"Orgulho & Preconceito"
por
Marcelo Costa maccosta@hotmail.com
22/02/2006
A escritora Jane Austen é uma verdadeira celebridade na Inglaterra,
sendo considerada a segunda figura mais importante da literatura
inglesa, ficando atrás apenas de William Shakespeare. Com apenas
seis livros na bagagem (dois deles lançados postumamente, após
sua morte prematura, aos 42 anos), Austen imprimiu personalidade
aos seus escritos, derramando sobre páginas e páginas romances
quase impossíveis que terminavam com finais felizes, mas que,
sobretudo, analisam de forma direta - e sem rodeios - as relações
pessoais da sociedade em que vivia. "Jane Austen é a última
representante da tradição clássica (grega e cristã) das virtudes",
definiu o filósofo Aladair MacIntyre. A observação é interessante:
Austen conseguia soar tradicional em seus escritos e pensamentos
muito embora preenchesse suas histórias com heroínas à frente
de seu tempo, que não se deixavam comprar por dinheiro ou por
casamentos de conchavos.
Das principais obras de Jane, chegaram às telonas Razão e
Sensibilidade, com direção de Ang Lee (Brokeback Mountain)
e com Emma Thompson e Hugh Grant nos papéis principais, Persuasão
e, ainda, Emma, adaptado numa versão pop e adolescente
como As Patricinhas de Beverly Hills, com Alicia Silverstone
e Brittany Murphy. Orgulho & Preconceito foi o segundo
livro de Austen, já virou série de TV na Inglaterra,
ganhou quatro adaptações cinematográficas, e chega aos
Brasil destacando o belo nariz de Keira Knightley (dona, também,
do "sorriso não sorriso" mais fofo do cinema atual), que concorre
ao Oscar como Melhor Atriz em um filme que não convence em uma
primeira impressão, mas necessita ser descorberto.
A rigor, as histórias de Austen retratam a aristocracia britânica
do século XVIII (importante frisar: Pride & Prejudice
foi lançado em 1813). Isso quer dizer que há muita pompa nos
cenários, nos figurinos e no texto, tudo para identificar uma
sociedade preconceituosa, cujos dotes financeiros eram muito
mais importantes que o desejo pessoal, principalmente o feminino.
Entre as principais atividades da sociedade, grandes festas,
visitas, passeios e piqueniques. É neste contexto que a espevitada
Elizabeth Bennet (Keira) conhece Darcy (Matthew Macfadyen) em
uma festa. O casal se estranha e termina por trocar algumas
farpas deliciosamente acalantadas pela finesse do vocabulário
clássico. Darcy é um homem rico, arrogante e com cara de poucos
amigos. Elizabeth é decidida, inteligente, mas sua família está
à beira da falência.
Neste ponto surge a presença de um personagem extremamente importante
na história: Sra. Bennet (Brenda Blethyn), a mãe de Elizabeth
e de suas outras quatro irmãs. A Sra. Bennet quer porque quer
casar as suas cinco filhas com bons partidos, que além de trazerem
respeito ao nome Bennet, também se transformem em um bom futuro
para as meninas. Ela não mede esforços para isso, embora termine
sempre causando algum estrago, incômodo ou motivo de chacota
para as outras famílias. A atriz Brenda Blethyn irrita e diverte
com seu personagem. O cerne do filme é exibido neste contexto:
os personagens femininos de Jane Austen são fortes e orgulhosos,
com personalidades bem à frente de suas épocas (é interessante
lembrar que mesmo a autora lançou seus livros anonimamente,
já que não era de bom tom uma mulher se lançar na carreira de
escritora) e que lutam o quanto podem para se manterem dignas
e honradas.
É exatamente neste ponto que a história já não convence. Em
1787 era possível discutir honra e dignidade, mas hoje as duas
palavras estão tão fora de moda que seria necessário conferir
se elas ainda constam de novos dicionários. O feminismo conseguiu
um bom espaço na sociedade, embora ainda necessite de mais conquistas.
