Quando
o S&Y começou a ser editado na Web, em 2000, tinha uma seção
chamada "Poemas e Contos", cuja proposta era trazer obras
de gente nova com algo a dizer. A seção continua no ar, mas
deixou de ser atualizada porque buscamos dar um direcionamento
mais jornalístico ao site, focando em textos sobre cultura
pop. E principalmente porque todo mundo se acredita poeta
e escritor... com razão: somos todos contadores de histórias.
Achei Que Meu Pai Fosse Deus, coletânea de contos da
vida americana compilado pelo escritor Paul Auster, confirma
essa visão e vai além ao exibir 121 textos extraordinários
de gente comum, que emocionam por seu lirismo, beleza e simplicidade.
Auster, autor de dezenas de livros sensacionais (e ao menos
um clássico: A Invenção da Solidão), retira o foco
de luz de si mesmo e o joga sobre pequenas histórias recheadas
de magia, mistério e pequenos milagres. Achei Que Meu Pai
Fosse Deus é um livro imperdível.
Todos os contos são frutos de um programa que o escritor apresentava
na rede National Public Radio (NPR), com 680 retransmissoras
espalhadas pelos Estados Unidos. Primeiramente foi oferecido
ao escritor um programa mensal em que ele apresentaria um
texto próprio. Auster não gostou da idéia, mas sua mulher,
a também escritora Siri Hustvedt, sugeriu que ele pedisse
para que os ouvintes lhes mandassem as histórias. Auster foi
ao rádio e explicou aos ouvintes o projeto estabelecendo três
pré-requisitos para os textos: que eles fossem verdadeiros,
curtos e que desafiassem nossas expectativas em relação ao
mundo.
A idéia do escritor era de que o ouvinte não se devia se preocupar
em nunca ter escrito uma história. "Todo mundo conhece boas
histórias e, se um bom número de pessoas aceitasse o convite
para participar, começaríamos inevitavelmente a aprender coisas
surpreendentes sobre nós mesmos e os outros. O espírito do
projeto era inteiramente democrático. Todos os ouvintes estavam
convidados a colaborar e prometi que leria todas as histórias
que chegassem", conta o organizador no prefácio do livro.
Um ano depois, o projeto começou em dezembro de 1999, Auster
tinha mais de 4 mil histórias nas mãos. "A maioria era suficientemente
emocionante para prender a minha atenção até a última palavra",
diz o escritor. "Todos nós temos vida interior. Todos nós
sentimos que fazemos parte do mundo e, contudo, nos sentimos
exilados dele. Todos nós ardemos no fogo da nossa existência.
As palavras são necessárias para expressar o que está dentro
de nós", acredita.
Dos 4 mil textos, 121 enriquecem a edição nacional, divididos
em dez seções: animais, objetos, famílias, situações cômicas,
estranhos, guerra, amor, morte, sonhos e meditações. A idade
dos autores varia dos 20 aos 90 anos. Já a edição
norte-americana compila 179 histórias, pois 58 contos foram
cortados pelo tradutor da edição brasileira, que os considerou
'muito americanos' para o leitor local, o que surge como único
defeito da empreitada, já que a grande maioria das histórias
é totalmente americana, mas permite o paralelo universal,
assim como serve para justificar a crença de Auster nas "forças
misteriosas que atuam em nossas vidas, em nossas histórias
de família, em nossas mentes e corpos, em nossas almas".
Um bom exemplo é a impressionante (e tocante, e bela) história
de Rascal, um cachorrinho branco de manchas pretas
que, sozinho e inocentemente, conseguiu eliminar a poderosa
e temível Ku Klux Klan da cidade de Broken Bow, no estado
de Nebraska. Não é só a candura de ver uma instituição racista
cair pelo abanar de rabo de um dócil cachorrinho, mas também
a prova inevitável que o mundo é feito de pequenos milagres,
e de que eles vivem acontecendo ao nosso redor. O último conto
do livro, Uma Tristeza Mediana, escrito por Ameni Rozsa,
também está na categoria dos notáveis e traz a autora falando
de seus fins de relacionamentos, de sua paixão pelo rádio,
e dos novos apartamentos que aluga após um desastre amoroso:
"E agora, agora que esqueci, as coisas se preparam para
dissolver de novo. Um outro amor irá embora; vou pegar um
apartamento sozinha", diz ela. "Trêmula, nervosa, ligo
o rádio, pela primeira vez em meses. Paul Auster está lendo
uma história sobre uma garota que perdeu o pai e que arrastou
uma árvore de Natal pelas ruas de uma meia-noite no Brooklin.
