra de Glen Miller, prato cheio pra quem quer conhecer
mais sobre como era a vida de meninos de classe média
na década de 60. A história de Rita foi contada
da mesma maneira, com o começo do romance de seus pais,
as brigas com as irmãs, a carreira musical começando
em conjuntos vocais femininos... E, acima de tudo, ressaltando
o tempo todo como era difícil resistir ao carisma daquela
ruivinha sardenta. A beatlemania foi decisiva na vida dos Mutantes,
já que foi a fixação pelo Fab Four que
levou Rita a um show do Wooden Faces.
Rita
e Arnaldo gostaram imediatamente um do outro, e no dia seguinte
ao show, estavam engatando o primeiro namoro da vida dos dois.
Tinham 16 anos na época. O mais interessante nessa história
toda é que, mesmo na época do amor livre, os dois
ainda tentaram manter o casamento, e eram extremamente ciumentos
e – sim, é verdade – Rita acabou transando com Sérgio
anos mais tarde, mas por pura vingança. Ou seja: muito
pouco daquela suruba que a gente pensa que era a vida dos Mutantes
é verdade. O conselho que eles mais escutavam quando
andavam com os tropicalistas era: ‘Vocês precisam ser
mais modernos. Rita e Arnaldo andam sempre grudados um no outro.
Isso é um desperdício...’
Só
pra constar: Sérgio tinha 13 quando virou o guitarrista
dos Wooden Faces. Era o que podia se chamar de 'pentelho', criando
apelidos pouco convencionais (mas geralmente adequados) para
todos. Rita, por exemplo, era a ‘Banana Pintada’. A amizade
dos três logo virou musical, e surgia O Konjunto, que
meses depois, tornaria-se Os Mutantes (nome sugerido por Ronnie
Von e prontamente aceito, já que Arnaldo e Rita eram
malucos por ficção científica). Em 1966,
os Mutantes faziam sua primeira apresentação,
exatamente na estréia do programa O Pequeno Mundo
de Ronnie Von, da TV Record. Começava a revolução,
porque aqueles garotos chamaram a atenção de outros
programas e de gravadoras.
E
de Gilberto Gil, que os convidou pra gravar Domingo no Parque,
e apresentar-se no Festival da Record. Rita adorou ele de cara,
os meninos ficaram mais defensivos, já que o negócio
deles eram rock and roll cantado em inglês. Mas eles gravaram
a canção e começaram a chover convites
para gravarem seu primeiro álbum. Em 1968, os Mutantes
entraram em estúdio. Depois disso, o sucesso não
tardou. Participações em filmes, comerciais, festivais,
programas de tevê. A noiva grávida, a guitarra
elétrica, o theremin, desfiles de moda mostrando seu
figurino sempre extravagante. Vaias, resistência, conservadorismo
não faltaram. Arnaldo achava graça e dizia: 'ninguém
entende a gente e isso é ótimo'.
Aliás,
o livro é recheado de fotos de uma Rita Lee menina e
sempre magricela, e dela, junto com os dois irmãos, aprontando
horrores com os outros. Cigarros de maconha escondidos entre
os de tabaco, para enganar quem vivia filando-os, chicletes
de alho, nada era suficiente. O número clássico
da banda era o seguinte: Janta na casa dos Baptista. Rita começava
mastigando um pedaço de bife por alguns minutos, e passava-o
para a boca de Arnaldo, que mastigava mais um pouco mais a carne
e jogava-a dentro de um copo de Coca-Cola. Depois que a mistura
virava espuma, Sérgio bebia todo o conteúdo do
copo. E voltava a mastigar o bife, para depois engolí-lo.
Rita,
por sua vez, irritava a maioria das pessoas que conviviam com
a banda na época. Ela criava personagens imaginários,
como a menina Gumgum (chata e grudenta, que ficava dizendo pequenas
crueldades), e Aníbal (o malandro do morro, cheio de
gírias e sempre cantando as meninas que estivessem por
perto). Ela e Arnaldo começaram a se desentender com
mais freqüência, depois de anos de infidelidade e
envolvimento com ácido e haxixe. Começava a viagem
sem volta dos Mutantes, com empresários sugerindo cada
vez mais que Rita tinha carisma e talento suficientes para seguir
carreira solo. E assim, o fez: pegou suas duas cadelas, violão,
o mini-moog e desceu a Serra da Cantareira para nunca mais voltar.
Build Up, seu disco debute solo, era um sucesso e a menina
de 22 anos firmava-se como uma estrela da música pop
brasileira. Mas não sem antes deixar, junto com seus
companheiros mutantes, cinco discos que até hoje soam
atuais, e a maior prova disso é a paixão de muitos
gringos, como Kurt Cobain e Sean Lennon, pelo trabalho do grupo.
E
o título lá em cima? Bem, ele foi usado para encabeçar
uma matéria publicada no Jornal da Tarde, logo
no começo do sucesso do grupo. Só pra se ter idéia
do tipo de loucura eles inspiravam. E nonsense é nonsense,
explicar (ou escolher os exércitos pretos do War) não
vale.
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