"O Lenhador"
por
Marcelo Miranda
Fotos - Divulgação
miranda@areaweb.com.br
12/05/2005
Se fosse um filme de fórmulas, O Lenhador teria ao menos
dois caminhos a percorrer a partir de sua premissa. A premissa:
depois de doze anos preso, Walter tenta reconstruir a vida trabalhando
numa madeireira, longe da família e fechado em si mesmo, sem
vontade de se relacionar com qualquer outra pessoa – e ainda
tentando se manter dentro das regras da liberdade condicional.
O crime que causou sua prisão? Vale repetir as palavras do próprio
protagonista, soberbamente interpretado por Kevin Bacon: "molestei
garotinhas".
Duas palavrinhas que caem como uma bomba nos ouvidos do espectador, após mais de vinte minutos de filme. A diretora Nicole Kassel demora a liberar informações, mastigando cada cena com extremo cuidado e até certa distância dos personagens. Ela jamais julga as atitudes de Bacon, muito menos tenta justificar se ele mereceu ser preso ou solto. Simplesmente apresenta as cartas e deixa a cargo do público vislumbrá-las.
E é aqui que entram os caminhos que Kassel certamente percorreria se decidisse ceder e oferecer concessões aos espectadores, tão acostumados a tramas fechadas, cheias de explicações sem sentido e justificativas para qualquer movimento na tela. O primeiro rumo já é oferecido no começo: fazer do cotidiano de Walter na madeireira um verdadeiro inferno, por conta do inconformismo relativo ao seu passado vindo de seus colegas de trabalho – afinal, pedofilia é algo que gera reações extremas. Assim, O Lenhador se tornaria aquele típico de filme em que o protagonista enfrenta e/ou revida os mais criativos maus tratos.
O segundo rumo seria o mais óbvio: fazer de O Lenhador um thriller de suspense. Outra vez, Kassel tinha chance de seguir isso a partir do momento em que informa, através do policial encarregado de vigiar Walter, que existe alguém atacando e violentando crianças na região onde o recém-libertado está vivendo. O filme iria se tornar o velho jogo de gato e rato entre acusado e criminoso, no melhor estilo Hitchcock, acrescido de muitas descobertas surpreendentes, cenas de perseguição e algumas doses de pancadaria.
Nada disso. Nicole Kassel merece todos os louvores por ignorar estas duas subtramas (dando a elas apenas considerações pontuais, como parte de um contexto muito maior) e se focar naquilo que mais interessa a um filme sobre a pedofilia: os fantasmas que rondam a mente de alguém em plena consciência da gravidade de seus atos.
Walter saiu da cadeia e percebeu ainda ser um compulsivo por garotinhas de 11 ou 12 anos. A certa altura, ele mostra sua visão: “ser normal é olhar para menininhas, até conversar com elas, e não pensar em...”. A frase fica incompleta, porque a racionalidade de Walter não quer completá-la – mas seu corpo, seu instinto, sim. Sabendo dessa tentação criminosa, tudo o que ele pode tentar é se controlar, até ser “curado” pelo terapeuta. Será difícil, morando em frente a uma escola primária e pegando diariamente um ônibus recheado de lindas princesinhas.
Kassel poderia descambar para o grotesco ou grosseiro ao falar de tema tão polêmico e debatido. Isso jamais acontece. Usando silêncios na narrativa e se baseando em olhares e expressões, rápidos flashbacks e poucos diálogos, o roteiro quase não explicita os pensamentos do personagem, deixando por conta da imagem e do público definir o que, afinal, está sendo dito. É o caso de uma das seqüências mais admiráveis do longa: pressionado pelo terapeuta, Walter confessa que, já aos seis anos de idade, se deitava com a irmã e ficava apenas cheirando seus cabelos, ato que continuou à medida que ambos cresciam. Nada mais que isso. Num corte de cena, vemos Walter em casa, seminu, com a mulher com quem acabara de envolver. Sem uma palavra, ele a senta em seu colo, começa a se mexer sexualmente e cheira ardorosamente os cabelos dela. A amante não entende nada, mas nós, que assistimos àquela intimidade, percebemos imediatamente o que foi omitido na conversa anterior e quais os pensamentos de Walter naquele instante.
São de momentos como este que O Lenhador se baseia. Sugestões, insinuações, indiretas. Nada é “rasgado”, o que demonstra o imenso respeito que Kassel tem por Walter e por quem acompanha seu drama na sala do cinema. Isso se mantém até o fim, incluindo a seqüência-chave do filme, quando Walter conversa com uma garotinha num parque natural e pede que ela se sente no seu colo (aliás, impressionante como a expressão “sentar no colo” tem carga trágica e dramática numa temática como a abordada no filme).
O bate-papo aparentemente inocente da dupla mantém, num jogo equilibrado de plano-contraplano, uma tensão quase insuportável: por um lado, torcemos para Walter resistir, apesar de ficar claro que ele parece não conseguir; por outro, assombra o fato da menina ceder e ser uma potencial vítima de abuso. São poucos minutos que parecem ser muito mais, exatamente porque a diretora sabe dosar cada palavra, gesto e olhar de quem participa da cena, alongando a definição de Walter e, sem grandes explicações verbais, escancarando sua angústia.
Será dali, inclusive, que o filme vai tomar o rumo final (inspirando-se
na fábula do Chapeuzinho Vermelho), mas jamais ser concluído.
Seria muito simples dar um fecho ao drama de Walter, fosse "curando-o"
ou mesmo eliminando-o da sociedade. Só que Nicole Kassel tem
plena consciência de suas intenções e, por mais complexas que
sejam as relações de Walter com todos os demais personagens
em cena (incluindo a irmã, sempre recusando a vê-lo), não será
o filme a resolvê-las.
O Lenhador expõe o drama, desenvolve o seu entorno e
apresenta situações. O maior mérito é não encaminhar o espectador
para qualquer conclusão que seja. Certos ou errados, monstros
ou humanos, doentes ou pervertidos, os vários Walters estão
andando entre nós. Quem somos para julgá-los? Ou mais além:
o que é um filme, o que é um roteiro, o que é uma diretora,
para julgá-los? Nicole Kassel é inteligente o suficiente para
entender que não há respostas. E é essa inteligência que torna
O Lenhador imperdível, uma das mais discretas (e menos
comentadas) surpresas a surgirem nos cinemas atualmente.
Site Oficial do filme
O Lenhador
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