Ele pede que enviemos histórias. Há condições de que sejam
curtas e verdadeiras. Mas eu não tenho mortes, viagens dignas
de serem relatadas. Não tenho golpes de sorte súbita ou tragédias
incríveis. Tenho apenas uma tristeza mediana", e finaliza:
"O rádio está me convidando a voltar. Reconheci o convite
quando escrevi estas linhas. Esta é minha história, que se
completa com o clímax que é agora. Às vezes, é boa fortuna
ser abandonado. Enquanto estamos procurando por nossas perdas,
o nosso eu talvez se insinue de volta, para dentro de nós".
Entre os destaques ainda dá para incluir a comovente história
Sem-teto em Prescott, Arizona, que traz o relato de
B.C., que aos 57 anos decidiu pedir demissão de seu emprego
- secretária de advogado, depositar todo o dinheiro da rescisão
na poupança e viver dos juros, como uma sem-teto ("Sou
anônima. Não estou inscrita em nenhuma programa
do governo", diz ela); o delicioso relato Martini
com um toque, em que Dave Ryan poetisa sobre o prazer
da bebida ("O Martini é Mahler, a cerveja é Bartok", define
a certa altura); e o conto que dá título ao
livro, em que um menino achava que o pai fosse Deus, pois
sua mera presença causou a morte do vizinho malvado
("O vizinho parou de gritar, olhou para meu pai, ficou vermelho,
depois púrpura, pôs as mãos no peito, ficou cinza, dobrou-se
e caiu lentamente no chão", conta). E muitos outros.
Achei Que Meu Pai Fosse Deus é um dos mais belos livros
já escritos e sua força reside em lidar com a emoção bruta
de pessoas com histórias para contar, e que só estavam esperando
uma pequena chance de dividir com o mundo seus pequenos milagres,
suas grandes coincidências, o charme de um mundo que insiste
em nos surpreender com pequenas demonstrações de imprevisibilidade,
coincidências e acasos. Ao dar voz aos comuns, Auster
engrandece a literatura mundial com um livro essencial para
se entender que "nunca fomos perfeitos, mas somos reais''.
Todos nós.
Trechos
do livro Achei Que Meu Pai Fosse Deus, coletânea organizada
por Paul Auster
Rascal
O ressurgimento da Ku Klux Klan na década de 1920 foi um
fenômeno que ninguém explicou completamente. De repente, as
cidades do Meio-Oeste se viram nas garras dessa ordem secreta
cujo objetivo era eliminar os negros e os judeus de nossa
sociedade. Em cidades como Broken Bow, Nebraska, que tinha
apenas duas famílias de negros e uma de judeus, o alvo eram
os católicos. Os membros da Klan espalhavam que o papa estava
preparando a tomada da América, que os porões das igrejas
eram arsenais e que padres e freiras faziam orgias depois
da missa. Já que a Primeira Guerra Mundial acabara e que os
hunos haviam sido derrotados, havia um novo foco para os homens
que precisavam odiar alguém. O espantoso era a quantidade
dessa gente.
Em Broken Bow e Custer County, dezenas deles foram atraídos
pela mística da sociedade secreta masculina que apelava para
o anseio do "Nós contra Eles", que parece ser universal entre
os homens. Duas das pessoas que se opuseram a isso foram os
banqueiros locais: John Richardson e meu pai, Y. B. Huffman.
Quando um telefonema da Klan avisou que deveriam boicotar
os católicos, eles desafiaram a ordem. Uma vez que ambos os
bancos locais resistiram, a tentativa da Klan foi frustrada,
mas minha mãe, Martha, pagou por isso na eleição do conselho
da escola: foi derrotada pelo boato difamador de que estava
tendo um caso com o farmacêutico.
Chegou a época do desfile anual da Ku Klux Klan em torno da
praça principal. Eles sempre escolhiam um sábado de verão,
quando a cidade estava cheia de fazendeiros e pecuaristas.
