"Ray"
por Marcelo Costa
Fotos - Divulgação

maccosta@hotmail.com
04/02/2005

Ray Charles era um gênio. Ponto. Filmes que tentam retratar a vida de gênios quase sempre são tiros saindo pela culatra. Porém, Ray não foi dirigido por um cara qualquer. Taylor Hackford traz, em seu currículo, outros dois grandes "rock movies": o imperdível La Bamba (sobre Richie Vallens) e o matador Hail! Hail! Rock'n'Roll (sobre Chuck Berry). Só faltava mesmo um cara fodaço para encarnar Ray Charles. E Jamie Foxx simplesmente estraçalha em sua atuação. Ray é uma aula de filmagem de música.

No entanto, musicais não costumam se transformar em grandes bilheterias em Hollywood, tanto que Hackford pastou 15 anos atrás de uma produtora que assumisse os custos (e os riscos) da produção. Outra "vantagem" de Ray é ter sido lançado pouco tempo depois do falecimento do gênio, o que, em termos de marketing, funciona para colocar o produto na mira de pessoas que, em outras circunstâncias, iriam preferir ver qualquer outra coisa, menos a história de uma lenda da música. Ray Charles faleceu em 10 de junho de 2004, pouco após o término das filmagens.

Assim, mais do que retratar a história de uma lenda da música, Ray é a história da vida de um homem: seus problemas, suas frustrações, suas vitórias, suas lutas. Quem não gosta de música (bom sujeito não é), talvez, não entenda a importância das inovações de Ray Charles na história da música. O fato de ele ser cego (desde os sete anos) influenciou na maneira que ele encontrou para captar os sons do mundo, e reproduzi-los, não como um chamariz marketeiro. Mesmo porque ser negro e cego nos anos 60 não facilitava em nada a vida de nenhum homem.

Quem gosta de música vai gostar de Ray. Porém, as pessoas que escrevem nesse site (e as que lêem, espero) não apenas gostam de música. Nós a chamamos de "meu amor" e "meu docinho" (e de gostosa e vagabunda, quando necessário). Para nós, Ray não é um simples filme. É a história da música pop sendo contada pelo ponto de vista (ops) de um dos maiores músicos de todos os tempos: Ray Charles (palmas).

Ray relembra desde a infância de Ray Charles, passando por sua descoberta do piano, pela morte de seu irmão, por sua cegueira até chegar ao início de sua carreira. Jamie Foxx arrepia em cada aparição. Saber que ele usou olhos protéticos - que realmente o deixavam cego quando interpretava - durante as 14 horas diárias de filmagens e que realmente toca o piano em todas as cenas apenas nos faz admirar ainda mais sua atuação. É, literalmente, um show. Foxx está impecável.

A história também é bem contada, em um roteiro que preferiu se ater a quatro grandes tópicos da vida de Ray Charles: a morte do irmão; sua música, seu vício em heroína e suas mulheres. A morte do irmão é trazida a tela de forma sutil, em curtos flashbacks que demonstram o quanto perder o irmão mais novo - afogado em uma bacia sob o olhar de Ray - pesou nos ombros do homem Ray Charles.

O vício em heroína toma grande parte da história, assim como suas conquistas amorosas. Ray Charles tinha uma esposa que ficava em casa, Della Bea Robinson (excelente atuação de Kerry Washington), e outra que o acompanhava nas turnês, Regina King (a também excelente Margie Hendricks). E algumas outras mulheres. Mas, o mais importante dessa história toda é, one, two, three, four: a música.

Ray Charles era tão bom, mas tão bom, mas tão bom, que podia tocar qualquer ritmo, fazer uma imitação de qualquer cantor, tocar qualquer música sem precisar ensaiar, só tendo ouvido a música uma vez. Praticamente 95% de suas canções (principalmente na primeira fase, na Atlantic Records) foi gravada em apenas um take. Só que a facilidade de imitar qualquer um não trazia ao músico a tão sonhada personalidade musical. Pressionado por seus produtores, e pela esposa, Ray Charles saiu em busca de seu próprio som, e o resultado devastador foi uma mistura insana do gospel (de Deus) com R&B (do demônio), que causou furor na época.

Quem vê essa molecada tocando rock/hardcore e se achando "radical" por fazer um som "alto, barulhento e rápido" (e extremamente conservador, diga-se de passagem) pode encontrar um paralelo perfeito em Ray. Em uma das cenas, logo após bater no liquidificador o gospel, o blues e o rock, Ray Charles está se apresentando em um boteco lotado. Um casal grita para o músico que aquilo era um sacrilégio, que ele estava tocando a serviço do demônio. Assim que o casal sai do ambiente, Ray dispara: "Bem, se eu sou pecador, vocês também são. Quem for pecador que levante as mãos!". O público responde com as mãos ao alto e gritando. E o som volta a sacudir o "night club". Ray Charles inovou a música pop. Quando estava de saco cheio de tocar o mesmo tipo de som, incorporou o rock, depois o folk, mesmo indo contra os ideais de sua gravadora (que queria que ele continuasse no mesmo estilo, para não arriscar perder seus milhões de fãs). Ray não fazia o que o público, ou a crítica, ou a gravadora, ou quem quer que seja esperava dele: ele fazia o que achava que devia fazer. Tocar alto, fazer cara feia e expor um corpo banhado por tatuagens não significa nada. Tocar diferente sim.

Ray recebeu 6 indicações ao Oscar, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (Jamie Foxx), Melhor Figurino, Melhor Edição e Melhor Som. Foxx levou para casa o Globo de Ouro de Melhor Ator em Musical/Comédia. Ganhar o Oscar não é nem uma questão de justiça ou mérito para Jamie Foxx. É obviedade. A estatuazinha dourada já saiu do forno com o nome do cara. E poucas vezes a premiação por uma atuação será tão merecida. Com Ray, Ray Charles recebe uma justíssima homenagem. O filme, no final, não acaba revelando a alma do homem por trás daqueles óculos escuros, mas revela a história de um músico que martelava um piano como ninguém.

Site Oficial do filme