A Menina Santa
por Jonas Lopes
Yer Blues
30//11/2005

Lucrecia Martel é a mais criativa e autoral cineasta da safra recente do cinema argentino. Quem sabe o quanto esta safra é de boa qualidade, logo nota que se trata de uma afirmação honrosa. E procede: Lucrecia toca com sutileza ímpar em pontos delicados como sexualidade, religião e dissolução familiar, sem deixar de resvalar, de leve, na situação social da Argentina atual, talvez a grande característica dessa safra toda. Nosso cinema, por exemplo, ainda não atingiu esse equilíbrio entre a trama e a incursão panorâmica pela história - só o atinge quando trata de temas relacionados à pobreza, nunca à classe média urbana.

No primeiro trabalho de Martel, O Pântano, esse background social está presente nos detalhes, como as mulheres que querem viajar à Bolívia para comprar o material escolar dos filhos por ser mais barato. O filme mostra duas famílias em processo de desagregação. A alcoólatra Mecha, que lembra muito a inerte matriarca de O Som e a Fúria, romance de William Faulkner, sofre um acidente caseiro e passa a dedicar seus dias a ficar na cama. Não percebe que acabará como sua mãe, que passou seus últimos anos sem sair do quarto. E não presta atenção em sua filha apaixonada pela empregada índia, nem no filho desgarrado, muito menos no marido adúltero e desocupado.

A outra família do filme é a da prima de Mecha, Tali, que sente pena da parente alcoólatra. Ela se reveste de uma camada de decência. Não nota que sua família também está descendo ladeira abaixo. A aclamação de O Pântano foi imediata. Um dos que se encantaram com o filme foi Pedro Almodóvar, produtor executivo do segundo filme da diretora, A Menina Santa. A menina do título é Amália (María Alche), uma adolescente que mora no hotel de sua mãe divorciada (a excelente Mercedes Morán, a Tali de O Pântano) e recebe uma educação religiosa forte na escola. Amália gosta de decorar preces e espera o momento em que receberá de Deus a sua missão.

Essa missão chega quando acontece no hotel uma convenção de medicina. Um dos médicos, o tímido Jano (Carlos Belloso), vê Amália em uma vitrine em que várias pessoas assistem a uma exibição de teremim. Roça sua genitália na menina, que percebe e vê o homem que a assedia. Ela começa então a persegui-lo. Crê que sua missão é salvá-lo do pecado, redimi-lo. Começa um asfixiante jogo psicológico: Jano corrói-se de culpa, Amália tenta mostrar a ele que é um homem bom, apesar de tudo.

Ao mesmo tempo, Helena, a mãe de Amália, descobre que seu ex-marido vai ter gêmeos com a nova esposa, e sente a necessidade súbita de aumentar sua auto-estima. Passa a paquerar Jano, que a princípio resiste, mas aos poucos se encanta com ela, sem saber que é a mãe da menina que ele assediou. Lucrecia constrói uma situação que culmina em um momento de tensão no final, que ela preferiu deixar inconcluso. O desfecho vai deixar irritado muito telespectador.

Os personagens de Martel nunca são fáceis de decifrar. Vivem na ambigüidade, nunca é possível extrair deles o sentimento exato. Amália quer salvar Jano, mas secretamente sente desejo por ele, masturba-se escondida. Sua melhor amiga Josefina (Julieta Zylberberg) se recusa a perder a virgindade com um primo, mas permite a penetração anal. Ambas condenam a professora religiosa, que, dizem, foi vista aos beijos com um homem.

Não há moralismos por parte da diretora: todos vivem amparados por uma crosta de sexualidade e libido, mas uma sexualidade até inocente, que serve de crosta para ocultar a repressão religiosa e social. As relações são físicas, como no caso de Helena e seu irmão, que se tocam mais do que o comum e dormem na mesma cama, ou mesmo Amália e Josefina, que se beijam na boca. Não por incesto ou homossexualismo; carência mesmo. E também porque eles próprios não vêem malícia nas relações.

O melhor do filme é que nada é jogado na cara do espectador. Tudo é sutil. Tudo é sugerido. Com a esperteza de quem sabe que, muitas vezes, o não-dito é mais claro que o que óbvio.

Links:
Site Oficial do filme "A Menina Santa"