"Mentiras Sinceras"
por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
04/03/2006

A simplicidade é algo demasiadamente difícil de ser alcançada, por mais antagônico que possa parecer. Em um mundo sustentado pela concorrência, todos querem sempre apresentar um "algo a mais" que o diferencie do resto e, nisto, acabam complicando pelo simples prazer de complicar. O ator e roteirista Julian Fellowes (de Assassinato em Gosford Park) é uma exceção à regra. Em sua estréia cinematográfica, Mentiras Sinceras (Separate Lies), Fellowes dirige com precisão ao contar uma história carregada de dilemas morais. Conquista pela simplicidade que confere ao seu filme uma uniformidade incrível.

É tudo tão simples em Mentiras Sinceras que o espectador tende a achar que o diretor está menosprezando seu público, principalmente no trecho inicial do filme. No começo da projeção, Fellowes é tão dedicado a retratar a vida comum de seu casal principal que chega a parecer que estamos diante de uma câmera escondida, tamanha a naturalidade dos acontecimentos, do ambiente e dos diálogos do advogado James (Tom Wilkinson) com sua mulher, Anne Manning (Emily Watson). Tudo segue com uma simplicidade incrível - que não desperdiça diálogos - até que um acidente altere a rotina do casal, jogando ao chão todo uma vida, como se um castelo de cartas estivesse desmoronando.

O núcleo da história é simples. Anne Manning faz uma festa na casa de campo do casal em uma bucólica região. James, o marido, é obrigado a se ausentar por motivos profissionais. E no mesmo horário da festa, um homem é atropelado e, por conseqüência do acidente, morre no hospital dias depois. Entram em cena dois personagens: o ricaço William Bule (em constrangedora e irreconhecível atuação de Rupert Everett) e o inspetor Marshall (David Harewood). O primeiro é peça chave na história de Fellowes, cujo tema traição é encarado de frente, sem maldade ou vingança, e chega a comover. O segundo personagem está ali apenas para criar tensão e aumentar o dilema moral do triângulo amoroso que move o filme.

Dois pontos cruciais são jogados no colo do espectador pelo diretor: moralidade e amor. James segue a linha tradicional daqueles que acusam e clamam por justiça desde que a justiça não o condene, ou não condene alguém próximo a ele. Esse estudo de moralidade é fascinante em Mentiras Sinceras. Em uma cena, o advogado defende, perante a mulher, que o crime precisa ser resolvido, custe o que custar. Na cena seguinte, discutindo em uma cozinha enquanto Anne prepara o almoço (com uma sensacional construção de ambiente elevada pela tocante atuação de Emily Watson), James altera todo o seu discurso, clamando pelo silêncio da mulher. A cena é forte, precisa e impecável.

Nas mãos de Fellowes até o amor parece simples. Não que seja simples, mas o diretor consegue exibir com extrema delicadeza as nuances de um relacionamento perfeito em sua imperfeição. Chega a incomodar o papel de marido desenvolvido por Tom Wilkinson. Incomoda, principalmente, porque somos - todos - orgulhosos e pouco suscetíveis ao perdão. Desde seu primeiro "erro", Anne é perdoada porque James a ama de uma forma que ele talvez não saiba exprimir. "Você nunca irá cansar de me testar, James, e eu sempre vou cometer erros", explica a mulher em determinado ponto da trama. Mesmo assim, alguém já escreveu que erros em nome do amor sempre vão ser perdoados. Amém, afinal vivemos errando por tolice, medo ou gosto.

Como diretor, Julian Fellowes brilha em seu primeiro filme. Baseado no romance A Way Through the Wood, de Nigel Balchin, escrito em 1951, Mentiras Sinceras é simples e intenso destacando um roteiro coeso, ótimos diálogos, uma bela fotografia e boas atuações de Tom Wilkinson (o médico de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças), Emily Watson e, ainda, Linda Bassett, como a empregada Maggie. Agarrado aos detalhes do subtexto da trama de natureza simples, Mentiras Sinceras se torna complexo ao analisar as idiossincrasias que movem cada pessoa. É o velho ditado: você nunca pode ter certeza do que fazer em determinada situação sem ter passado por ela. A moralidade e, principalmente, o amor podem alterar qualquer decisão. E mentiras sinceras podem se transformar em quase verdades.

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Site Oficial de "Mentiras Sinceras"