Longe do Paraíso
por
Júlia Marina
julia@areaweb.com.br
08/08/2003
O cenário é a América
dos anos 50. Temos a apresentação de uma perfeita família
de classe média alta. Cathy (Julianne Moore) encarna o modelo exemplar
de esposa, mãe e amiga, desempenhando de forma impecável
seus devidos papéis sociais. E com seu marido, o bem-sucedido empresário
Frank Whitaker (Dennis Quaid), e seus dois filhos, formam o mais belo quadro
familiar e social que aquela sociedade poderia almejar.
A imagem criada pelo casal, e principalmente
por Cathy, chega a nos incomodar. Sua fala, seu sorriso, seus menores gestos,
são minuciosamente belos. E logo sentimos uma superficialidade fatigante,
apesar dessa beleza aparente. Esta propaganda de ideal americano foi usada
com muito sucesso naquela época, engrenando rapidamente o sistema
capitalista e seu consumismo. A família Whitaker é uma verdadeira
pintura, traçada rigorosamente para encher os olhos e aguçar
os sonhos de uma sociedade.
Mas esta moldura não demoraria
a revelar seu verdadeiro quadro. O primeiro a se revelar é o marido,
que é pego em flagrante por sua esposa nos braços de um outro
homem. Seu homossexualismo é tratado como uma doença pelo
casal, e Cathy mantém seu casamento elegantemente, mas sofre sozinha,
em silêncio. E em quem confiar neste mundo de aparências, onde
o glamour e a imagem são o que importa? Bem, talvez em alguém
que esteja fora desta hipocrisia dominante. Num jardineiro, negro, numa
época em que os brancos se consideravam a raça superior.
Sim, foi no charmoso e culto jardineiro Raymond Deagan (Dennis Haysbert)
que a mulher se apoiou e quase renasceu para uma outra vida. Aí
o escândalo foi total. Era insuportável ver uma mulher branca,
ao lado de um homem negro. Frank gostar de homens, tudo bem, "é
mesmo uma doença". Mas Cathy se relacionar com um negro, seria uma
infâmia imperdoável.
Pois é, pode parecer um melodrama.
E realmente o é. Todd Haynes retorna aos anos 50 e resgata as idéias
do diretor alemão Douglas Sirk ("Imitação da Vida",
"Palavras ao Vento", "Tudo o que o Céu Permite"). Seus melodramas
eram repletos de luxo e beleza, mas o que ele fazia questão de mostrar
era o mundo da futilidade e da hipocrisia, por trás deste sonho
americano. "Longe do Paraíso" (Far from Heaven - EUA, 2002) entra
neste universo de ordem e caos.
E ninguém melhor do que o cinema
de Todd Haynes ("Veneno", "Velvet Goldmine"), repleto de seres patológicos
e personagens anti-sociais, para desmascarar os falsos ideais capitalistas.
Ele inflama seu discurso anti-moralista de uma forma delicada, no que tange
à imagem, e ao mesmo tempo brutal em seu contexto. Não tenta
justificar a moralidade (o que o tornaria moralista), mas se aprofunda
no psicológico do desviante.
A atriz Julianne Moore consegue captar
e deter de maneira excepcional toda a angústia contida da esposa,
com sua beleza impecável e com a alma destruída. Julianne,
que perdeu o Oscar de melhor atriz para Nicole Kidman ("As Horas"), mostra
que para ser a musa do diretor Todd Haynes não basta só a
beleza, mas é preciso muito talento. E os dois, ela têm de
sobra.
Para completar, ou melhor, para ampliar
o conceito de estética do filme, e gerar o paradoxo 'do que se vê'
com 'o que se é', temos a exuberante fotografia do veterano Edward
Lachman. Inspirado, também, no estilo de Douglas Sirk, Lachman reconstrói
o antigo technicolor, com a rigorosa composição de cores
e volumes, para 'pintar' o ideal de beleza. O uso das cores, que vem sendo
esquecido pelo cinema, causa efeitos intensos, e neste filme podemos sentir
as emoções que estes elementos visuais podem gerar.
"Longe do Paraíso" é
um filme que nos remete ao passado, para tratar de assuntos que, queiram
ou não, após cerca de meio século, ainda são
problemas cruciais em nossa sociedade. Ali, vemos a formação
da hipocrisia e dos preconceitos que nos perseguem, surgidas a partir da
tentativa de criação de uma imagem. Hoje, ainda temos este
conceito de felicidade, baseado no dinheiro e nas aparências, e agora
de uma forma mais manipulada, onde procuram nos dar a falsa sensação
de liberdade. O mundo ainda é o mesmo, talvez pior, e no final das
contas, vamos passar férias em Miami para esquecer os problemas...
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