"Nação Fast Food"
por
André Azenha Blog
15/01/2008
“Todo ser humano come um pouco de cocô durante a vida”, diz o personagem de Bruce Willis em um dos vários diálogos interessantes de "Nação Fast Food" (lançado oficialmente em 2006), filme dirigido pelo competente e versátil Richard Linklater, de obras ótimas e que abordam assuntos completamente diferentes. Mas a essência continua: o cineasta dá grande importância aos diálogos em suas produções, e se antes aproveitava longas conversas para bradar sobre o amor ("Antes do Pôr do Sol" e "Antes do Amanhecer") ou o showbiz ("Escola de Rock"), aqui o alvo são as cadeias de fast food, em especial aquela tão conhecida por todos nós cujo garoto propaganda é um palhaço meio abobalhado.
A temática é a mesma de "Super Size Me – A Dieta do Palhaço", mas se no documentário do diretor Morgan Spurlock havia um tom de comédia para relatar os males feitos à saúde pelos sanduíches gigantes, em "Nação Fast Food", Linklater opta por criar um drama sobre alienação, trabalho escravo, e claro, toda a sujeira – literalmente – que rola por trás das cadeias vendedoras de sanduíches, desde a produção, o marketing para enfiá-los goela abaixo da população, e os mecanismos que fazem essa indústria funcionar – imigrantes mexicanos ilegais que buscam ganhar mais do que na terra natal, empresários que tentam apagar um escândalo que pode sujar o nome da empresa (suja por si só), balconistas que ganham uma miséria, odeiam trabalhar no local e descontam a frustração cuspindo na carne servida ao público e por aí afora. Uma máquina em busca somente de lucro.
A trama, baseada no best-seller de não-ficção de Eric Schlosser (também divide o roteiro com o diretor), publicado em 2001, mira a rede fictícia Mickey’s (alteração do nome McDonald’s, que nos EUA é apelidado de “Mickey D”). O maior sucesso da rede no momento é o tal sanduba “Grandão”, porém algo inesperado acontece: uma pesquisa independente revela a presença de estrume na carne do produto. O presidente da companhia então destaca Don Anderson (Greg Kinnear, de "Pequena Miss Sunshine" e "Melhor É Impossível"), um diretor de marketing de sucesso, para investigar o caso e a possível origem da bosta presente no sanduíche. Ele parte então para Cody, no Colorado, onde a carne do "Grandão" é processada.
Linklater inicia sua obra a partir da premissa de que “fast food” não envolve somente a indústria alimentícia. O termo se adequa a qualquer situação que envolva pessoas que funcionem como robôs. Recepcionistas de hotel, caixas de lojas, todos aqueles seres que vomitam frases prontas e se tornam incapazes de resolver algum problema que fuja às condições rotineiras de suas vidas sem graça. Além disso, aproveita para fazer um retrato completamente desastroso dos Estados Unidos, um país que critica a imigração ilegal, mas necessita dela (ooutro filme, "Um Dia Sem Mexicanos", trata do assunto muito bem), pois é ela quem gera toda a mão de obra barata de suas mega-corporações e fazem o país funcionar. Ou ainda alguma empresa que atua corruptamente, mas se safa por ter diretores ligados a políticos corruptos.
Para retratar essa situação lamentável na “terra das oportunidades”, o diretor trata de esculpir com carinho cada personagem protagonista, desde o interpretado por Greg Kinnear, um sujeito bom pai, tentando fugir à corrupção que o cerca, passando pelas atrizes Ana Claudia Talancón e Catalina Sandino Moreno (de "Maria Cheia de Graça", em belíssima atuação), que percorrem o longo caminho para ultrapassar a barreira entre os países e precisam se sujeitar aos maus tratos da empresa que fabrica as carnes, até Ashley Johnson (intérprete da filha de Mel Gibson em "Do que as Mulheres Gostam") como uma funcionária do Mickey’s que resolve buscar um novo horizonte para sua vida.
Mas é nas pontas de três artistas conhecidos da platéia que os diálogos pegam fogo. Bruce Willis, autor da frase sobre o cocô, veste a carapuça de canastrão que defende o modo como os sanduíches são fabricados e diz, de forma hipócrita, admirar os mexicanos que ultrapassam a fronteira mirando uma vida melhor, tirando toda a culpa do “sistema”. “As pessoas sabem o que é melhor pra elas”, diz ele. A cantora teen Avril Lavigne faz parte de uma turma de estudantes imbuídos de mudar o mundo. Num dos debates entre a “turma”, um dos garotos vocifera: “Vocês querem mudar as coisas enviando somente uma carta para o governo?!”, questiona ele, lembrando que a Mickey”s tem pessoas influentes entre os governantes (algo que acontece na vida real, como já foi mostrado em "Super Size Me"). Ele continua: “Devemos agir, os caras do Greenpeace é que estão certos!”, emenda.
E para completar, um velho conhecido do diretor, Ethan Hawke - que trabalhou com Linklater em "Antes do Amanhecer" (1995), "Newton Boys - Os Irmãos Fora-da-lei" (1998), "Tape" (2001), "Waking Life" (2001) e "Antes do Pôr-do-Sol" (2004) - , critica a alienação da sociedade americana em papo com a sobrinha (Ashley Johnson) e a irmã (Patricia Arquette), incentivando a parente mais nova a abandonar o trabalho na cadeia fast food e tentar fazer algo que goste, para no futuro não se tornar mais uma pessoa amargurada e frustrada, como milhões que habitam aquele país.
"Nação Fast Food" encerra de forma magnífica, mostrando que todo esse lixo é um ciclo vicioso e nos faz refletir, afinal, somos nós que sustentamos as corporações, defendidas pelos governantes que elegemos, e que tratam de manter o povo alienado e comendo merda – dando razão à frase dita por Bruce Willis. No final a moral da história remete ao biscoito Tostines: pessoas alienadas comem merda por serem alienadas? Ou são alienadas por comerem merda? Um filme obrigatório.
Leia também:
"Antes
do Por do Sol", por Marcelo Costa
"Um Dia Sem Mexicanos", por Marcelo Costa
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