O casamento por dote ainda existe, em pequenos núcleos aristocráticos,
mas a liberdade de escolha se tornou muito mais comum nos dias
de hoje, embora dinheiro ainda seja um assunto tabu nos relacionamentos
modernos. Casamento por obrigação e golpes do baú são tão deja
vus quanto carruagens, vestidos longos e relógios de bolso,
ou melhor, relógios, já que todos agora consultam as horas no
celular. O que Orgulho & Preconceito traz de novo para
a sociedade moderna? A segunda impressão, caro leitor.
Logo no início do filme, Elizabeth aparece lendo um livro chamado First Impressions. Trata-se do título original dado por Jane Austen a Orgulho & Preconceito, que posteriormente mudou de nome. Retirando de seu segundo título o caráter ambivalente de luta de classes e valores, a história se torna muito mais interessante para o público moderno. Orgulho & Preconceito é, na verdade, a história de um casal que se odeia à primeira vista, mas acaba por descobrir que este ódio é o disfarce do amor. Com sublime leveza, Austen questiona o velho ditado que defende que "a primeira impressão é que fica". Elizabeth odeia Darcy com toda a força de seu nariz empinado. Darcy odeia Elizabeth com toda aspereza de seu inglês lento e carregado. Os dois personagens travam uma guerra pessoal, cada um em seu mundo de sonhos e fantasias, revelando por fim que a personalidade de ambos é mais próxima do que eles mesmos pudessem supor. Há preconceito em Darcy, há orgulho em Elizabeth, e tudo isso surge de uma primeira impressão, que logo será absorvida pela convivência, e pelo amor. Orgulho & Preconceito é a vitória da segunda impressão.
Transposta para os tempos modernos, o pensamento de Austen merece respeito, admiração e profunda análise. Como observou sabiamente o colunista João Pereira Coutinho, do UOL, "o amor não sobrevive aos ritmos da nossa modernidade. O amor exige tempo e conhecimento. Exige, no fundo, o tempo e o conhecimento que a vida moderna de hoje não permite e, mais, não tolera: se podemos satisfazer todas as nossas necessidades materiais com uma ida ao shopping do bairro, exigimos dos outros igual eficácia. Os seres humanos são apenas produtos que usamos (ou recusamos) de acordo com as mais básicas conveniências. Procuramos continuamente e desesperamos continuamente porque confundimos o efêmero com o permanente, o material com o espiritual. A nossa frustração em encontrar o "amor verdadeiro" é apenas um clichê que esconde o essencial: o amor não é um produto que se compra para combinar com os móveis da sala. É uma arte que se cultiva. Profundamente. Demoradamente."
Desta forma, há uma certa dualidade crítica que abriga um filme
como Orgulho & Preconceito: como obra cinematográfica,
o filme de Joe Wright é certinho, bonito (principalmente nos
cenários e nos figurinos) e resvala na pieguice quando se entende
que estamos diante de uma questão de luta de classes e valores.
Visto desta forma, Orgulho & Preconceito não convence,
absorto que está em abrigar suas relações em um período histórico
que tem pouca semelhança com o mundo moderno. Talvez
sirva de curiosidade para se saber como funcionavam as coisas
antigamente, como se estivéssemos indo a um museu. Porém, vertendo
a questão para o campo das relações humanas vistas através do
prisma das primeiras impressões, Orgulho & Preconceito
se torna uma ótima análise dos dias atuais, onde se sabe praticamente
tudo sobre uma pessoa com cinco toques no mouse, mas
não se conhece verdadeiramente sua alma, seu jeito de acordar,
e quanto açúcar ela gosta no café (se ela gostar de café). São
dois prismas diferentes que permitem uma adaptação: não se deixe
levar pela primeira impressão da história. Jane Austen foi um
pouco mais profunda do que o título Orguilho & Preconceito permite
vislumbrar. Como escreve João Pereira Coutinho, "primeiras impressões
todos temos e perdemos. Mas o amor só é verdadeiro quando acontece
à segunda vista'.
Site
Oficial do filme
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