"Maria Antonieta"
por
Marcelo Costa E-mail
19/03/2007
Sofia
Coppola é uma diretora que gosta de investigar o vazio. Em seus
três filmes, "Virgens Suicidas", "Encontros e Desencontros"
e o mais recente, "Maria Antonieta", a filha do senhor Francis
foca na ausência para criar seus roteiros, e ela consegue
seu intento de forma brilhante na ótima estréia, e, principalmente,
no excelente "Encontros e Desencontros", em que a história na
tela era a história da própria diretora, mas tropeça feio em
"Maria Antonieta", um placebo de biografia que acaba por não
dizer nada sobre nada.
A rigor, "Maria Antonieta" era para ser o segundo filme de Sofia,
mas acabou atropelado por "Encontros e Desencontros", que se
mostrou menos dificultoso em sua conclusão, e acabou por levar
a diretora ao seu primeiro Oscar. Há algumas semelhanças entre
estes dois filmes, notadamente a trilha sonora muderna
e a sensação de superficialidade das relações humanas. Em um,
a personagem principal está presa em um casamento infeliz. No
outro, o casamento - em forma de barganha - é o de menos: a
própria sociedade é responsável pela infelicidade da moça.
No primeiro caso ("Encontros e Desencontros"), a história funciona
a perfeição, muito porque o casamento está ali, na frente do
nariz do espectador, e ganha contornos muito mais profundos
na relação com o personagem de Bill Murray, que serve não só
para relativizar a relação de infelicidade da personagem principal
de Sofia Coppola, como também divide com ela o peso dos relacionamentos
humanos quase desfeitos. No segundo caso, porém, faltou o segundo
eixo narrativo para justificar as atitudes do primeiro. Ao centrar
sua câmera no mundo cor-de-rosa da corte real, e ignorar o povo,
Sofia tirou do público a capacidade de entendimento, e fez questão
de ignorar (ou esqueceu) dados essenciais que ajudassem o espectador
a desenhar em sua cabeça o real (com o perdão do trocadilho)
personagem central.
Maria Antónia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena, arquiduquesa
da Áustria e rainha consorte da França de 1774 até 1789, foi
entregue (leia-se: casou) ao delfim francês Luís (futuramente
o rei Luís XVI) em 1770 quando tinha 14 anos. Este demorou sete
anos para consumar o casamento. Neste período, aos 18 anos,
assumiu a coroa francesa com a morte do rei Luis XV. O reinado
de Maria Antonieta e Luís XVI durou 15 anos, quando ambos foram
depostos no auge da Revolução Francesa (1789), e guilhotinados
quatro anos depois, em 1793. Atenção: guarde essas informações
(e procure outras), pois nenhuma delas está no filme.
Sofia fechou seu olhar sobre a personagem de Maria Antonieta,
e esse é um dos pontos questionáveis da adaptação. Ao tentar
mostrar o mundo superficial em que a rainha vivia, Sofia deixou
de situar o roteiro na história. De acordo com que a trama se
desenrola, o espectador pouco sabe sobre o que está acontecendo
fora da corte, e mesmo episódios interessantes acontecidos debaixo
da coroa, como o caso do colar de diamantes (ver
wikipedia), não são esclarecidos a contento pelo roteiro
deficiente.
Assim, conforme a trama vai se encaminhando para o seu final,
perguntas começam a saltar no colo do público: "Oras, por que
ela era tão odiada? Por que a guilhotina?". Talvez "porque
ela esbanjava muito", algo que o roteiro tenta impor a
força, e não soa plausível, afinal, todo e qualquer reinado
foi marcado por luxo e gastos (e nem por isso Dom João XI, Dom
Pedro I e outros foram parar na guilotina - e olha que o caso
destes citados seja talvez bem pior). Porque ela traiu o marido
é outra daquelas justificativas "faça-me rir", já que a devassidão
sempre caminhou lado a lado com a coroa real, onde quer que
fosse (no filme, o Rei Luís XV compra um título de nobre para
uma prostituta, que vive com ele até seus últimos dias, para
depois ser enxotada da corte; o próprio cardeal Luís Rohan tinha
fama de devasso - e isso não está no filme).
