"Time"
por Marco Antonio Bart
Blog
27/08/2007

Pode-se pensar que (a passagem d’) o tempo afeta o amor. Será? Não seria o “amor” uma abstração confinada no mundo das idéias de Platão, e esse jogo-de-empurra que chamamos de”relacionamentos”, sua sombra aqui na caverna que chamamos de mundo real? Intocado, idealizado, o amor não muda nem com a passagem do tempo. Mas o que nós fazemos dele (d’o amor), ah, isso sim é afetado com o acumular dos dias. Quem muda somos nós, e não o amor. Não ponham a culpa da nossa eventual loucura no amor.

A tese acima é explicada de maneira bem menos canhestra em "Time", a mais recente das surpresas legadas pelo cineasta Kim Ki-duk. Mais recente por aqui; depois, o coreano já lançou mais um longa, "Breath". Apesar do título, menos que um filme sobre o tempo, o longa é uma reflexão sobre a intangibilidade do amor verdadeiro - seu caráter fugidio, o qual nos recusamos a admitir. Impossível de ser aprisionado, ao menos na forma idealizada que temos em nossas mentes. Não queremos que o amor mude, mas tememos que o inevitável passar do tempo o modifique. O que fazer então? Mudamos nós mesmos, para que o amor permaneça o mesmo. Só que ao mudarmos, muda também o amor…

Vamos ver se a trama do filme esclarece as coisas. See-hee (Ji-Yeon Park) sofre de ciúme terminal de seu namorado, Ji-Woo (Jung-woo Ha). Depois de dois anos de namoro, ela está literalmente perdendo a razão, consumida pela idéia de que seu amado vai se cansar dela - de seu rosto, seu corpo - e vai trocá-la por outra(s). (Algo que nunca passou pela cabeça do cara, apesar de seu compreensível mal-estar com as doideiras da jovem.) Um belo dia See-hee desaparece sem deixar vestígios, o que deixa Ji-Woo transtornado. Mas o espectador sabe que a moça se enfurnou numa clínica de cirurgia plástica, com o intuito de mudar completamente sua aparência. Ainda apaixonada pelo inconsolável Ji-Woo, a “nova” See-hee se reaproxima do rapaz. O romance (re)engata, mas só até o ponto em que as neuroses do passado surgem novamente, encarnadas em um novo rosto.

Essa curiosa parábola sobre amor e ciúme oferece várias camadas de interpretação. Há quem tenha enxergado no filme uma reflexão sobre a fragmentação da identidade no mundo contemporâneo. Outro subtexto possível (esse bem mais específico) é a fixação dos sul-coreanos com a cirurgia plástica. Papo furado. O que se vê na tela são questões universais, tratadas de um jeito absolutamente particular. É fascinante tentar determinar, no comportamento do casal de protagonistas, os limites entre paixão e patologia. Igualmente interessante é a capacidade do diretor de narrar uma história que encontra ressonância em qualquer um que já tenha sentido ciúme e insegurança – mesmo dentro de premissas históricas e geográficas francamente hiperrealistas, esbarrando na ficção científica.

"Time" poderia ser apenas o jeitinho todo particular de Kim Ki-duk de fazer uma comédia romântica. Mas claro, quem viu os filmes anteriores do coreano (conhecido aqui por Primavera, verão, outono, inverno… e primavera e Casa vazia) já irá ao cinema desenganado. A maior diferença em relação aos filmes anteriores é o uso bem mais extenso dos diálogos, em oposição aos longos silêncios de antes. Mas também há humor, em quantidade bem maior do que em seus outros trabalhos. E em comparação com os outros filmes, existe aqui ao menos uma tentativa de trama mais concisa e “acompanhável”. Só não tente exigir do roteiro o cartesianismo hollywoodiano clássico, ou sairá arrependido. Lidando com sentimentos tão fortes e, em última instância, contraditórios, o filme nem sempre prima pela clareza - como se, de modo impressionista, víssemos a realidade pelos turvos olhos de See-hee. Quem procura lógica no comportamento de um casal louco de amor não vai embarcar na proposta, definitivamente. Por outro lado, os admiradores do coreano sabem que tatibitate não é com ele.

Apesar da “descoberta” do poder dos diálogos, Ki-duk ainda prefere enunciar seu discurso sem usar (muitas) palavras. Usa para tanto sua habilidade de encenador, compondo cenas belíssimas (como as várias seqüências na ilha das esculturas) e cadenciando bem as elipses temporais e os tempos mortos. Com seus ditos e não-ditos, suas confusões de identidade duplas e o retrato de uma paixão que não sabe se é doença ou sentimento, "Time" inscreve-se num círculo restrito de belos – e melancólicos – filmes românticos (sim, por que não?). Vêm à mente títulos como A noite, Um corpo que cai e O ano passado em Marienbad. Como nesses clássicos, em "Time" os protagonistas tentam recriar o amor de ontem, e descobrem que ele só se repete como farsa. Ou sobrevive apenas como souvenir: uma pose em uma foto antiga, refeita obsessivamente, numa tentativa inútil de aprisionamento.