Vestidos com túnicas brancas, chapéus cônicos e máscaras com
buracos para os olhos, eles desfilavam para lembrar os cidadãos
de sua dignidade e poder, liderados pela possante, mas anônima,
figura do Grande Kleage. A calçada ficava cheia de gente que
especulava sobre a identidade dos desfilantes e cochichava
sobre seus poderes misteriosos.
Então veio saltitando de uma viela um pequeno cão branco com
manchas pretas. Ora, assim como conhecia todo mundo na cidade,
o pessoal de Broken Bow também conhecia os cachorros, pelo
menos os mais proeminentes. Nosso pastor alemão Hidda e o
retriever de Art Melville eram personagens famosos.
O cão manchado correu alegremente para o Grande Kleage e saltou
nas suas pernas, clamando por uma festinha na cabeça daquela
mão amada. "É o Rascal", começou o rumor, "aquele é o Rascal,
o cachorro de Doc Jensen". Enquanto isso, o majestoso Grande
Kleage tentava afastar com as pernas, enredadas na túnica
longa, aquele que era obviamente seu cão: "Pra casa, Rascal,
pra casa!".
O rumor avançou mais rápido pela calçado do que a procissão.
As pessoas não cochichavam, elas falavam alto para deixar
claro que sabiam. Cotovelos cutucavam os vizinhos, um riso
abafado corria pela calçada como folhas que farfalham com
uma rajada de vento. Então, o filho de Doc Jensen apareceu
e chamou o cachorro: "Aqui, Rascal! Aqui, Rascal".
Isso rompeu a tensão. Alguém rompeu o chamado. "Aqui, Rascal!".
Foi quando o riso reprimido se transformou em gargalhada e
uma grande ventania de riso varreu a praça. Doc Jensen parou
de chutar seu cão e retomou sua marcha solene, mas os espectadores
não deram bola: "Aqui, Rascal! Aqui, Rascal!".
Esse foi o fim da Ku Kulx Klan em Broken Bow. Doc Jensen
era um veterinário passável de animais grandes, e manteve
sua clientela de fazendeiros. Talvez gostassem de chama-lo
para depois ter o que conversar com os vizinhos, mas poucos
o provocavam. De vez em quando um garoto espertinho via Doc
Jensen passar e gritava "Aqui, Rascal". E, desde então, o
cachorrinho branco de manchas pretas ficou preso em casa.
Yale Huffman, Denver, Colorado
Um
Natal em família
Meu pai contou-me esta história. Ela aconteceu no
começo dos anos 20, em Seattle, antes de meu nascimento. Ele
era o mais velho de seis irmãos e uma irmã, alguns dos quais
haviam saído de casa.
As finanças da família estavam péssimas. O negócio de meu
pai fora à falência, quase não havia empregos e o país estava
perto de uma depressão. Naquele ano, tínhamos uma árvore de
Natal, mas nada de presentes. Simplesmente não podíamos comprá-los.
Na véspera do Natal, fomos dormir deprimidos.
Entretanto, quando acordamos na manhã do Natal, havia um monte
inacreditável de presentes sob a árvore. Tentamos nos controlar
no café-da-manhã, mas foi a refeição mais rápida de nossas
vidas.
Então a diversão começou. Minha mãe foi a primeira. Ficamos
em volta dela, na expectativa, e quando ela abriu seu pacote
vimos que ganhara um velho xale que ela havia 'posto em lugar
errado' vários meses antes. Meu pai ganhou um machado velho
com o cabo quebrado. Minha irmã ganhou seus velhos chinelos.
Um dos meninos ganhou uma calça remendada e amassada. Eu ganhei
um chapéu, o mesmo que achava que havia deixado num restaurante,
um mês antes.
Cada coisa velha trouxe uma nova surpresa. Não demorou para
que todos estivéssemos rindo tanto que mal conseguíamos abrir
os pacotes. Mas de onde viera toda aquela generosidade? De
meu irmão Morris. Durante meses, ele escondera coisas velhas,
das quais sabia que não daríamos falta. Então, na véspera
do Natal, depois que todos foram para a cama, ele embrulhara
em silêncio os presentes e os pusera sob a árvore.
Foi um dos melhores Natais que tivemos.
Don Graves, Anchorage, Alasca
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