O que tudo isso acima propõe é que falta História em
"Maria Antonieta". Ao se recusar a ler a famosa biografia escrita
por Stefan Zweig - por considerá-la rigorosa demais - e optar
pelo livro de Antonia Fraser, que faz da rainha um personagem
mais humano, Sofia Coppola excluiu de sua adaptação todo um
mundo externo que precisava ser exposto para justificar a verossimilhança
da história (ou História). Fica pouco claro na película que
Maria Antonieta exercia forte influência política sobre Luís
XVI (como dizem os livros e reforça a versão de
Jean Renoir em "A Marselhesa", de 1938), a ponto de
desautorizar as reformas liberais propostas pelos ministros
do rei.
Estudiosos
contam que ela recusou as possibilidades de acordo com os moderados,
e procurou que o rei favorecesse os extremistas para inflamar
ainda mais a batalha. Tudo isso está de fora do filme. Apesar
de ser baseado em uma biografia, Sofia Coppola focou no vazio
de Maria Antonieta e esqueceu a História. Desta forma, o filme
não funciona como adaptação e nem é verossímil.
Tampouco funciona como invenção. Os franceses vairam o filme
em Cannes. Eles sabem que a História é bem diferente.
Marie Antoinette - Soundtrack, vários (Universal)
Preço em média: R$ 42
Enquanto cinema, "Maria Antonieta", filme de Sofia Coppola que
conta a história da menina austríaca que virou rainha da França,
e perdeu (literalmente) a cabeça pelo trono, é um acúmulo de
erros ornamentado por boas roupas. Enquanto música, no entanto,
a coisa toda funciona bem melhor, graças a trilha moderna que
pouca relação tem com a baixa qualidade cinematográfica da adaptação
da cineasta.
Vinte e seis faixas compõe a trilha sonora (em CD duplo) de
"Marie Antoinette", abrindo com a poderosa "Honk Kong Garden",
de Siouxsie and The Banshees, antecipada por um belíssimo arranjo
de cordas (e que no filme serve para ambientar a balada de um
baile de máscaras) e fecha com "All Cat's Are Grey", do Cure
em fase densa (retirada do álbum "Faith"). Abertura e fechamento
dão a tônica da trilha: anos oitenta no que a década teve de
melhor e pior.
Entre o melhor estão nomes como Gang of Four ("Natural's Not
In It" abre o filme de forma nervosa e empolgante), New Order
("Ceremony" encaixada em "Playsong", belíssima canção do álbum
"Disintegration", do The Cure) e os já citados Gang ou Four
e Siouxsie. Comparecem, ainda, armações de Malcolm McLaren (inventor
dos Sex Pistols) como o Bow Wow Wow e Adam and the Ants (sob
as asas do produtor nesta época) e "novidades" do quilate dos
Strokes ("What Ever Happened" encaixada de forma primorosa na
edição), Rádio Dept. (apagado em comparação com os originais
80's) e Aphex Twin, em bom número acústico ("Avril 14th").
O CD duplo ainda abriga passagens extra-pop emocionantes como
a cravista norte-americana Patricia Mabee, o pianista Dustin
O'Hallopran e a ária "Tristes Apprêts, Pâles Flambeaux", da
ópera "Castor et Pollux", de Jean Philippe Rameau. Trilhas sonoras
muitas vezes são uma bobagem, já que - via de regra - o comprador
já possui os álbuns originais dos artistas escolhidos. Neste
caso, porém, a boa seleção assinada por Kevin Shields (do My
Bloody Valentine, responsável também pela trilha de "Encontros
& Desencontros") vale uma olhadela com atenção. É melhor
que o filme, o que já diz muita coisa. E tem Gang of Four.
Leia também:
Tabela
cronológica da Revolução Francesa, por Wikipedia
Luís
XVI de França, por Wikipedia
Maria
Antonieta, por Wikipedia
Site
Oficial do filme
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