"Santiago"
por
Ricardo Manini
Blog
26/04/2007
No Brasil, na maior parte das vezes, o senso comum urge em classificar documentários como filmes de segunda linha. O grande público quer só a ficção, na melhor das hipóteses. Na pior, opta por documentários rasos e panfletários, capaz de anunciar em poucas palavras todas as certezas sobre fatos cujos quais nós, meros mortais, temos tantas dúvidas. Michael Moore é um caso assim. "/Santiago/", filmado por João Moreira Salles, o oposto.
"Santiago" estreou na noite de abertura do “É Tudo Verdade”,
festival de documentários criado por Amir Labaki, que, a cada
abril, mostra que o gênero tem vida e força próprias. Demorou
catorze anos para ser feito. Em 1992, João Moreira Salles pretendeu
fazer um filme sobre o mordomo de sua família, proprietária
do Unibanco e parte integrante da elite brasileira. Filmou seu
personagem, mas não conseguiu completar o trabalho. No ano passado,
junto de Lívia Serpa e Eduardo Escorel, montador de "Terra em
Transe" e "Cabra Marcado Para Morrer", reviu, discutiu e entendeu
aquele material bruto. O filme, enfim, foi feito.
Salles tinha trinta anos quando fez as primeiras imagens. Agora, com quarenta e quatro, o mundo é, para ele, diferente. Não se trata apenas de suas idéias sobre forma e estética, sobre direção, sobre escolhas técnicas, embora tudo isso transpareça e seja notável. Hoje, ele se define como um cético. Como tal, possui poucas certezas, muitas dúvidas e inevitáveis sentimentos de mudança. Santiago, o mordomo, já se foi. Seus pais, também. Sua alma já sentiu a implacabilidade do tempo e a noção da morte não é apenas mais um mero dado intelectual.
Na mesma noite em que disse tudo isso, ele também afirmou nunca ter pensado que pudesse discutir este filme com um público maior do que a sua própria família. Foi a primeira vez em que falou sobre o trabalho para uma platéia. Embora os três personagens da história – o próprio diretor, o mordomo e a casa em que ambos conviveram, na Gávea – componham um universo particular, as questões colocadas escapam pelas frestas daquele mundo e se impõe na tela. Salles sabe disso, mas, inteligente que é, prefere que o público descubra por conta própria toda a profundidade com a qual lida.
A diferença temporal entre a feitura das primeiras imagens e a conclusão do filme afastou de "/Santiago/" uma marca negativa de documento cuja forma prende e enquadra o personagem. Em 1992, o diretor procurou orientar seu mordomo sobre como aparecer na tela. Fez diversos takes para melhorar cenas nas quais Santiago reza, discorre sobre si próprio, conta a sua vida e a de personagens da nobreza, de vários reinos e países, sobre os quais escrevia. Quis impor certa ficção à realidade, forçar situações que não existiram, ao menos naturalmente. Foi sabotado, ainda que de modo inconsciente, pelo próprio mordomo, que mostra irritação e deixa transparecer o desconforto. Era impossível que fosse diferente.
No filme que vem a público, Salles critica o trabalho inicial
a todo instante. Com embasamento, propõe uma revisão que não
apenas exponha seus erros, mas que também contemple sua evolução
como cineasta e que permita comentários sobre a sua própria
existência. Estes não aparecem de modo direto, transparente, claro.
Nas imagens e nas falas, porém, surgem como a perguntar se as
mudanças pessoais são marcas históricas de seu próprio tempo.
No lugar da ambição dos trinta, a potente sensação da inevitabilidade
dos acontecimentos. Em vez de todos os sonhos, a memória. É
pessoal, corajoso, e atinge em cheio o cerne da questão. "Santiago"
trata, talvez principalmente, do gradual desaparecimento de
cada um.
Para os antigos gregos, a idéia de morte não se atém ao plano físico, mas sim ao esquecimento. Lembrar é preservar a vida, mantê-la. Na medida em que o processo criativo se expande, a morte não obscurece a existência. De modo brutal, porém, o cotidiano, torna a memória incapaz de todas as lembranças. O passar do tempo enterra a quase todos. A fragilidade e angústia da descoberta de que somos um, uma vez só, pesa, transforma, nos coloca frente a frente com a maior dúvida de todas.
No quarto de Santiago, pilhas e pilhas de páginas escritas por ele tratavam de personagens da nobreza de várias épocas, reinos e repúblicas. Era a sua forma de preservação de existências, um esforço gigantesco de quem vivia sozinho, mas permeado por idéias e vidas de tantos. Agora, com o filme, sua pessoa é discutida, dimensionada, por cada expectador, a luz de suas experiências. É sua segunda vida. Ele ilumina a nossa primeira.
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